quarta-feira, 8 de agosto de 2018

A filha do Coronel (Texto Registrado no INL: 610.545 Livro 1.170, folha 321)


Autor: Jussara Burgos

Percival Matos era um sujeito que tinha uma forte personalidade, visão empresarial e muita disposição para o trabalho. Ele viveu na década de quarenta, no sertão de Pernambuco. Era casado com Edith e tinham seis filhos. Entre eles, apenas uma meiga menina de olhos da cor de mel, Gerusa era seu nome. Ela era o xodó do pai.
Percival comprou terras às margens da rodagem, esse era o nome das estradas de chão que ligavam a Capital ao interior do estado, pois naquela época não havia pistas asfaltadas. Havia um rio e a localidade era favorável ao cultivo de caroá ou caruá, como dizem os sertanejos. Os negócios prosperavam, Percival construiu uma confortável casa para sua família e se mudaram para Santa Felicidade. Logo veio a necessidade de uma escola para suas crianças e para os filhos dos seus empregados. Ele construiu uma escola e trouxe um professor do Recife.  Depois construiu uma usina de beneficiamento, uma vila de casas geminadas para os seus empregados, um hotel para atender os caminhoneiros que escoavam a produção, uma igreja e um posto de combustível. Percival ficou tão importante na região que ganhou o titulo de coronel, o que o deixava muito envaidecido.
Quando Gerusa ficou mocinha, ficou acertado que ela se casaria com o Antônio Matias, filho de um rico fazendeiro da Lagoa de Baixo. Ela casou no dia do seu aniversário de quinze anos e foi a maior festa da região. Quando terminaram os festejos, o noivo levou Gerusa embora, montada na garupa de um burro. O Coronel respirou sossegado, tinha cumprido a missão de casar sua única filha.
No dia seguinte na hora do almoço, a família estava reunida em torno da mesa, quando o Coronel Percival ouviu Antônio lhe chamar, do terreiro da casa. Esse ficou intrigado com a visita fora de hora. Chegando à porta, o Coronel escutou seu genro dizer: “Coronel vim devolver sua filha, ela não é moça”. Essa foi a maior desfeita que o Coronel sofreu na vida. Gerusa era a imagem da desolação. Cabisbaixa,  ficou parada diante do seu pai, que a surrou com chicote de cavalo, até ela ficar ensanguentada e desfalecer. Depois que ele saiu bufando feito um bicho, Edith levou a filha para dentro de casa e lavou os ferimentos com água de sal. Gerusa quando acordou do desmaio, falou para a mãe que jamais tivera contato com um homem. Edith aconselhava a filha dizer a verdade, para o próprio bem, mas ela negava veementemente, nunca tinha estado com um homem. De volta para casa, o Coronel deu ordens que não queria ver Gerusa enquanto vida tivesse. Ela iria viver trancada dentro de um quarto. E assim foi.
Gerusa foi tornando-se a cada dia, mais acabrunhada, sentia falta do convívio paterno, das brincadeiras com os irmãos e das amigas do vilarejo. Um dia enquanto a família estava na igreja assistindo à missa, ela foi até a usina e se enforcou com uma corda de caroá. A missa foi interrompida com o grito de um operário que dizia: - Acuda Coronel, Gerusa se matou! Foi aquela correia e desolação. Ninguém esperava por isso em Santa Felicidade.
Edith era prima do Dr. Célio, médico da cidade vizinha que apareceu para trazer suas condolências. Ela vivia inconformada com a situação da filha. Seu coração dizia que havia alguma coisa errada nesta história e quis tirar isso a limpo. Chamou o doutor no canto e pediu que ele examinasse Gerusa antes do sepultamento, pois ela havia criado a menina nas barras de sua saia, conhecia bem o seu temperamento calmo e jamais presenciou algum assanhamento.  O corpo da jovem estava sobre a cama para  vestir a mortalha, Edith pediu que as mulheres presentes se retirassem,  ficando apenas ela e o seu primo médico.
Após o exame o médico chamou Coronel e Edith e explicou que Gerusa era virgem, ela tinha hímen complacente. O Coronel prostrou-se diante da filha, pedindo perdão.
Junto com Gerusa o Coronel enterrou sua vontade de viver, deixou de cuidar da usina, dispensou os empregados, não quis mais ir à igreja, se isolou de tudo e de todos. Dizia sempre que o caroá lhe rendeu fortunas, mas também serviu para tirar a vida do seu maior tesouro.  Viveu corroído pelo remorso até o dia de sua morte.
Santa Felicidade ficou abandonada, não havia ninguém na região com recurso financeiro para comprar todo aquele patrimônio. A viúva e os filhos do Coronel Percival Matos  foram embora para São Paulo, sem nem mesmo vender as terras. As construções viraram ruínas ao longo das décadas e estão lá até hoje, a chamar a atenção dos que por ali, raramente, passam e até se benzem, ao perceber que Santa Felicidade tornou-se uma cidade fantasma. Entretanto, nem sequer imaginam que ali se enforcou a filha de um Coronel, para tornar-se para sempre na vida dele, o fantasma da tristeza e desilusão. 

Autora: Jussara Burgos - Luziânia/GO 

O texto ¨A filha do Coronel¨, foi Registrado no Instituto Nacional do Livro (Fundação Biblioteca Nacional), em nome de Jussara Burgos, número de Registro 610.545, Livro 1.170, folha 321.


18 comentários:

Ana Brito disse...

Um pequeno conto que revela a tragédia de, na vida, pautar-se pela rigidez de ideias cujos ditames mutilam a expressão do Ser. Um ser humano jamais deve abrir mão do seu discernimento e da responsabilidade. Do mesmo modo, nunca deve guiar-se por preceitos sociais equivocadas nem deixar-se submeter por regras de conduta pré-concebidas para simples manutenção da aparência. Apesar de parecer algo já extinto, o texto traz uma profunda reflexão sobre conceitos, pré-conceitos, comportamentos alienados e controle social. Ainda há muitos coronéis vivos a sacrificar a beleza de muitos jovens, principalmente se esses esquivarem-se ao jugo de uma sociedade hipócrita.

Anônimo disse...

Mana, parabéns você retratou com fidelidade as coisas daqui desse nosso Sertão do Moxotó. estás de parabéns você mostra que saiu do sertão pernambucano,mais o sertão pernambucano ai está presente nessa mulher arretado que és tu, fico feliz por ter você como irmão carnal e espiritual.
Um xero grande nesse coração grande.

Carlos Costa disse...

Um conto vigoroso, bem construído e de um final surpreendente, provando que nem sempre se ter dinheiro e poder é sinônimo de felicidade e riqueza interior! Parabéns!

Nande disse...

Um conto enxuto, de texto preciso e direto. E de grande vigor temático. Gostei bastante.

Anônimo disse...

Um conto com uma narrativa maravilhosa, o relato que nos leva a arbitrariedade surreal do jugo dos coronéis, que tantas "histórias" já nos foram contadas, e a história ou estória de Gerusa, nos recorda muitas outras que ouvi desse meu NORDESTE cheio de contos e encantos, uma época em que viveu várias Gerusas, Marias, Eulálias....e todas com seus encantos.
Parabéns pela simplicidade e beleza do conto.
Soraia maya

Unknown disse...

Parabéns querida, seu conto trás uma mensagem positiva e atual das injustiças sociais.
Traduz a expressão do poder da "impotência" diante da autoridade paterna e social, acentuando o preconceito o julgamento pré-meditado perante uma pessoa subjugada sem voz. Posso até correlacionar o texto com os governos poderosos e arrogantes diante de uma nação,onde a impunidade impera e prevalece diante dos injustos. Traz ainda a cultura arraigada de um povo,mostrando a relação de autoritarismo e ignorância em contradição com o arrependimento e injustiça levando o povoado a conhecer os extremos "felicidade e infelicidade".
Adorei sua criatividade de forma objetiva e singular,tendo conteúdo para bela resenha. Sucesso nos próximos contos .bjs Betânia Farias

Antonio Belo da Silva disse...

O que caracteriza um (a) grande escritor (a)? O relato fiel de uma situação vivida e/ou presenciada; ou a simulação de tal situação inventada ou imaginada, servindo-se ou utilizando-se de reminiscências de situações paralelas onde somente as personagens são fictícias e as situações; se não reais, perfeitamente factíveis?
No seu conto “A filha do Coronel”, o (a) autor (a) domina perfeitamente o universo psicológico da sociedade nordestina do ciclo do caroá ou do algodão, que caracterizou o “boom” econômico dos anos trinta a quarenta, no sertão nordestino, mais especificamente, no sertão pernambucano.
Sua análise nos trás de volta a questão do preconceito e do machismo cruel e injusto que tanto caracterizou àquela sociedade com relação à condição feminina e que tão profundamente marcou as relações afetivas da nossa geração. Seus efeitos se fizeram sentir até bem recentemente, como pude observar e vivenciar tais preconceitos até, pelo menos, a metade dos aos da década de sessenta.
Com serenidade e coerência, com uma linguagem clara e objetiva Jussara nos conduz a esse universo cruel, mas real e mágico, das relações afetivas permeadas por interesses econômicos e balisadas pelo poder absoluto de uma sociedade patriarcal.
Antonio Belo da Silva

Helena Frenzel disse...

Pois é, né? O que não faziam (e ainda fazem) em nome de uma falsa 'honra'... Muito bem escrito, criativo, sobretudo no paralelo do ocorrido com a escolha do nome do lugar: Santa Felicidade... Muito bom. Parabéns!

Anônimo disse...

Esse texto me fez viajar, literalmente, a história de uma época que bem está retratando um lugar e personagens tão conhecidos por nós Sertanejos. Como tantas vezes em viagens reais passando pela BR e curiosamente me chamava atenção aquelas ruínas daquele pequeno vilarejo abandonado que desde criança me fez colar a janela do carro buscando não só vê-las mas entender como um lugar se mostra com tamanha destruição e desolação. Texto limpo, sensível, claro somando num mesmo contexto a riqueza, os costumes, o poder financeiro que denomina o mais forte, a ignorância, a arrogância masculina que massacrava a fragilidade feminina e com ela a destruição da familia e de um lugar e do próprio homem. Gostei muito!

Anônimo disse...

Esse texto me fez viajar, literalmente, a história de uma época que bem está retratando um lugar e personagens tão conhecidos por nós Sertanejos. Como tantas vezes em viagens reais passando pela BR e curiosamente me chamava atenção aquelas ruínas daquele pequeno vilarejo abandonado que desde criança me fez colar a janela do carro buscando não só vê-las mas entender como um lugar se mostra com tamanha destruição e desolação. Texto limpo, sensível, claro somando num mesmo contexto a riqueza, os costumes, o poder financeiro que denomina o mais forte, a ignorância, a arrogância masculina que massacrava a fragilidade feminina e com ela a destruição da familia e de um lugar e do próprio homem. Gostei muito! Elba Feitosa

Cosmopolitismo disse...

A sensibilidade no relato revela o olhar do escritor atento a narrar o seu tempo. Missão maior dentre todas, a trasmissão da verdade como percebida no conto extende a dimensão da cultura machista presente no século XX no nordeste Brasileiro num clima que vaga pela seca de Graciliano Ramos e o olhar ampliado de Guimarães Rosa. Muito bonito!

Anônimo disse...

Muitas tragédias parecidas com a de Gerusa já foram vividas num tempo em que a mulher sofria horrores pelo conservadorismo, o tradicionalismo e tantos "ismos" que nem vale a pena lembrar. Um conto bem costurado, com um final surpreendente. Parabéns ao autor ou autora. Marina Alves.

Joaquim Neto disse...

Muito bem escrito. Fidedignamente trágico e surpreendente, como tantas histórias do Sertão Nordestino. Totalmente plausível, direto, de uma crueza condizente com a época e contexto tratado na narrativa. Feito por quem sabe daquilo que escreve.

Maria Mineira disse...

Gostei muito desse conto! às vezes uma história fictícia se assemelha tanto com uma real que ficamos a nos perguntar. Será que foi tudo verdade? Parabéns ao autor ou autora do texto!

JORGE FARIAS REMÍGIO disse...

Parabéns! minha prima,que conto extraordinário. Comovente, "real", convincente, belo e trágico. Você escreveu como se morasse naquela comunidade que outrora fora bastante florescente, mas que num toque de mágica,sucumbiu em uma eterna decadência. Que vitória! A segunda colocação em um universo de grandes escritores,foi sensacional. Viva Jussara Burgos

Carlos A. Lopes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Carlos A. Lopes disse...

A nossa colaboradora Jussara Burgos nos deu um bom exemplo ao registrar o seu texto ¨A FILHA DO CORONEL¨, no INL. Do jeito que as coisas estão indo em nosso país não se sabe até onde a pouca vergonha e a inveja pode chegar. Agora a pouco a Jussara me contou do sumiço da principal peça do seu prêmio (brindes do concurso), não chegando ao seu destino. Vou ter que encaminhar outra camisa, isto porque alguém, da parte da instituição do envio, certamente resolveu subtrair a peça bordada em alguma vistoria de rotina. Amigos, registrem suas criações, o custo é baixo e vai oferece uma segurança a mais a todos os autores.

João Batista Siva disse...

Narrativa brilhante. Parabéns...