domingo, 29 de setembro de 2013

A Rosa do Sertão

Autora: Ana Bailune

A paisagem seria bonita, não fosse tão seca. O céu era de um azul profundo, límpido, total. O azul mais azul do mundo. Contrastava com o vermelho do chão coalhado de rachaduras, e o mato seco e morto que deixava tudo ainda mais desolado.
Mariinha, seis anos, morava com a família – mãe, pai, cinco irmãozinhos – em um casebre de dois cômodos. Menina magrinha, de cabelos loiros tão ressecados quanto palha fina prestes a pegar fogo ao sol escaldante. Rosto sempre sujinho, pés descalços como seus cinco irmãozinhos. Tinha dois vestidos: um inteiro, de ir à missa na vila, e outro com a manga rasgada – ficara presa em um espinho de mandacaru – que usava para ir à escola. Em casa, Mariinha andava quase nua, vestindo apenas uma calcinha feita pela mãe, de saco de estopa.
O pai trabalhava na horta... isto é, quando Deus mandava chuva. Naqueles últimos dois anos, Deus andava um tanto econômico com a água, e a plantação de feijão e mandioca, há muito, morrera. Só havia um poço de água cada vez mais barrenta, há alguns quilômetros da casa onde Mariinha vivia com sua família. Eles iam até lá três vezes por semana, cada um carregando uma vasilha para encher d’água. As vasilhas sempre chegavam com água pela metade, que as crianças deixavam entornar ou que o sol fazia evaporar.
Mariinha e seus irmãos iam à escola. Não iam todos os dias, pois às vezes, o sol estava tão escaldante, que ficavam com preguiça de andar pela estrada barrenta. Mesmo de manhãzinha, o calor já envolvia a todos com seus dedos quentes e pegajosos. Na escola, eles às vezes merendavam: um copo de café com leite fraquinho, um pedaço de pão, ou um prato de sopa.
Tia Marinalva – a professora – fazia o que podia. Tinha vindo da cidade grande para ensinar as crianças. Mariinha simplesmente a adorava! Queria ser professora, como ela.
Sonhava com o dia em que ela estaria de pé na frente da sala de aula, escrevendo no quadro com o giz. E todas as crianças prestariam atenção ao que ela dizia, e seus pais diriam, com orgulho, que tinham uma filha que era professora.
Na sala de aula, Tia Marinalva tinha uma roseirinha plantada em um vaso. Todos os dias, ela punha um cadinho d’água, um tiquinho de nada, o suficiente para que a mirrada roseira crescesse um pouquinho só. Ela mostrava às crianças, dizendo:
-Vejam, meus pequenos: a gente deve ter sempre fé na vida, e mesmo que a fé da gente seja um tiquinho, como esse golinho de água que eu uso para molhar a roseira todos os dias, um dia Deus ajuda, e a roseira da vida floresce. Não se esqueçam disso!
As crianças ouviam com atenção, os olhos esbugalhados de curiosidade e fome.
Mas um dia, Tia Marinalva foi transferida para uma outra escola, bem longe dali. Todos ficaram muito tristes, mas nada podiam fazer. Antes de ir embora, ela ergueu com a mão o rosto de Mariinha (sua preferida) e entregou-lhe o vasinho com a roseira, dizendo:
-Cuide dela para mim, pois quem sabe, um dia eu volto?...
Lágrimas sujas escorriam pelo rosto da menina.
E Mariinha levou a roseira para casa, carregando-a com dificuldades pelo caminho, sob o sol escaldante do meio-dia. As lágrimas deixavam a paisagem ainda mais baça.
A mãe e o pai conversavam no alpendre. Diziam que a seca não acabava nunca. Reclamavam, cismando sobre como alimentariam as crianças no dia seguinte, já que a comida – um pouco de farinha e melaço – só daria para mais aquele dia. O pai resolveu ir à cidade, ver se conseguia alguma coisa. Voltou ao cair da tarde, trazendo algumas batatas, que comeriam no dia seguinte.
Conseguir água estava ainda mais difícil, já que o poço mais próximo finalmente secara. Tinham que andar pelo menos quatro horas de ida e volta até o próximo vilarejo.
Um dia, a mãe viu quando Mariinha bebeu da metade de sua caneca d’água, jogando a outra metade no vaso da roseira. Imediatamente, a mãe ralhou com ela:
-Ô menina abestada, jogando água fora? Num sabe o trabaio que dá pra carregá? De hoje em diante, nada de jogar água na terra!
-Mas mãe, é a roseira que a tia Marinalva pediu pra cuidar! Ela disse que a roseira é para ter esperança...
-Que roseira que nada! A gente num pode cuidá nem da gente mesmo, ainda inventa de cuidá de roseira... eu proíbo de jogar uma gota que for nesse vaso! Esperança... que esperança que se tem nesse fim de mundo, minina?
Dizendo isso, a mãe pegou o vaso, jogando-o pela janela. A terra ressecada caiu no chão. Mariinha chorou durante muito tempo, mas à noite, quando todos dormiam, ela foi lá para fora e recolheu tudo no vasinho de novo. Só a lua viu.
Escondeu a roseira atrás do tanque seco, onde ninguém nunca ia. E todos os dias, ela ia lá, escondidinha, levar um pouquinho de água para a roseira.
Mas Deus decidiu que a roseira não precisava de cuidados, pois levou embora Mariinha. Os pais a enterraram em uma cova rasa, atrás do casebre. Não teve padre, nem missa; apenas o choro dos pais e dos irmãos, que amedrontados, olhavam fixamente, enquanto o rosto de Mariinha sumia sob as pás de terra.
Mas o tempo passou, e veio a chuva. E veio forte. Aos poucos, o solo rachado foi sendo consertado pelas correntezas de água. A paisagem voltou a ser verde, e o Mandacaru floriu. Certo dia, a mãe foi até o velho tanque lavar a pouca roupa, enquanto o pai replantava algumas sementes de feijão. Foi então que ela viu, com os olhos cheios d’água, uma mancha vermelha.
Era a roseira da esperança.



Autora: Anabailune - Petrópolis/RJ



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Um pássaro azul

Autor: Flávio Cruz

O Jenuíno foi o primeiro. Foi ficando esquecido, esquecido, até não se lembrar de mais nada. A gente olhava para ele e ele ficava com aquela cara de interrogação. Não sabia do que a gente estava falando. Seu sorriso era distante, uma vaga impressão de que sabia do que se tratava. Quando o Alberto ficou exatamente do mesmo jeito, e ele era o melhor amigo do Jenuíno, muita gente pensou que era uma coisa que “pegava”. Existe gente que é ignorante, não entende como funcionam essas coisas de bactérias e vírus. Eu também não entendo muito, mas pelo menos sei que loucura não é contagiosa, não dá para pegar. O fato é que o doutor da cidade também descartou essa possibilidade. Disse que o único jeito de descobrir essas coisas era fazendo exames. Coisa sofisticada, em laboratório. Ele já estava providenciando. Essas coisas não podem ser feitas assim, no mais ou menos. Ciência é coisa séria, não é coisa de opinião, muito menos coisa de comadre conversando na rua.
De repente, a coisa pegou fogo. Você pode argumentar o que quiser, mas contra fatos não há argumentos. O doutor Euzébio não conseguiu mandar ninguém para fazer exame na cidade grande. O motivo foi bem simples e ao mesmo tempo assustador. Ele também “pegou” a estranha doença. Coisa de louco, sem querer fazer jogo de palavras com coisa tão séria. Não clinicava mais, só balbuciava umas palavras e tinha aquele  mesmo olhar perdido dos outros dois. Agora estava claro. Não só aquilo era coisa que “pegava” como também era coisa do capeta. Imagina só, o próprio doutor. Um homem formado, que sabia das coisas, que conhecia higiene como nenhum outro, pegar uma coisa daquelas. Já pensou quanta cultura ali, desperdiçada?
O fato é que os moradores começaram a ficar com medo. Tinha gente que fervia água, tinha gente que punha álcool em tudo. Que tolice. Como é que álcool vai impedir uma coisa dessas? Ignorância é uma coisa triste. É verdade que, às vezes, as coisas são tão complexas que até mesmo pessoas inteligentes não conseguem entender. Veja o caso do doutor. Nem ele sabia o que estava acontecendo. A ignorância é também uma coisa relativa. Até o mais sabido de todos pode ser um ignorante. Ele sabe um monte de coisas mas não sabe outras que estão muito acima dele. O fato é que para entender o que estava acontecendo ali, tinha de ser alguém com uma sabedoria muito grande. Não era qualquer um que podia explicar. Com certeza, não.
A única coisa que se sabia era que aquilo era uma coisa esquisita. Primeiro, dois amigos. Depois o doutor que estava tentando descobrir uma solução. Pode ser coincidência, mas parecia que existia alguém por trás daquilo. Os dias foram passando e os três apareciam de vez em quando na rua, cumprimentavam as pessoas mas não estavam melhorando. Falavam coisas sem sentido entre eles e com a gente também. Isso à parte, o resto era normal. Comiam, bebiam, andavam pela cidade. Devagarinho a gente foi se acostumando com a ideia. Acho que para isso não acontecer, o ente que estava provocando tudo isso, resolveu dar uma mostra de poder. Em uma só semana, levou mais cinco. Um parente do doutor, dois tios de sua mulher, um primo do Jenuíno, outro aconhecido do Alberto. Tinha lógica e não tinha. Eram parentes ou amigos. Mas ali na cidade, quase todo mundo acabava sendo parente ou relacionado de alguma forma. Só podia ser doença ou uma coisa sobrenatural. Uns três jovens, todos de certa forma  ligados aos “atacados” – como agora eram chamados – resolveram sair da cidade. Nunca se sabe, podia ser mesmo contagioso.
A nossa pequena comunidade era muito isolada do mundo e a gente tinha quase de tudo que precisava por ali. Talvez tenha sido esse o motivo pelo qual ninguém decidiu procurar ajuda, ver o que estava acontecendo. Mas eu tenho cá para mim que o verdadeiro motivo era o medo. Medo de descobrir o que realmente era. Se fosse uma doença curável, tudo bem A gente fazia o que tinha de fazer. Mas e se não fosse? De repente era uma coisa do mal, e a gente ia ficar numa situação comprometedora. Com essas coisas não se brinca. Do jeito que estava, não estava bom, mas mexer naquilo podia ficar pior. Ninguém falava as coisas claramente, mas dava para saber o que todo mundo estava pensando. Como disse, não era nada bom, mas era melhor assim do que ficar pior.
Eles não atrapalhavam ninguém, a gente foi se acostumado de novo e cada vez mais, as coisas foram andando. Mas todo mundo sabia que não ia ficar por aí. Tem coisa que não tem uma lógica visível, mas dá para saber que é o óbvio. Mais algumas semanas se passaram e mais algumas pessoas ficaram “atacadas”. Depois de alguns meses eram centenas, as pessoas nem avisavam mais. A cidade era pequena, tinha pouco mais de mil habitantes e chegou-se a um ponto onde havia mais “atacados” do que gente normal.Tirando o caso do doutor que tinha uma função muito complexa, os outros todos continuavam a cumprir suas funções sem muito problemas. Faziam as coisas mecanicamente, como autômatos. Entretanto, a gente sabia que eles não estavam pensando, que seus cérebros não funcionavam.
Éramos agora bem poucos, os “sadios”. E a ”coisa” parou por um tempo. Achamos até que tudo tinha acabado. Aí outra coisa esquisita começou a acontecer. Uns pássaros grandes, do tamanho de urubus, começaram a descer na cidade. Mas não eram pretos, não. Eram de um azul escuro, muito bonito. Também não eram agressivos. Ficavam por ali, andando ao invés de voar. Vez ou outra eles voavam um pouco mas voltavam. Havia centenas. Ninguém podia dizer do que se alimentavam. Ficavam bem à vontade, não pareciam ter medo da gente. Às vezes pousavam sobre nossos ombros, bem amigáveis. Vá se entender. Se não fosse o problema que a gente já tinha, ia ser um confusão danada. Mas o que era aquilo perto do que nós estávamos passando?
Finalmente todos ficaram “atacados”. A gente sabia que isso ia acabar acontecendo. Eu fui o último. Agora, aqui de cima posso ver meu corpo, lá embaixo, andando pela cidade, fazendo as coisas que precisam ser feitas. Assim, sem saber o que está acontecendo. Mas sou eu mesmo que decido para onde meu corpo vai, o que vai fazer, o que vai comer. Não estou falando de meu corpo de pássaro. Estou falando do meu corpo de gente. Só não consigo falar, e estou me esquecendo de quase tudo. Mas agora, pelo menos, as coisas fazem sentido. Eu sou um belo pássaro azul, consigo controlar meu corpo. Só não dá para a gente conversar com os outros pássaros, quero dizer, com os outros habitantes da cidade. Mas a gente se entende. Voa um pouquinho, pousa lá na rua. A gente se vê por aí. Eu sou um belo pássaro azul. Bonito mesmo. Como disse, as coisas agora se encaixam. Claro, não têm explicação, a causa nós não sabemos. Mas quem sabe a causa de alguma coisa? A gente não sabe de nada,  ninguém sabe como tudo começou. Claro, estou falando agora do mundo, do Universo. Como as coisas apareceram? Quem sabe? Nós não sabemos nada. Pelo menos, eu sei agora, que eu sou um pássaro azul. Bonito. Quando quero, posso voltar para o chão. Quando quero, posso voar. Isso é mais do que suficiente. Para que eu iria querer saber mais? Não precisa. Ser um pássaro, e ainda mais azul, é para mim, mais do que suficente, pelo menos por enquanto...



Autor: Flávio Cruz - Flórida/EUA

Publicação autorizada pelo autor

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

O papa-figo e outras medonhices

Autor: Rangel Alves da Costa

E de repente, bastava se avistar a poeira subindo ainda distante e a meninada começava a chorar, a gritar, a correr numa marcha só e se metendo no fundo dos quintais, nos monturos, mas principalmente embaixo das camas. Muitas delas se trancavam nos guarda-roupas e mais de vez, depois de muita busca e preocupações, foram encontradas a sono solto lá dentro.
E tudo por causa do papa-figo. Quando se ouvia falar do papa-figo até moça e rapaz se tremiam, pai de família e velho também, não conseguindo esconder o temor diante daquela estranheza toda. E se alguém, mesmo na zombaria, brincadeira de mau gosto, dissesse que o carro que poeirava adiante na estrada só podia ser do papa-figo, então era um deus-nos-acuda. 
Pelo nome, tão medonhamente pronunciado, logo se imaginava o pior: pessoas estranhas, maldosas e violentas, os temidos comunistas, chegando ali e arrancando com as mãos o fígado de quem fosse encontrando pela frente. E para comer vorazmente cru, saciando com o vermelho escorrendo do órgão do inocente sua sanha assassina, cruel.
Ora, pensar-se em comunistas era pensar em vermelho, cor de sangue, por isso mesmo muito mais pavor assim que um brincalhão alardeava que eles já estavam chegando com sua fome e sede. O povo, inocente demais, matuto, pensando realmente que o comunismo era um bicho horrendo e muitas vezes sem saber sequer o que era verdade ou mentira no que chegavam espalhando ali, então se iludia com a propagada governista e dava no que dava.
Verdade é que o governo tinha a preocupação de fazer chegar aos lugares mais inóspitos, nos sertões mais distantes, essa versão assombrosa sobre o comunismo, que segundo os seus interlocutores poderia chegar ao local através de pessoas disfarçadas de bons moços, mas que na verdade não passavam de cruéis devoradores do fígado de inocentes. Daí o termo papa-figo, no linguajar massapento.
Por isso mesmo que ao ouvir a simples menção de que os papa-figo poderiam estar chegando, já bastava para o mundo desandar. Contudo, nem todo mundo caía nessa lorota propagandística, pois dois velhos calejados do lugar, um ex-marinheiro de todos os portos e um amargurado ferreiro aposentado, comunistas convictos e de panfletagem, rebatiam os alarmes falsos dizendo que o carrasco do povo é a sua ignorância.
Os dois vermelhos de coração e ideias, se achando no direito de levantar suas bandeiras de luta e defender suas teses bolcheviques, faziam de tudo para que a população deixasse de ser enganada, caísse na realidade e tentasse ver quem era realmente o inimigo, quem eles deveriam temer, que era o próprio governo com suas mazelas e propagação de tantas injustiças sociais. Então começavam a explicar, dissuadir, discursar, mas não havia jeito. Bastava um gaiato soprar que os papa-figo estavam por perto e cada um já procurava sair de fininho.
Saía de fininho, se escondia, sumia, mas encontrando outro mundo não menos inocente e fabulesco. De velho a novo, com poucas exceções, todo mundo acreditava em botija enterrada e contendo riquezas de não acabar mais. Na minha família, em outros tempos, já aconteceu um caso assim, envolvendo essa riqueza doada do outro mundo, mas fruto de alguém da comunidade que voltava do reino dos mortos para dizer a pessoa de sua confiança aonde havia deixado uma fortuna enterrada.
Fico imaginando como uma pessoa que viveu o tempo todo na pobreza, ou quando muito na farta subsistência do ter apenas pra não faltar, iria enriquecer antes de morrer e somente depois, quando já não podia usufruir de tanto ouro e dinheiro, voltaria ao reino dos vivos, balançar a rede do adormecido e dizer que ali em tal lugar, embaixo de não sei o que, havia um sinal assim e assim, e que bastava desenterrar para encontrar riqueza.
Mas tinha de fazer isso sozinho, sem antes ter avisado a ninguém. Meia noite, e noite de pouca lua. E dizem que um parente meu desenterrou uma bem desse jeito. E talvez tenha enterrado depois em outro lugar e quando morreu esqueceu-se de voltar pra avisar onde estaria a salvação da lavoura.
Às vezes fico pensando nisso tudo como uma grande brincadeira. Mas Deus me livre de dizer isso lá pra minha terra. Certa vez um cabra disse que não acreditava em caipora e mesmo já velho caçador tomou uma surra desse encantado que ficou entrevado muitos dias em cima de uma cama. E até hoje todo mundo comenta esse caso e jura pela mãe-d’água que foi verdade.
Desse jeito, quem sou eu pra desacreditar?


Autor: Rangel Alves da Costa - Aracaju/SE
Poeta e cronista

Publicações autorizadas pelos autores

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O abandono

Autora: Michele Calliari Marchese

Lenise sentou-se na cadeira de palha da varanda de sua pobre casa. Era tardinha e os filhos estavam brincando. Três ao todo e o quarto na barriga. Entregou-se àquele entardecer como se fosse o último. Fechou os olhos e acariciou o ventre com amor. Sentiu o vento no rosto a enxugar o suor da lida e do abandono.
Sentia-se fatigada de tanto pensar, com o peito em dor doou-se por inteira ao destino que se lhe abria de uma hora para outra, exatamente no momento em que o marido fora internado em algum hospital da capital pela perda do juízo. Bebia muito aquele homem e se por um lado sentia-se aliviada com a internação, por outro lado sentia-se só com todas as responsabilidades do porvir.
Sabia que não tinha condições de fazer o trabalho do marido naquele fim de mundo e a gravidez em estado avançado não lhe permitia pensar no que aconteceria com os outros filhos. A dor foi tomando conta de todo o seu corpo, como uma vertigem lenta, antecipando todos os sofrimentos que teria de passar. Já tinha avisado os parentes, dela e dele. Por certo haveriam de ajudá-la de alguma maneira, visto a situação chegar aonde chegou.
Escutou os gritos dos filhos a reclamar de fome e levantou-se num ímpeto. Esquentou o que sobrara do almoço e alimentou um a um sem pensar em si e o que restou – parcas migalhas - foi o que comeu, em prioridade daquele que viria, porém a sua única vontade era de mudar tudo e todas as coisas, ou simplesmente não comer nunca mais.
Agarrou-se ao sentimento mais profundo da vida e seguiu adiante; limpou a cozinha e tratou dos outros afazeres que exigiam urgência. “Todos tão pequenos” ela pensou, e as lágrimas lhe escorreram pelo rosto cansado da juventude. Tentaria fazer o melhor que pudesse, até a chegada do neném.
“Quatro filhos!” Disse em voz baixa num desespero de agonia. Ainda bem que o marido estava internado sem previsão de voltar, porque se ali estivesse, lhe meteria o quinto filho barriga adentro. Não aguentava mais tanta miséria.
“Todos descalços!” E recomeçando o choro dolorido e incontrolável foi até a janela para respirar o ar que lhe faltava. Ela passou a mão no rosto para afugentar tanta fraqueza e em seu íntimo sabia que mesmo que a família chegasse seu sofrimento não terminaria ali. Não tinha condições de manter os filhos por muito mais tempo e não saberia como teria aquele que iria nascer. Era o marido que trazia a parteira, era o marido que lidava com quase tudo o que existia fora de seu mundo, não sabia como fazer para alimentar as crianças com outras coisas que não tinham em casa.
Era difícil imaginar uma caminhada a pé com todas aquelas crianças e todas descalças, inclusive ela própria, até a cidade para pedir ajuda. Era difícil a sua vida de mãe.
Foi quando ela sentiu as dores do parto e as crianças choravam que apareceram seus familiares, dois irmãos e um cunhado. Sem muitas explicações, ajudaram-na durante o parto, deram de comer aos pequenos e trataram de cuidar o que jazia abandonado.
Vieram com um taxi da cidade, colocaram todos dentro, quase nenhum pertence fora levado e o bebê estava enrolado num lençol surrado e muito velho.
Naquela noite, na casa de uma irmã de Lenise, tudo estava bem e morno como um aconchego. Os filhos dormiam com os primos, tinham tomado banho e comido muito bem e então chegou a hora da verdade. Ficaria ali para sempre se pudesse, porém não podia. A irmã disse que conseguiria criar um dos filhos da Lenise sem problemas, inclusive dando-lhe educação, e ela arregalou os olhos diante daquela proposta impensável.
Era muita dor em seu coração quando o cunhado disse que levaria dois para o Paraná - onde morava – e o outro ficaria com o outro irmão de Lenise até que a situação melhorasse para que pudesse então juntar seus filhos. Não poderia vender aquele pedaço de chão sem a assinatura do marido. Teria que trabalhar em algum lugar até que ele voltasse da internação, se é que voltaria algum dia.
Segurou o bebê junto de seu coração, acordou os outros filhos e despediu-se deles sem chorar, sem lamentar e sem se desculpar. Precisava mostrar que a mãe deles era forte o suficiente para aguentar tantas provações e eles precisavam saber disso e tinham que esperá-la.
Foi-se embora no meio da noite, porque sabia que se ficasse não teria coragem de deixar os filhos com os outros. Escutou os gritos e os choros e pôde sentir as lágrimas deles dilacerando a sua alma. Não conseguiu olhar para trás.
Precisava fazer aquilo para poder ajudá-los e para que pudesse continuar vivendo. Foi dormir na casa de uma mulher sua conhecida da infância e no dia seguinte, com os peitos vazando leite, porque não tinha mais como dar de mamar, porque seu bebê havia ficado, porque ele não conseguiria resistir à dura empreitada consigo, porque ela os amava demais para deixa-los morrer a míngua e foi pedir emprego de casa em casa, de comércio em comércio e no fim de uma semana conseguiu. Dormiria no emprego, porque não tinha lugar para dormir e olhou admirada aquela alma auxiliadora trazendo um par de chinelos para calçar.
O marido nunca mais voltou e um Juiz concedeu-lhe, quinze anos depois, o direito de vender as terras que tinham, e foi o que ela fez. Tentou a todo custo que seus filhos voltassem para junto dela, mas o que conseguiu foi uma casa vazia. Completamente vazia.
Nenhum dos filhos quis voltar. Os dois menores não a reconheciam como mãe mesmo sabendo que ela era a mãe deles e os dois maiores não entenderam nunca a atitude dela naquela noite de abandonos.
E então Lenise sentou-se em sua cadeira nova de palha na varanda. Respirou pela última vez o entardecer. Fechou os olhos e acariciou o ventre daqueles quatro filhos que nunca esqueceria em sua vida. Sentiu o vento em seu rosto, mas ele não foi capaz de enxugar as lágrimas do seu coração.

Michele Calliari Marchese é catarinense de Xanxerê. Formada em ciências contábeis, é contista semanal do Jornal Diário Folha Regional de Xanxerê - SC, mantém uma escrivaninha no site Recanto das Letras e no blog Sem Vergonha de Contar. Participou com contos nos livros UFOs - Contos não identificados e Espectra, ambos pela Editora Literata de SP,  do Livro dos Prazeres editado pelo SESC de Santa Catarina e no E-book Quinze Contos Mais pela editora Helena Frenzel.

domingo, 15 de setembro de 2013

Para você, Santim... onde estiver...


Autora Maria Mineira

Ainda tenho você em mim, no coração e nos sonhos. 
Na memória ficou o nosso último encontro. Eu chorei naquele dia. Nunca quis me despedir de você, sempre te quis por perto. Eu não desejei crescer, não queria ficar sem a sua companhia por toda a minha vida.
Centenas de cartas escrevi e joguei ao vento, na esperança de que chegassem ao seu mundo te chamando de volta. Sei que, já não sou aquela menina solitária que quando te precisava por perto subia na nossa árvore e gritava seu nome... Acreditava que vinha do céu, pois, vovô me dizia que os santos moravam lá, por isso batizei-o "Meu Santim".
Já não brinco mais de boneca, já não roubo os bolinhos de chuva de minha avó para te presentear, mas ainda sinto sua presença quando bate aquela minha insegurança. Lembra como eu temia cair do galho mais alto da árvore? Era seu lugar preferido e eu queria estar lá em cima do seu lado. Você me encorajava, segurava minha mão, me levava para junto de você e acreditava em mim mais do que eu mesma.

Sabe, meu Santim... De certa forma minha vida não mudou muito. Apenas troquei meus medos de criança por problemas que sozinha não consigo resolver. Até posso ouvir os teus risinhos meio irônicos, dizendo que agora sou adulta e não posso mais esperar Santinhos do céu para atender meus pedidos, como você fazia a tantos anos que se foram.
Hoje, acredito que você me diria que o sonho foi real, porém, seu mundo é um lugar inacessível para mim, mas eu te daria milhares de razões para perceber a diferença entre o que é real e o que não seja. Eu, melhor do que ninguém para entender, para experimentar, para sentir.
Confesso meu querido... Apesar de ser uma mulher, me sinto mais menina do que nunca, porque as crianças se sentem perdidas em mundos feitos para os adultos, e eu ando muito mais que perdida em um mundo que foi moldado para mim. Além disso, estou confusa, precisando de você.
Separados, sei que em algum lugar neste universo, você também pensa em mim. Se acaso decidir aparecer, me encontrará no mesmo lugar de sempre..., No galho mais alto da Copaíba, aquele com vista para a Serra. Lá estou quando preciso sentir o vento desalinhar meus cabelos e acariciar o meu rosto.
Um beijo carinhoso de sua amiga, daqui deste lugarzinho que chamamos de Planeta Terra.Autora: 


                                   Maria Mineira - São Roque de Minas/MG

Ilustração: Edmar Sales - Custódia/PE


          Publicação autorizada pelos  autores


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Bairro da Boa Vista, no Recife, uma viagem às memórias do meu coração

Autor: Augusto Sampaio Angelim

Ruas, avenidas, logradouros, hotéis, praças, igrejas, prédios públicos, bares, restaurantes, escolas, padarias, um sem número de lembranças do bairro da Boa Vista vão chegando à memória. Vindo eu de um sertão cuja se distância para o Recife era medida por uma noite toda dentro de um ônibus, não havia como não gostar dos encantos de um bairro que, em meados dos anos setenta conseguia combinar, ainda, a nostalgia e fidalguia de décadas mais tranqüilas e a modernidade. Em certas ruas, algumas famílias, nas tardes domingueiras, conversavam nas calçadas. Ao invés da verticalização de agora, predominavam as casas, muitos casarões e alguns prédios modestos. Neste mesmo tempo, a sua principal artéria, a Avenida Conde da Boa Vista e a Rua da Imperatriz já eram agitados centros comerciais e bancários.
Caminhar pelas ruas do bairro, inclusive tarde da noite, permitia absorver o ambiente cultural que agitava o Recife. Na Rua do Hospício pontificava o DCE (Diretório Central dos Estudantes) que saiam às ruas para protestar contra a ditadura e o governo. Logo me tornei um deles e lembro um dia, no ano de 78, quando houve uma movimentação grande e a polícia reagiu com violência, disparando tiros para o alto e jogando bombas de gás lacrimogênio. Eu e outros entramos, à força, no antigo Cine Veneza, para escapar à fúria dos policiais. Já na Faculdade, recebemos uma noite, os Senadores Paulo Brossard, Pedro Simon e Marcos Freire, com o prédio cercado pela tropa de choque e muitos cachorros. Uma confusão dos diabos, mesmo assim eles conseguiram entrar na faculdade e falaram aos estudantes. Eram tempos difíceis e a universidade estava repleta de policiais infiltrados, mesmo assim, fizemos a primeira greve da Faculdade de Direito do Recife. Na votação da emenda constitucional do deputado Dante de Oliveira, que propunha as eleições diretas, apesar da direção da faculdade haver ordenado o seu fechamento, conseguimos com que ela ficasse aberta e olhos na televisão e ouvidos nos rádios, saímos frustrados com a rejeição da proposta.

A primeira vez que tomei uma cerveja, foi no Mustang, que era um bar freqüentado por jovens estudantes, políticos menos conhecidos e por algumas mulheres de vida difícil que trabalhavam na Boate Aritana, situada no mesmo edifício que abrigava o Mustang. No Teatro do Parque assisti a inúmeros espetáculos musicais, e, num deles, tive o prazer inesquecível de conversar com Cartola. Isto mesmo, Cartola, minha Senhora, este ícone da música popular brasileira. Morando por muito tempo na Praça Maciel Pinheiro, bem pertinho do Teatro, chegava muito antes e saia muito tempo depois dos shows, daí o encontro com o velho Cartola.
Caminhar por suas ruas de nomes poéticos como da Saudade, da Alegria, do Jasmim, da Aurora, da União e da Soledade era como compor poemas, se é que estou sendo claro. Outras ruas, sempre me deixavam desconfiados, pelo traçado e até pelo nome, como Bulhões Marques. Nenhuma, entretanto, me deixava mais precavido que a Rua da Conceição, com suas casas mortuárias (funerárias), não que tivesse medo de defuntos e almas, mas é que, sinceramente, não é bom se meter com gente de outro mundo. A Rua Velha, que era velha mesmo, era um dos meus lugares prediletos, até mesmo porque lá morei alguns anos, assim como na Praça Maciel Pinheiro. Sim, morei também na Rua Visconde de Goiana, na Rua do Jasmim, na Rua Gervásio Pires e na confluência das Ruas Barão de São Borja e da Soledade. Porque tantos lugares? Minha cara amiga, eu era estudante, vindo do interior e, por várias razões que agora não convém explicar, era nômade. Na Rua Velha e noutras ruas da Boa Vista, morava tanta moça bonita que dava gosto olhar para suas casas. A Avenida Conde da Boa Vista, hoje símbolo da decadência urbana do centro recifense, era um vigoroso corredor comercial e bancário. Vi o antigo prédio do Colégio Alfa ser derrubado para dar lugar à loja da Mesbla, até então o prédio comercial mais moderno do Recife.
No Cine Veneza, com suas paredes internas revestidas de um tecido aveludado de cor vinho, podia-se paquerar com elegância, na sua sala de espera. Era chique, como se dizia à época. No Veneza vi filmes como Aeroporto, Apocalypse Now e tantos outros. Na tarde de domingo que assisti Hair, deixei o cinema inebriado com os valores explicitados na película e com o coração ressoando a trilha sonora do filme. O som do Veneza era o máximo. Na Avenida Suassuna funcionavam dois cinemas, o Astor e o Ritz, que passavam filmes mais cults e neles assisti “A mulher do tenente francês” e “O iluminado”, entre outros. Na Barão de São Borja, ainda conheci o prédio do Cine Polytheama, inclusive com sua inscrição na fachada e a bilheteria frontal. Na Rua do Paissandu, ou Praça Chora Menino, estava o Cine Boa Vista, local em que vi, pela primeira vez, “Tubarão”. Pense num medo, parecia que as cadeiras tremiam. O Cinema Moderno, com sua enorme sala de espera e sua porta principal envidraçada com detalhes de metal dourado, deixava transparecer uma atmosfera de brilho e antiguidade. Não se podia entrar ali de bermudas e muito menos de sandália do tipo havaiana. 
Outro local que não esqueço é o Cais José Mariano, aonde ficavam as velhas fábricas da Cilpe e do Açúcar Estrela (Amorim Primo), cuja estrela vermelha ficava piscando a noite inteira, cujo trânsito, já era complicado naqueles tempos, por conta dos caminhões de cargas de açúcar e madeira. No local havia várias madeireiras. O Leite Cilpe, do governo do Estado, era distribuído em saquinhos nas padarias, bares e mercearias. Houve um tempo, que todos os dias, bem cedo, eu descia do prédio na Maciel Pinheiro para ir pegar o leite na “Leiteria” que ficava na Rua do Hospício, ainda me lembro da sensação táctil causada pelo leite gelado.
No início dos anos oitenta entrei na Faculdade de Direito e passei a conhecer parte da intelectualidade recifense como Ângelo Monteiro, poeta e filosofo com quem travei diálogos no meio da Rua Sete de Setembro, na calçada de um bar que ficava embaixo do Edifício Ipiranga (outro lugar que morei, por uns seis meses). Diálogos, evidentemente, esquecidos por Ângelo, decorrentes da facilidade com que o álcool permitia ao brilhante professor conversar com um estudante afoito. Um dos temas, me lembro, foi o filme “Je vous Salue, Marie”, de Godard, que causou muita polêmica à época. Como pode a senhora imaginar, a conversa foi sobre religião, dogmas, tabus e sexo, lógico. Décadas depois é que soube que Ângelo Monteiro é natural da cidade alagoana de Penedo, com quem tenho uma ligação afetivo-cultural muito grande. Na Rua Sete de Setembro, estava situada a Livro Sete, de Tarcisio Pereira (de boné, calvanhaque, calça jeans e sempre sorrindo) uma portentosa livraria para àqueles tempos e local de encontro de intelectuais e estudantes, com palestras, recitais, e, que, aos sábados, servia uma boa “batidinha” de cachaça. No segundo ano de faculdade, fiz um estágio no escritório de advocacia, por indicação do ex-senador Mansueto de Lavor, e então tocado por seu ex-sócio, Dr. João Batista de Albuquerque. O escritório ficava no Edifício Pirapama, em plena Avenida Conde da Boa Vista. O Pirapama já era um prédio cheio de problemas e abrigava lojas comerciais no térreo, salões de beleza, escritório de representantes comerciais, alguns consultórios, escritórios de advocacia, casas de massagem e até residências.
Entre 1984 e 1985 trabalhei na agência do Banorte (Banco Nacional do Norte), da Praça Maciel Pinheiro. Um amigo na praça e, então, o mais moderno banco brasileiro mas que, infelizmente, no final da década, terminou sendo incorporado por outra instituição financeira, terminando assim a história de um banco genuinamente pernambucano.
Vi a Rua da Imperatriz se transformar em rua de pedestres, uma mudança urbana radical. Antes, boa parte dos ônibus que saia do centro da cidade para a Várzea, Caxangá e Brasilit, transitavam ruidosamente pela aquela estreita via, causando grandes transtornos.
Estudei no Colégio Oliveira Lima, situado na Rua Barão de São Borja e no Colégio Radier, que ficava próximo à Praça Osvaldo Cruz, onde está o Teatro Valdemar de Oliveira, lugar que vi algumas peças conhecidas. Em frente ao Radier, ficava um posto de gasolina, com um bar denominado “Apple”, que era freqüentado pelos que tinham carro e dinheiro, o que não era o meu caso. Na praça Osvaldo Cruz, havia o Restaurante da Ilha de Kós, da Sociedade de Medicina e seu delicioso bife à moda diplomata. Saindo da Praça da Fusam, como é também conhecido este logradouro, chega-se à Rua do Padre Inglês, na qual havia um hospital psiquiátrico e um centro teológico. Um primo meu que era também estudante, ficou uns dias internado no hospital da Padre Inglês e eu fui visitá-lo algumas vezes. Saindo da Rua do Padre Inglês e ultrapassando-se a Avenida Conde da Boa Vista, chega-se à Rua Dom Bosco que me lembra o Consulado Americano e o conjunto de edifícios conhecidos como “os condenados”.
Passei boa parte de meus dias, antes de ingressar na faculdade, estudando na Biblioteca Pública Estadual, situada ao lado do Parque Treze de Maio, na Rua João Lira. E, entre um livro e outro, tive um ligeiro namoro com uma bibliotecária. Já na faculdade, os estudos eram feitos na sua velha biblioteca ou nas varandas, nos dias de calor ou em que o estudo era coletivo. É deste tempo a freqüência assídua e irresponsável de um bar, cujo dono, chamado, chamado “Maia”, permitia a mim e a outros colegas, companheiros, camaradas, dormirem dentro do estabelecimento, quando a noite já era alta e os últimos ônibus já não transitavam mais. Havia, também, o Bar Robertão Setenta, que de bom tinha apenas a freguesia de um ou outro estudante, cerveja gelada e, principalmente de um poeta que morreu cedo, Ericson. O Robertão 70 ficava na Rua Princesa Isabel, já perto da Rua da Aurora. Sim, minha senhora, ia esquecendo de dizer que, morei também, se bem que por apenas um ou dois meses, num apartamento na Rua Mário Melo, pertinho também da Rua da Aurora. Tempos depois, minha mãe morou no Edifício Alfredo Bandeira, na Rua da Aurora e de da altura do 18º andar se avistava muito do Recife e Olinda. Dividi o apartamento da Rua da Aurora com um velho jornalista cujo nome não me lembro mais, porém me marcou pelo seu jeito enfadonho e por ele haver tomado emprestado um livro e não ter me devolvido. O livro em questão era “Brasil: de Getúlio a Castelo”, do brazilianista Thomas Skidmore, ou melhor, é, ainda. Afinal não me esqueço que não foi devolvido e, muito menos ainda, que foi comprado “no carnet” em várias prestações, na Livro 7.
Fazia muitos anos que não circulava pelas ruas da Boa Vista, mas outro dia, num domingo, matei a saudade e, sinceramente, minha senhora, não tive como conter a tristeza, nessa viagem às memórias do meu coração, recordando pessoas, casas, prédios e odores.

Autor: Augusto Sampaio Angelim - São Bento do Una/PE


Publicação autorizada pelo autor
Autora: Ana bailune

Escrever um conto não é tão difícil para mim quando o tema é livre; mas escrever um sobre um tema determinado é muito difícil. E ainda mais quando ele irá participar de um concurso literário, figurando entre os contos de pessoas muito competentes. Quando o Carlos me convidou, fui até o blog, olhei as fotografias... e de repente, de dentro daquela igreja, à janela da casinha e junto àquela estrada poeirenta, os meus personagens foram aparecendo e acenando para mim. Corri para o 'word' a fim de prendê-los lá antes que fugissem. Portanto, acho que as imagens me ajudaram bastante. Ao mesmo tempo, enquanto preparava uma de minhas aulas de inglês, vi na revista que usava uma fotografia ensolarada da Califórnia, e as ideias foram aos poucos soldando-se umas às outras. 
Ao longo do concurso, já tendo enviado o meu conto,os outros textos foram chegando, e conforme os lia, pensei: "Não tenho a menor chance!" Mesmo assim, gosto tanto de ler, que vencer o concurso era o que menos passava pela minha cabeça. Por isso, quando recebi o resultado fiquei feliz e surpresa. Agradeço a todo mundo que participou deste concurso, pelas horas agradáveis que suas histórias me proporcionaram.
Uma vez me disseram que para aprender a escrever bem, precisamos ler bons autores. Participar deste blog e de outros espaços na internet tem me ensinado muito. Espero que possamos estar todos juntos novamente, em um outro evento! Parabéns a todos!

Autora: Ana Bailune - Petrópolis/RJ

Leiam o texto Califórnia (Primeiro lugar no concurso)

http://gandavos.blogspot.com.br/search/label/Anabailune%20-%20Petr%C3%B3polis%2FRJ

Autora: Jussara Burgos

O lugar que serviu de inspiração para os textos do concurso faz parte da minha vida. Tive uma tia-avó que morava lá e também era passagem obrigatória quando eu ia para capital. Menina atenta fica olhando aquele vilarejo pela janela do ônibus. Ali a paisagem cinzenta da Caatinga castigada pela seca mudava, havia folhas verdes, flores de muçambê e certo mistério no ar. Por que as localidades circunvizinhas prosperavam e aquele povoado parou no tempo e entrou em declínio? Passei vinte anos sem visitar Pernambuco e fiquei estarrecida quando vi que agora restam apenas escombros.

Agora no outono da existência, eu, uma ilustre desconhecida me aventurei no universo das letras encarando o desafio do Carlos A. Lopes de escrever sobre aquele lugar, dei asas a minha imaginação e fiquei com o segundo lugar. Sou grata por essa oportunidade. Sou grata aos que votaram em mim: Maria Conceição do Nascimento, Conceição Gomes, JCarneiro, Geraldo A Rodrigues Araújo, Sônia Biasus e Maria Tereza Moreira – Maith. Grata a minha octogenária mãe que viu os dias áureos do caroá e me forneceu elementos para construção do texto. Grata ao meu companheiro e meus filhos pelo incentivo e apoio incondicional. Grata aos amigos que enviaram seus comentários para o Blog Gândavos. Um abraço a todos,  dessa sertaneja que rega suas raízes e ama seu torrão.

Autora: Jussara Burgos - Luziânia/GO

Leiam o texto A filha do Coronel (segundo colocado no concurso)

http://gandavos.blogspot.com.br/search/label/Jussara%20Burgos%20-%20Luzi%C3%A2nia%2FGO


quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Um sedutor em apuros

João Batista Stabile

Morava na fazenda um negro velho chamado seu Joaquim, vivia com sua mulher a dona Maria, estes moravam numa casinha de tijolos que ficava um pouco afastada da colônia, num cantinho atrás de um morro. Era um lugar aconchegante, a casinha era rodeada de fruteiras, bananeiras pés de manga, goiaba, jabuticaba, laranja e um grande pé de jaca.

No fundo do quintal tinha diversos pés de mandioca e uma horta toda cercada de bambu rachado.  Ao redor da casa e numa pequena área na frente havia flores de varias espécies, plantadas em latas, baldes velhos tinha também alecrim, arruda e até um pé de losna plantado num pinico velho, que dona Maria cuidava com muito carinho. Ainda no quintal logo perto da porta da cozinha tinha um poço e do lado a tabua de bater  roupa, no fundo depois da horta ficava um chiqueirinho com dois porcos de ceva e solto pelo terreiro tinha galinhas, patos e até gansos que faziam um barulhão danado quando chegava gente.
Seu Joaquim dizia que á muito tempo atrás tinha vindo do norte de Minas, para São Paulo trabalhar na lavoura de café, veio com a mulher e dois filhos pequenos, estes depois de casados quiseram voltar para Minas, ele não quis ir, pois era estimado do patrão e estava acostumado com a vidinha sossegada que levava ali no seu cantinho.
Os filhos foram embora, durante algum tempo trocaram umas cartas, mas era uma dificuldade danada, pois ele e a velha eram analfabetos, tinham que pedir para a filha do administrador para ler e responder as cartas. Com o tempo às cartas foram rareando e depois perdeu o contato de vez, não tinha nenhuma noticias a muitos anos.
Seu Joaquim apesar da idade avançada que ninguém, nem ele sabia quantos anos tinha, era forte e muito trabalhador, eu o conhecia desde pequeno porque fazia muitos anos que eles moravam na fazenda, já este tempo ele não trabalhava mais no café, era poceiro( furava poço de água) e fazia alguns remendos nas casas da colônia  quando precisava, porque era também um pouco pedreiro e carpinteiro.
Na fazenda era querido por todos e conhecido como seu Joaquim benzedor, ele benzia crianças de quebranto, de vento virado, benzia também irizipela e até bicheira em animais, não precisava nem levar o animal lá, era só indicar a direção que estava e podia deixar com ele em três dias não tinha mais nada.
Certa vez quando eu tinha uns dez ou onze anos, ele estava furando um poço no quintal da casa vizinha da nossa, ele passou alguns dias nesta tarefa, pois seu trabalho era muito bem feito, mas um pouco lento devido a sua idade, a criançada curiosa ficava sempre ali por perto para ver o serviço e ouvir seus causos.
Um dia na hora do seu almoço, estávamos dois amigos e eu conversando com ele, não tinha nenhuma menina por perto então ele contou-nos esta estória ou história não sei se é verdade ou não, vou contar da forma que escutei.
Disse ele que um dia coisa de mais de vinte anos atrás, chegou à fazenda um rapaz pedindo serviço, era um moço de aproximadamente vinte e cinco anos, alto forte branco de cabelos bem claros, notava-se que era descendente de europeu, dizia ele que vinha do Paraná, chegou sozinho foi falar com o administrador, disse que fazia de tudo, mas o que mais gostava era de fazer cerca de arame farpado.
O administrador precisava mesmo de uma pessoa assim, e também gostou do jeito do rapaz, que se apresentou muito educado, resolveu contrata-lo e mandou-o pegar sua trouxa e fosse morar numa casa que estava fazia na ponta da colônia.

De fato o rapaz era mesmo educado e muito trabalhador, o nome dele seu Joaquim nem lembrava, só sabia o apelido que era Polaco por ser branco, fez amizade rápido com o pessoal, mas depois de algum tempo perceberam que ele tinha um defeito, era metido a conquistador, gostava de seduzir as moças e mexia até com mulher casada. Bastava ser simpática que ele já achava que estava dando bola, por isso em pouco tempo ele se meteu em varias confusões por causa disso.

Diziam que uma vez ele desonrou uma moça o pai dela de vergonha foi embora da fazenda, outra ele seduziu uma mulher casada e o marido descobriu deu um coro nela e a mandou embora, mas depois com saudade resolveu perdoa-la e trouxe-a de volta para casa, e era motivo de zombaria dos companheiros longe dele é claro.

Uma tarde depois do serviço Polaco estava conversando com um rapaz que trabalhava junto com ele de ajudante fazendo cerca, quando passou com uma moringa de água na cabeça, vinda de uma bica que ficava logo a baixo da colônia, onde todos buscavam água para beber, uma linda morena, alta, cabelos pelo meio das costas, olhos negros, lábios carnudos e uns dentes certinhos e muito brancos.

Por ser muito simpática, passou e os cumprimentou sorrindo, bastou. Disse o sedutor.
- Nossa que mulher linda, com essa eu até casava.
- Rapaz não mexe que essa mulher é direita e o marido dela não é homem de brincadeira, você vai se dar mal.
- Que nada não existe mulher direita é só saber chegar.
- Bom depois não vá dizer que eu não te avisei.

A mulher que se referiam, era de uns trinta e cinco anos, tinha três filhos e era casada com o capataz do gado da fazenda. Este veio morar na fazenda ainda menino família de formadores de café, começou á namora-la quando eram adolescentes, depois de casado sua família foi embora e ele ficou. Era empregado de confiança responsável pelo gado da fazenda, homem de aproximadamente quarenta anos, muito honesto e trabalhador, amigo de todo mundo, mas era de pouca conversa e não tolerava coisas erradas.

Ajudando-o na lida do gado trabalhava seu cunhado, irmão de sua esposa e um compadre.

O marido da morena não era um homem ciumento, nem ela dava motivo para que ele desconfiasse dela, mas por ela ser uma mulher muito bonita que chamava atenção, ele a mantinha sob uma discreta vigilância, pensava o seguro morreu de velho.

Um dia a morena desceu num rio que passava entre duas colônias para lavar roupa, que era um costume da época, lavar roupa no rio. Estava concentrada no trabalho, quando chegou o sedutor e dirigiu-lhe um gracejo, ela não respondeu nada, fechou a cara pegou suas coisas e foi embora, ele pensou está se fazendo de difícil, não tem problema eu espero.

Passado alguns dias, novamente ela estava na mesma tarefa, ele por acaso estava trabalhando numa cerca ali perto, deu uma desculpa ao companheiro e escondido por entre uns arbustos, chegou onde ela estava. Só que desta vez ele foi mais ousado, tentou até agarrá-la, ela desvencilhou-se dele e saiu correndo para casa.

À noite após o jantar contou tudo ao marido, que a ouviu sentado na mesa pacientemente fumando um cigarro de palha.
- Não se preocupe eu já conheço a fama desse sujeito, vou dar-lhe uma lição que ele nunca mais vai esquecer, amanhã você volta no rio como de costume e deixe o resto comigo.

No outro dia na hora do almoço, o capataz chamou o cunhado e o compadre contou-lhes o plano, a mulher conforme o combinado foi para o rio lavar roupas e eles saíram como se fossem correr o gado num pasto distante, mas deram uma volta e se esconderam num capãozinho de mato onde  o rio fazia uma curva e formava uma pequena lagoa, ali amarram os cavalos.

Com muito cuidado foram subindo a pé entre a capoeira e esconderam-se entre umas moitas de capim, próximo de onde ela estava, não demorou muito chegou o tal Polaco com seu jeito sem vergonha  e passou a assedia-la.

Ela com educação más firme disse a ele que a deixasse em paz,  pois era mulher direita, ele ignorando seus apelos abraçou-a e quando ia beija-la, saíram do esconderijo os três homens, o marido vinha na frente com uma garrucha em punho e disse para ao rapaz.
- Você venha comigo.    
Os três o levaram onde estava os animais na beira da lagoa, chegando lá mandou que ele tirasse a calça e a  cueca,  ficando só de camisa, obrigaram-no a deitar-se de lado, o capataz sempre com a garrucha apontando para ele, mandou que os companheiros o amarrasse os pés e as mãos juntos, como se faz com um porco, deixando os testículos a mostra atrás das pernas.
Disse o capataz:
- Compadre prepare uma salmoura bem forte que eu vou capar esse safado. Sentando-se na raiz de uma árvore que ficava bem em frente ao rosto do rapaz, que estava chorando e encharcado de suor, tirou da cintura uma grande faca, pegou do bolso um pedaço de fumo de corda e começou a fazer um cigarro de palha.
O compadre pegou uma lata enferrujada, encheu-a de água no rio, pegou um bom punhado de sal jogou dentro e mexeu bem, quando estava pronta colocou bem perto do rapaz. 

Terminado o cigarro ele o colocou atrás da orelha e com toda a calma passou a afiar a faca, o sedutor pedia perdão, chorava e implorava para que o soltasse, mas ele fazia que nem estava ouvindo, o cunhado e o compadre sentados de lado só observava.
O capataz olhou a faca experimentou o fio, achou que já estava bom, levantou foi até o rapaz, abaixou-se por trás, pegou e puxou o saco dele para esticar e passou rapidamente a costa da faca bem acima dos testículos, o machão conquistador  cagou-se todo.
O homem guardou a faca na bainha, pegou a garrucha engatilhou os dois canos, encostou-a no nariz do rapaz, que as duas bocas dos canos ficaram coladas as suas narinas e disse: - Cabra safado, eu não mato você  agora porque não quero estragar minha vida por causa de um cagão, vou sentar ali pitar o meu cigarro quando acabar vou pegar meu cavalo e sair a sua procura, se eu ainda o encontrar vou mata-lo.
Dizendo isso levantou pegou um chicote de couro trançado e tala de couro cru, que usava no trabalho deu-lhe três lambadas na  bunda, que cada uma levantou um vergão vermelho e mandou que o compadre  o soltasse. Este saiu correndo desesperado sem rumo e até hoje ninguém mais soube notícia do sedutor.

Autor: João Batista Stabile - Marília/SP