quarta-feira, 19 de março de 2014

Livro: Sombras e Assombrações


Autora: Marina Alves

Recebi o livro Sombras e Assombrações da escritora mineira Marina Alves. Ao folhear o livro eu tive a certeza que é um grande trabalho onde se encontra várias histórias divertidas, instigantes que por certo prenderá o leitor do inicio ao final do livro. Cada conto surge coberto por um mistério temperado com pitadas de algo sobrenatural que nos leva ao tempo de criança esperando ansiosos por causos contados por quem sabia do assunto sob luz da lamparina. Por conhecer o trabalho de Marina Alves a algum tempo, posso afiançar que ela está destinada a ser uma das melhores escritoras da atualidade, em virtude da maneira como capta, realmente aquilo que há de mais interessante nos fatos cotidianos e por que não dizer também nos sobrenaturais?

Marina Alves, obrigado. Vou tentar fazer uma resenha do seu maravilhoso livro... Aliás, está sendo difícil destacar este ou aquele conto, são ótimos, todos os que já li.

Carlos A Lopes
Blog Gandavos

O homem sem língua e um cachorro sem nome

Autor: Geraldinho do Engenho

Miriam conseguiu seu primeiro emprego, trabalhando no caixa de um supermercado. Foi à realização do sonho alimentado desde criança, quando ela se encantou com a gentileza da funcionária que lhe atendia numa lanchonete. Isso aconteceu no dia em que, acompanhada pela mãe, elas pagavam ali, seus salgadinhos e guloseimas com aquele sabor de infância.
Tão doces como aqueles caramelos, esta lembrança aprimorava cada vez mais sua capacidade no relacionamento com a clientela. Causando admiração e cativando patrões e colegas de trabalho com a sua doçura.
Dentre aquela legião de pessoas que todos os dias passavam pelo seu caixa, estava aquele senhor já idoso e simpático, com a aparência de militar aposentado.
A cada dois dias, lá estava ele de sextinha na mão, com seu agradável semblante, sem dizer uma única palavra. Pagava com seu cartão de crédito os enlatados, lanches, e o pacote de ração para seu cão, que educadamente o aguardava na rua. Em frente ao caixa, de onde Miriam tinha uma perfeita visão ao longo da movimentada avenida. Por ela, seguia o cliente, acompanhado por seu melhor amigo. Talvez esse senhor fosse o mais fiel cliente daquele estabelecimento comercial desde sua abertura. Seu trajeto era periciado pelo olhar de Miriam até desaparecer no final da avenida, no meio dos inúmeros transeuntes.
Embora sem saber a cor das palavras daquele simpático senhor, ela sentia que algo a deixava confortável em sua presença.  Tomada por uma grande afeição, o tratava com todo carinho. Não sabia por que, mas alguma coisa naquele homem a atraia. Seria aquele olhar de ternura que a encantava tanto?
 Às vezes, chegava a invejar seu animal que o aguardava paciente evitando não perturbar nem mesmo aqueles que por ali transitavam. Como se fosse também um ser humano, parecia reconhecer seu lugar e jamais adentrava o estabelecimento.
Afastada do trabalho, gozando férias, levou consigo a imagem daquele cliente. E, onde quer que ela estivesse, não conseguia tirá-lo do pensamento. Seu carisma... Seu olhar terno... Comentou com a mãe a respeito daquela estranha atração. Passou a ela as características do homem, mas a mãe desconversou. Ela insistiu no assunto, mas foi repreendida. A mãe lhe dizia ser impossível ela com aquela idade se apaixonar por um velho que além de tudo deveria ser mudo.
A moça justificou dizendo que aquele sentimento era na verdade um estranho sentimento de respeito, não de um amor sensual.
Ao retomar sua função no trabalho, aguardou com ansiedade a presença do seu ídolo, mas ele não apareceu. Perguntou ao colega, que a havia substituído, todavia ele disse que poucas vezes o atendeu. Com certeza, deveria ter sido atendido por outro funcionário.  Alguns dias se passaram e do cliente nem sinal. Já decorrida uma semana, Miriam notou a presença do cachorro à frente da loja, no lugar do costume. Imaginou ter o cliente entrado sem que ela percebesse, por isso aguardou sua passagem pelo caixa, mas, tal não ocorreu até o momento de encerrar o expediente. No dia seguinte, o cão apareceu novamente. A mesma rotina. No terceiro dia ao encerrar a atividade, o cão estava lá no lugar de sempre e acompanhava com o olhar sua movimentação.  Ela comentou com seu colega de trabalho a respeito do procedimento do cachorro, dizendo-se preocupada.
Convidada pelo colega, que se dispôs a acompanhá-la, os dois o seguiram. Ao perceber que conversavam sobre o assunto, o cachorro se manifestou festejando, dando sinal de que entendera a mensagem. O cão os levou a um bairro nobre. Num luxuoso condomínio, encontraram o pobre homem acamado e febril. Acionaram, de imediato, uma viatura que o conduziu ao hospital aonde ele já chegou sem vida.
Na autópsia constatou-se morte por falência múltipla de um indivíduo, cuja língua fora mutilada talvez por um inexplicável acidente com um produto químico.
Foram examinar seus documentos. Constataram ser ele um ex-pracinha de guerra. Ele deixava, em testamento, todos os seus bens para sua desconhecida filha cuja mãe o havia abandonado ao tomar conhecimento de sua deficiência pós-guerra e jamais dera noticia da filha, que nascera após sua partida. Sabia apenas, por uma velha carta amarelada pelo tempo, recebida no campo de batalha, que a filha havia nascido e recebera na pia batismal o nome de Miriam.
Junto, uma carta escrita de seu próprio punho, solicitando às autoridades procurar pela filha entregando-lhe seus bens e recomendando-lhe a guarda de seu cachorro sem nome!


Geraldinho do Engenho - Bom Despacho/MG

 

Publicação autorizada pelo autor

segunda-feira, 10 de março de 2014

A família Cheng e as coxinhas de galinha

Autor: Carlos Costa

(uma visita às lembranças de um passado)
Depois de adquirir uma coxinha de galinha na Padaria Conde, na Avenida Joaquim Nabuco e saboreá-la com minha esposa dentro do carro estacionado, me vi caminhando apressado pela Rua 24 de Maio, no centro de Manaus, para adquirir uma coxinha de galinha produzida pela família Cheng – pai, mãe, filho e filha -  desde as primeiras horas da manhã. Logo cedo, se comprava ainda quente, saindo do forno como se diz: depois, continuavam mornas porque ficavam em um recipiente aquecido por lâmpadas. Era tudo feito de macaxeira ralada manualmente!
Também na Rua 24 de Maio, funcionavam lado a lado, o Curso Pré-Vestibular Objetivo e a sede da Procuradoria Geral de Justiça (Ministério Público) Lotava de alunos, quando a Universidade do Amazonas divulgava o resultado do vestibular. O Curso Objetivo, um dos primeiros a existir em Manaus, promovia a festa dos aprovados e raspava a cabeça dos alunos que desejassem. Era um grande farra que eu, mais tarde, como jornalista, passei a escrever matérias. Até banda de música era contratada para alegrar a festa dos aprovados. Muita bebida era distribuída para quem desejasse. Era um acontecimento na cidade e o Objetivo pregava a relação dos aprovados na parede e fazia propaganda nos jornais dizendo que era o que mais aprovava!
Ah, que saudades sinto do procurador, Luis Verçosa, o ¨Lulu¨ para os mais íntimos como eu, de seu irmão, o desembargador Mário Verçosa, que foi presidente do TJ-Am. Ambos simples, sinceros e amigos. Recebiam-me a qualquer hora e prestavam as informações que buscava para JORNAL A NOTÍCIA, onde comecei a carreira de jornalista, aos 19 anos. Certa vez, cheguei a ser convidado para visitar a casa do desembargador Mário Verçosa, na Rua 24 de Maio, próximo a Avenida Getúlio Vargas, antiga, simples, com tinha uma biblioteca grande, cheia de livros diversos - os de direito eram a maioria. Fiquei encantado. Hoje a casa virou um hotel. Voltemos à crônica, antes que eu divague demais e canse os leitores com inúteis memõrias de uma época que nunca mais será como fora no passado!
Junto com as coxinhas, um risoles, no Lanche Ziza's, localizado no térreo do Edifício Cidade de Manaus, adquiria milk sheik e os levava para os advogados Carlos Abner de Oliveira Rodrigues, com maior tempo de graduação, Guilherme Mendonça Granja, menos experiente, mas profissional dedicado, que mantinham escritório no segundo andar do Edifício e, algumas vezes, também os recém-formados João de Deus Gomes dos Anjos e Luiz Humberto Monteiro, quando chegavam de demoradas e exaustivas audiências no Fórum de Manaus. Eles estavam fazendo prática forense de dois anos para receberem a carteira da OAB. O Ziza´s também era o ponto de encontro dos alunos do pré-vestibular Objetivo, - mais tarde  foi o embrião da Faculdade Uninorte - junto com a cantina da família Cheng.
Luiz Humberto, entrou para a carreira policial e foi nomeado delegado. João de Deus continua na militância forense. Ainda temos contato de vez em quando, mas mudou muito. Eu era  office boy, (menino de escritório) dos advogados. Ninguém ouve mais falar em office boy porque a nova nomenclatura do Ministério do Trabalho, a fez desaparecer, como a muitas outras profissões dignas e honestas que existiam e empregavam os jovens que buscavam uma primeira atividade. Mas voltemos de novo à família Cheng! 
No final da década de 70/80, Manaus estava no auge do desenvolvimento comercial da Zona Franca, principalmente o comércio que vivia a forte febre de uma novidade que impressionava: os pesados, grandes e caros vídeos cassetes. Nesse período, as Ruas Marechal Deodoro, Theodureto Souto, Guilherme Moreira e Dr. Moreira, que formavam o quadrilátero comercial dessa época, se adquiria coxinhas de galinha de macaxeira em muitos comércios da Rua Marechal Deodoro, onde eu vendia jornais. Com a aquisição de três vídeos, que se podia tentar levar escondido da Receita Federal, uma se despachando como bagagem de mão e duas como contrabando mesmo! Chegando ao destino, se vendia por bom preço e, com isso, se podia cobrir despesas de passagens aéreas, hotel e ainda sobrava dinheiro para quem conseguisse passar. 
Mas se a pessoa não conseguisse sair do aeroporto de Manaus, era cana na certa. Muitos contrabandistas compravam cotas de bagagem, pagavam pequeno valor para quem se dispusesse a correr o risco de levar a encomenda, como chamavam os vídeos cassetes contrabandeados que revendiam e ainda pediam que em caso de interrogatório pelos fiscais, não revelasse o nome de ninguém porque a mercadoria seria retirada na chagada no aeroporto de destino por uma pessoa que davam o nome antecipadamente. O maior valor ficava com os contrabandistas.
Na Rua Marechal Deodoro, também se podia adquirir as coxinhas. Se eram ou não fornecidas pela família Cheng não sei dizer, mas que eram iguais, ah, isso eram: tinham dentro carne e o próprio osso de galinha, acompanhado de macaxeira e de uma azeitona verde, marca registrada de todas as que adquirira para os advogados.
Dizem – mas também não sei garantir – que a família Chang acordava todos os dias de madrugada, ralava a macaxeira dentro de uma bacia e depois e  enrolava tudo e as vendia a partir das primeiras horas da manhã. Com isso, teriam colocado seus dois filhos na faculdade e custeado em todas suas despesas para cursarem nível superior, o filho médico ortopedista e a filha medicina, mas não sei em qual especialidade!
O exemplo da família Chang, com seu casal de filhos, ora ajudando-os no balcão fazendo vendas, ora ralando macaxeira para produzir coxinhas, risoles e outros produtos que fazia honestamente, mantinha um comércio na Rua 24 de Maio, em um grande terreno ao lado do Edifício Cidade de Manaus. No terreno desnivelado, a casa da família ficava nos fundos e era ligada ao comércio, por uma longa escada lateral. Dentre os fregueses cativos, lá estava eu para adquirir coxinhas e risoles para os advogados. 
Despertei e percebi que a coxinha de galinha que havia adquirido na Conde era crocante, com recheio cremoso, mas não chegava nem aos pés das que família Chang produzia com muita dedicação e cuidado higiênico, em uma época que não se falava muito sobre o assunto. Mas as que comia eram de  trigo e àquelas eram de macaxeira. Mesmo sem saber, talvez a família Chang, tenha sido a introdutora de todas as outras coxinhas vendidas hoje em muitos locais e que as pessoas as saboreiam como se fossem originais: as originais, eram as que a família Chang vendia. 
Pelo menos eram mais gostosas e saborosas porque eram feitas com macaxeira e não com trigo!


Autor: Carlos Costa - Manaus/AM

Publicação autorizada pelo autor através de e-mail.

quinta-feira, 6 de março de 2014

A propósito, gosto da segunda-feira - Autora: Zélia Maria Freire

Tarde de Domingo. Estava aqui pensando no que pensar para escrever esta crônica, coisa do tipo tristeza...  Resolvi então escrever sobre as tardes de domingo; pra mim não   tem coisa mais triste  do que essas tardes, agora não me pergunte o porquê, não saberia dizê-lo.  Só acho que é triste porque é triste, tão somente. Por outro lado, Drummond diz que mais triste é não ter tristeza alguma .  Faz sentido – pensei. E  parti para curtir  a minha. Apanhei a “régua de exagerar distâncias” e me concentrei na dona saudade, lembrei de pessoas distantes e mesmo sabendo que elas de mim não sentiam a mesma saudade, não bateu tristeza nenhuma. Apelei para o amor, lembrei de alguém que já amei, quer dizer nem tanto assim, e nada! Tristeza nenhuma senti. Desisto, a noite está chegando, o domingo está se indo...  Volto-me para a leitura de Drummond é nele que as palavras fazem sentido quando afirma:  melhor é não venerar os códigos / de acasalar e sofrer. É viver tempo de sobra / sem que me sobre miragem.
A propósito, gosto da segunda-feira.


Autora: Zélia Maria Freire - Natal/RN
Publicação autorizada por escrito pelo autor da obra

Uma alma muito especial

Autora: Lenapena


De fato, ela nunca se foi. Na verdade, foi sim, mas sem ir.
Aquele domingo amanheceu ensolarado e gelado. Era 19 de julho de 1964.
Fazia uma semana que Ela havia sido internada.

Uma semana que passou lentamente, como se a areia da ampulheta do tempo, houvesse entupido a passagem dos segundos.

As notícias vinda do hospital, chegavam pálidas, não motivavam a confiança.
Mas a fé que morava em sua alma, teimava em reavivar-se a cada dia.
Confiante, mesmo com o medo a lhe sufocar o coração, ela pensava: "Ah, ELE, não vai fazer isso comigo. Melhor do que ninguém, ELE, sabe do amor que tenho por ela, e da necessidade vital dela em minha vida".
Essa esperança a fazia levantar-se todas as manhãs, daquela longa e interminável semana.
No alto dos seus onze anos e sete meses, ela sempre mostrou-se, mais madura do que a idade pedia. E aquela semana, contribuiu para que sua alma, amadurecesse o equivalente a um século.
Como não cogitava a vida sem Ela, pensava então ser impossível o desfecho fatal.
Algo naquele leito de hospital, iria acontecer, para restabelecer a saúde precária, Daquela que ela tanto amava.
Em seus verdes anos, pensava: "Como poderia a vida seguir sem Ela? Ela, era a bondade que a todos da família alegrava. Em seus olhos a generosidade se mostrava.
Em suas mãos a caridade morava. Mãos que se não estavam a afagar, estavam a tricotar enxovais de bebês, que com carinho, ofertava as mães desvalidas.
Então a vida sem Ela, não seria possível. DEUS, não iria abrir mão de tão amorosa colaboradora aqui na terra".
Mas, contra todos os seus pensamentos otimistas, argumentos de confiança, sentimentos de amor e fé, Ela, se foi.
Mas não de fato, porque de alguma forma Ela, sempre permaneceu.
O sol se escondia, calmo, lindo, de um dourado, nunca antes visto. Sentada na mureta da casa, ela o olhou até que os últimos raios dele, sumiram no horizonte.
Devagar, entrou na cozinha, e os ponteiros do velho despertador, em cima do guarda-comida, marcavam 5.20 (dezessete horas e vinte minutos).
Não foi preciso esperar até bem mais tarde da noite, para que vindo do hospital, um tio, lhe trouxesse a notícia, ela, já sábia.
Somente perguntou ao tio: "que horas, Ela partiu?" Ele, respondeu: "As 5.20".
Olhando o sol se por, com uma beleza nunca antes vista, naquele entardecer frio de julho, ela soube, que o astro rei, se fizera especialmente belo naquele poente, para receber em sua morada, uma alma muito especial.
E assim, ela, com o coração apertadinho, sumido dentro do peito, quase que viu, sem ver, quando sua MÃE, partiu ao encontro da outra dimensão.

Autora: Lenapena - São Paulo/SP 
Publicação autorizada pela autora

COMENTÁRIOS:

Carlos A. Lopes:

Seja bem vinda ao blog Lenapena
Um abraço

Maria Mineira:

Lena, minha amiga. Fiquei feliz ao vê-la aqui no blog Gândavos. Você consegue juntar amor, carinho,ternura e saudade e transformá-los em belos textos.
Parabéns e seja bem vinda!

Um rei degolado - Autor: Iratiense Joel Gomes Teixeira

À cada vez que eu cruzava em frente àquela loja, aflorava-me um velho sonho de consumo. Tão somente sonho, uma vez que o "produto monetário", quando aparecia arraigava-se aos bolsos de meu pai e dali não saía com muita facilidade.

Tinha eu entre meus 8 à 9 anos de idade, o desejo de montar um presépio nos moldes daquele que montava-se todos os fins de ano na casa de dona Avelina, nossa vizinha.

Fazia-nos companhia no jantar daquela noite, um compadre de meu pai. Aproveitei-me da ocasião e cantei a pedra:

-Quero comprar um presépio que vi na vitrine da loja tal,... Blá, blá, blá...Blá, blá, blá...

As respostas vieram-me feito um furacão:

-Endoidô, menino?... Isso custa caro! disse-me mamãe.

-Ele pensa que dinheiro "dá em pencas", enfatizou papai.

-Essa piazada de "hoje em dia" quer tudo o que vêem!... Complementou o medioso do compadre, quase engasgando-se com uma folha de alface. (Que eu havia plantado, diga-se de passagem).

Calado externamente, (proferindo milhares de impropérios em pensamentos) retirei-me da mesa e fui para o meu quarto. Como nunca fui de entregar o jogo no primeiro tempo comecei a arquitetar um plano e já na manhã seguinte estava eu, de casa em casa, vendendo ameixas pela vizinhança.

Em pouco mais de duas semanas havia conseguido dinheiro suficiente e mais algum excedente para uns consumismos extras.

Quase gaguejando, tal era a emoção, me dirigi ao balconista da tal loja:

-Quanto custa aquele presépio?

-Trinta e nove mil cruzeiros. Respondeu-me.

-Vou levá-lo.

Com uma certa desconfiança olhou-me, enquanto eu metia a mão no bolso retirando um calhamaço de notas esparramando-as sobre o balcão de vidro.

Sob o olhar atento de dona Tereza, a dona da loja, o balconista deu uma cusparada entre os dedos e começou a contar aquele "rolo" de notas, que ultrapassava o valor do objeto solicitado.

Com o excedente adquiri alguns agradinhos para o pessoal de casa. Retornei empurrando a bicicleta com todo o cuidado para não correr o risco de derrubar o precioso invólucro. Feliz, pelo caminho, sentia-me um bem sucedido empresário do ramo de "horti-fruti". No meu caso, tão somente "fruti" já que hortaliças eu as plantava apenas para consumo próprio. (e de  alguns compadres "mediosos" de meus pais).

Presépio montado. Obedecendo aos exageros de dona Hilda, minha  mãe, (montanhas, pontes, patos... folhagens, ninhos... Uma parafernália). Ficou bonito! Fez sucesso pela vizinhança. À cada novo ano, inovações eram introduzidas. O lago de espelho, plagiado da matriz de São Miguel, ficou um luxo. Alguém, meio desastrado, deixou cair sobre o mesmo uma pilha de lanterna. Abriram-se algumas rachaduras. Fiquei "P" da vida. Dona Hilda, com sua diplomacia, resolveu a questão.

-Não fiques zangado. Ficou até bonito! Estas rachaduras dão o aspecto de ondas no lago, não achas?

E assim, ano após ano, o presépio fora montado na sala de nossa casa.

O tempo correu, o menino esquivou-se e o adulto não tinha lá muita paciência para estas coisas. No entanto, mal dezembro começava a dar o ar de sua graça e a "apurrinhação" começava.

-Vê lá se vai dando andamento ao presépio, dizia minha mãe. Não deixes pra última hora, concluía meu pai.

-É verdade!... Já reservei um canto da sala  especialmente pra ele. Mexa-se! Determinações de dona Hilda.

E o mártir aqui, não tinha escapatória. No final das contas eu até acabava gostando de reviver aquele clima de tantos anos.

Inevitavelmente, as peças começaram a sofrer a ação do tempo. Algumas ranhuras, mutilações (a mula perdera uma das orelhas), uma ovelha quebrou-se e, numa queda, acidentalmente "Baltazar", um dos reis magos teve a cabeça decepada.

Uma catarata violentíssima acometera-se das vistas de meu pai. Este, antes da cirurgia que o "remoçou para a vida", segundo suas palavras, no intento de mostrar-se prestativo, apanhou um punhado de "durepox " e reconstituiu (?) o rei mutilado.

Seria cômico, caso não fosse trágico, mas o neblinado das cataratas fizeram com que a cabeça do rei fosse colada no sentido oposto.

Assim, aquele olhar respeitoso do bibelô, antes dirigido ao invólucro com ouro que levava como presente, apreciava agora tão somente a sua região glútea.

Papai, no melhor estilo "versátil da melhor idade", vangloriava-se:

-Tás vendo! Resolvi o problema do "reizinho". Ainda bem que hoje existem "estas colas modernas".

Foi o riso mais sufocado em toda a minha vida. Concordei para agradá-lo e fui saindo à francesa. Com uma serrinha de cortar cano, decepei novamente o "Balta" e com a "cola moderna" coloquei-lhe a cabeça no lugar. O pescoço sofreu uma ligeira diminuição, mas o olhar dirigia-se a partir daí para o ouro a ser presenteado.

Para encerrar o assunto, desde então, "Belchior", o do incenso, sumiu, escafedeu-se. Presume-se ter fugido horrorizado diante da atrocidade de  duas cirurgias, sem anestesia, sofridas pelo companheiro "Baltazar".

Mais alguns dias, e agora em nossa casa, o presépio às vésperas de seu cinqüentenário ocupará um lugarzinho na sala. A mula sem orelha, a ausência de algumas ovelhas, um anjo com ligeiras escoriações e, eles: Baltazar e Gaspar, preocupados ainda com o sumiço de Belchior, o fujão.


Autor: Iratiense Joel Gomes Teixeira - Irati/PR
Página do autor:
Publicação autorizada através de e-mail de 16/12/2011
PS. Quando  êste  conto  foi  escrito,o presépio  era  ainda  um  quase  cinquentão. Hoje, tem  êle, exatamente  52  anos.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Resenha do livro: Sombras e Assombrações


Autora do livro: Marina Alves

De leitura leve e extremamente agradável, Sombras e Assombrações, da escritora Marina Alves, encanta igualmente crianças e adultos. Tendo as tradições caipiras como pano de fundo, o livro é composto por vários contos divertidos, assustadores e interessantes, despertando a curiosidade e imaginação de quem lê.
A cada história a autora nos conduz com maestria; prendendo-nos de alguma maneira, pois há algo diferente, um tom único no seu modo de escrever, como só quem já ouviu causos depois do jantar, em volta do fogão à lenha, sabe contar.
Marina Alves cativa os leitores envolvendo-os em suas tramas de forma impar. Em Sombras e Assombrações, uniu realidade e ficção de forma impressionante. Em cada um dos contos há uma atmosfera propícia para o sobrenatural. Espanto e suspense na descrição esmerada de mistérios do além-túmulo onde a aparição de almas penadas, no meio da noite, assusta e aterroriza os incautos.
O livro é bem descritivo quanto aos cenários e conta com o trabalho de Antônio Oliveira no projeto gráfico e ilustrações, conferindo à obra uma estética diferenciada.  Dentre os vários contos destacam-se: “Terror na Capela” “O Homem da Perna de Ouro”, “Viajem para a Morte” “O Encontro com Isadora” “Mistério na Estrada de Ferro” “O Crime do Fazendeiro”...
A leitura é prazerosa do começo ao fim, propiciando visões macabras e sinistras, atestando a transitoriedade da vida, às vezes obscurecida pelas brumas do tempo fazendo o leitor sentir arrepios ao imaginar as visagens, assombrações e almas do outro mundo.

Autores da resenha:
Maria Mineira & Carlos A Lopes

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Sala de Espera

Autora: Marina Alves

Observo-o sentado a minha frente na sala de espera do consultório médico: cabelos brancos emolduram o rosto sereno, acentuado por sobrancelhas densas e cerradas a cobrir os olhos um tanto escondidos sob rugas, marcas do tempo... Aparenta mais de oitenta...
Uma ternura esquisita me invade. Demoro-me naquela figura: calça marrom tipo social — “bolso faca”, preguinhas e presilhas — cingida por uma “correia” preta e fina com fivela metálica prateada; camisa manga longa, azul-clarinha, muito bem passada a ferro, abotoada no colarinho e nos punhos; as mãos,  a direita apoiada sobre a esquerda, dormem num repouso tranquilo sobre um dos joelhos.
Escorrego os olhos para os pés: permanecem juntinhos, bem alinhados um ao lado do outro; sapatos pretos, bem engraxados, deixando aparecer as meias escuras. Distraio-me a adivinhar um pouco daquele homem que, não sei por que, me toca de maneira especial. Nada sei sobre este simpático senhor, mas vejo que está cercado por pessoas que o tratam com cuidado  e carinho. Reparo que a mulher mais velha, à direita, é a esposa. A jovem senhora e o rapaz de calça jeans e camiseta vermelha são filhos.
— Pai, firma o corpo — diz baixinho, a filha.
— Hein? — responde ele fracamente, pondo a mão em concha no ouvido.
— Tô dizendo que é bom o senhor apoiar as costas na cadeira. Sua coluna pode doer do jeito que está...
À recomendação da filha, ele não esboça qualquer reação. Ela insiste. Parece preocupada com o corpo dele, meio emborcado, ameaçando escorregar. Ela se levanta e o ajuda a se recompor na cadeira. Ele  sorri levemente, num mudo agradecimento. Volta a ficar em silêncio. O burburinho das pessoas na sala não lhe chama a atenção. De súbito, aponta para o corredor e indaga:
— Por aí , a gente vai aonde?
A esposa se apressa:
— É a entrada, meu velho. Foi por aí que a gente chegou, e  é por aí que a gente vai sair, quando o médico lhe olhar... A porta fechada é a do consultório. O médico tá lá dentro...
Por um instante ele parece aflito. O filho intervém, no intuito de acalmá-lo:
— Já tá chegando sua vez, pai... Daqui a pouquinho, viu?
Ele retoma a posição anterior e volta ao seu mundo particular. A esposa percorre com o olhar os circunstantes e com voz trêmula e entrecortada por uma emoção que  mistura pesar e orgulho, vai dizendo:
— Ele era caminhoneiro. Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Ceará, Maranhão, Mato Grosso, eram lugar pertinho pra ele. Viajava sozinho e Deus aí por esse Brasil afora...
Um silêncio frio, cortante, quase dolorido pesa na sala. A emoção toma conta de mim  e de todos que ali estão. Disfarço, desviando os olhos para um galho de jabuticabeira que aponta numa nesga da janela. Não quero chorar diante deste homem que, depois de conhecer todos os rumos do Brasil, já não reconhece a saída da sala onde está...

(Natal é tempo propício para as reflexões, inclusive, sobre a efemeridade do homem neste plano terrestre. Que seja bem vivido cada momento oferecido).


Autora: Marina Alves - Lagoa da Prata/MG

Página da autora:

http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=64920

Publicação autorizada pela autora

Dagoberto

Autora: Helena Frenzel

SÃO da fazenda as primeiras lembranças que tenho. Acho que foi lá que nasci. Éramos muitos e de várias procedências. Minha mãe e meu pai também perambulavam por lá, mas não havia fortes laços entre nós, algo que nos unisse além da luta pela vida. Era cada um por si e os donos da fazenda por todos.
A vida por lá até que não era má. Os donos eram bons para conosco. Nos acolhiam. Deixavam-nos ficar, davam-nos abrigo e comida, tudo isso em troca de pequenos trabalhos. Roedores e outros pequenos animais eram para os fazendeiros uma peste e nós os ajudávamos a espantá-los, além de vigiar as vacas, pois no curral, junto a elas, era onde dormíamos. Ah, aquele cheiro de esterco fresco nunca me saiu da cabeça... Gosto de cheiros de fazenda.
Ainda pequeno apareceu uma família para me adotar. Os fazendeiros não se opuseram. Até mesmo porque éramos numerosos e, por mais que fossem bons, éramos também muito custosos para eles. Nos acolhiam porque eram gente de bom coração.
Se bem que por aqui, outros iguais a nós, que nascem sem um lar, não perambulam muito tempo pelas ruas sem eira nem beira. Se não houvéssemos encontrado guarida nos celeiros e currais desta fazenda, por certo estaríamos em algum abrigo desses espalhados pela cidade. Ouvi dizer que a vida nos abrigos era muito mais triste do que a que levávamos na fazenda.
Bem, isso ouvi da família que me adotou. Estava feliz com a chance de um novo lar, porém minha alegria durou pouco. Os filhos naturais, pequenos todavia malvados, tornaram minha vida um inferno. Usavam das brincadeiras para judiar de mim. Vivia tão assustado que só a proximidade dos pequenos fazia-me urinar as próprias pernas. Retraí-me cada vez mais.
Pouco tempo depois a família arrependeu-se e devolveu-me à fazenda. Essa rejeição fez-me amargo e arisco. Seus resquícios marcaram minha alma para sempre e inda hoje dão o tom do meu jeito de ser. Vai ver é por isso que sinto-me como pisando em ovos quando crianças estão por perto.
De volta à fazenda — ainda bem que os donos me aceitaram — tratei de readaptar-me. Não foi tão difícil. A vida por lá era dura, mas eu era feliz. Não passava bem, mas também não passava mal. Era livre, podia correr solto pela campina sempre que me desse vontade. E não há maior bem do que a liberdade. Sentia-me aceito pelos fazendeiros e feliz entre meus iguais.
Uma bela tarde ficamos muito ouriçados ao ouvir rumores de uma conversa entre os fazendeiros e um homem, um tal que sempre os visitava. Falaram em “vontade de adotar”. Combinaram com os fazendeiros voltar no dia seguinte para dar uma olhada na gente. A mulher do fazendeiro parecia estar feliz. O homem era amigo deles e de sua aura emanavam coisas boas. No entanto, a princípio, mantive a desconfiança. "Gato escaldado tem medo de água fria."
No dia seguinte não apareceu ninguém. Meus pares pareciam excitados, ansiosos. Eu esforçava-me para “não estar nem aí”. Os mais velhos, esses eram indiferentes pois sabiam que o interesse sempre se voltava para os mais jovenzinhos.
No final da semana, quando não mais esperávamos, o casal apareceu. Eu os observava de longe. Ficaram por ali, fazendo gracinhas, tentando fazer contato. Ouvi a esposa do homem dizer que era só uma visita e que éramos todos “muito bonitinhos”. Conversaram muito com os fazendeiros, andaram por toda a fazenda, visitaram o celeiro e o curral, conversaram com as vacas, fizeram-lhes carinho...
Da esposa do homem emanava também um sentimento bom, o mesmo tipo de bondade que vinha da mulher do fazendeiro. Por isso, na hora da distribuição da comida, que a mulher do fazendeiro fazia ao final de cada dia, senti diminuir meu receio e aproximei-me da estranha.
Nossos olhares se cruzaram. A mulher tinha uns olhos doces, através dos quais se podia ver. E no brilho negro de suas pupilas espelhei-me. Seria possível que nos entendêssemos, que buscássemos as mesmas coisas? Na escuridão do fundo daquele olhar vira eu muitas possibilidades.
Ela aproximou-se, tentou tocar-me. Não me esquivei. Perguntou-me: “Queres vir com a gente?” Encabulado, assenti com a cabeça. Ouvi a mulher do fazendeiro dizendo que a adoção viria a calhar, já que o casal não tinha filhos. Isso encheu-me ainda mais de esperança. No mesmo dia levaram-me com eles para sua casa.
As primeiras semanas não foram fáceis, como o são períodos de adaptação; embora a energia da casa fosse muito boa e todos me recebessem com muito carinho. Além do casal, havia também os pais do homem. Ouvi a mulher comentando que temia a reação do sogro. Mas tendo ele também me recebido muito bem, o clima desanuviou-se, tornando-se mais uma vez puro e límpido.
O tempo foi passando, laços se criando e apertando. A família me respeita. Amam-me e querem-me do jeito que sou.
Não sei exatamente o dia do meu aniversário. Sei que nasci num dia qualquer num mês de agosto. Mas isso não me importa. Conto meus anos a partir do dia em que essa família me adotou, 7 de novembro de um ano iluminado.
Conservo meu sentimento de liberdade, podendo ir e vir como e quando bem entender. Não dou trabalho. Se bem que no início de nosso relacionamento — numa reação natural de quem já sofreu muitas rejeições na vida — tentei mostrar-lhes logo o que tinha de pior, uma forma de testar se me queriam mesmo, exatamente do jeito que eu vinha.
Para minha surpresa, foram muito pacientes e compreensivos. Deram-me tempo para que em minha alminha ferida brotasse a confiança em seu amor por mim. Por vezes até me agradeceram por eu os ter escolhido como família. Fiquei comovido.
Com o tempo e a segurança, não houve mais em mim alimento para o mal, e o bem floriu. O amor que me dão, recebo alegremente e retribuo com prazer. Sou parte da família. Todos gostam de mim e muitos me elogiam. Dizem que demonstro saber muito bem o que quero, que sou independente e esperto como nenhum outro.
Quando me meto em confusão, desde que não tenha sido eu o culpado, há quem me defenda. O sogro — que um dia temeram vir a não gostar de mim — hoje é o primeiro a se levantar para me defender quando os gatos da vizinhança, maiores do que eu, se metem a besta e vêem aqui me bater. Sim, sou um gato. Mas isso não desvirtua nem diminui a minha história. Sou um gato amado, sortudo e feliz.


Autora: Helena Frenzel - Alemanha


Página da autora no Recanto das Letras:




Publicação autorizada pela autora


Publicado originalmente no Recanto das Letras sob o Titulo Uma Família Para Mim em 02/06/2009. Código: T1628086. Também é parte da coletânea de narrativas Perfis Interessantes.