Autora: Michele Calliari Marchese
Lenise sentou-se na cadeira de palha da varanda de
sua pobre casa. Era tardinha e os filhos estavam brincando. Três ao todo e o
quarto na barriga. Entregou-se àquele entardecer como se fosse o último. Fechou
os olhos e acariciou o ventre com amor. Sentiu o vento no rosto a enxugar o
suor da lida e do abandono.
Sentia-se fatigada de tanto pensar, com o peito em
dor doou-se por inteira ao destino que se lhe abria de uma hora para outra,
exatamente no momento em que o marido fora internado em algum hospital da
capital pela perda do juízo. Bebia muito aquele homem e se por um lado
sentia-se aliviada com a internação, por outro lado sentia-se só com todas as
responsabilidades do porvir.
Sabia que não tinha condições de fazer o trabalho
do marido naquele fim de mundo e a gravidez em estado avançado não lhe permitia
pensar no que aconteceria com os outros filhos. A dor foi tomando conta de todo
o seu corpo, como uma vertigem lenta, antecipando todos os sofrimentos que
teria de passar. Já tinha avisado os parentes, dela e dele. Por certo haveriam
de ajudá-la de alguma maneira, visto a situação chegar aonde chegou.
Escutou os gritos dos filhos a reclamar de fome e
levantou-se num ímpeto. Esquentou o que sobrara do almoço e alimentou um a um
sem pensar em si e o que restou – parcas migalhas - foi o que comeu, em
prioridade daquele que viria, porém a sua única vontade era de mudar tudo e
todas as coisas, ou simplesmente não comer nunca mais.
Agarrou-se ao sentimento mais profundo da vida e
seguiu adiante; limpou a cozinha e tratou dos outros afazeres que exigiam
urgência. “Todos tão pequenos” ela pensou, e as lágrimas lhe escorreram pelo
rosto cansado da juventude. Tentaria fazer o melhor que pudesse, até a chegada
do neném.
“Quatro filhos!” Disse em voz baixa num desespero
de agonia. Ainda bem que o marido estava internado sem previsão de voltar,
porque se ali estivesse, lhe meteria o quinto filho barriga adentro. Não
aguentava mais tanta miséria.
“Todos descalços!” E recomeçando o choro dolorido e
incontrolável foi até a janela para respirar o ar que lhe faltava. Ela passou a
mão no rosto para afugentar tanta fraqueza e em seu íntimo sabia que mesmo que
a família chegasse seu sofrimento não terminaria ali. Não tinha condições de
manter os filhos por muito mais tempo e não saberia como teria aquele que iria
nascer. Era o marido que trazia a parteira, era o marido que lidava com quase
tudo o que existia fora de seu mundo, não sabia como fazer para alimentar as
crianças com outras coisas que não tinham em casa.
Era difícil imaginar uma caminhada a pé com todas
aquelas crianças e todas descalças, inclusive ela própria, até a cidade para
pedir ajuda. Era difícil a sua vida de mãe.
Foi quando ela sentiu as dores do parto e as
crianças choravam que apareceram seus familiares, dois irmãos e um cunhado. Sem
muitas explicações, ajudaram-na durante o parto, deram de comer aos pequenos e
trataram de cuidar o que jazia abandonado.
Vieram com um taxi da cidade, colocaram todos
dentro, quase nenhum pertence fora levado e o bebê estava enrolado num lençol
surrado e muito velho.
Naquela noite, na casa de uma irmã de Lenise, tudo
estava bem e morno como um aconchego. Os filhos dormiam com os primos, tinham
tomado banho e comido muito bem e então chegou a hora da verdade. Ficaria ali
para sempre se pudesse, porém não podia. A irmã disse que conseguiria criar um
dos filhos da Lenise sem problemas, inclusive dando-lhe educação, e ela
arregalou os olhos diante daquela proposta impensável.
Era muita dor em seu coração quando o cunhado disse
que levaria dois para o Paraná - onde morava – e o outro ficaria com o outro
irmão de Lenise até que a situação melhorasse para que pudesse então juntar
seus filhos. Não poderia vender aquele pedaço de chão sem a assinatura do
marido. Teria que trabalhar em algum lugar até que ele voltasse da internação,
se é que voltaria algum dia.
Segurou o bebê junto de seu coração, acordou os
outros filhos e despediu-se deles sem chorar, sem lamentar e sem se desculpar.
Precisava mostrar que a mãe deles era forte o suficiente para aguentar tantas
provações e eles precisavam saber disso e tinham que esperá-la.
Foi-se embora no meio da noite, porque sabia que se
ficasse não teria coragem de deixar os filhos com os outros. Escutou os gritos
e os choros e pôde sentir as lágrimas deles dilacerando a sua alma. Não
conseguiu olhar para trás.
Precisava fazer aquilo para poder ajudá-los e para
que pudesse continuar vivendo. Foi dormir na casa de uma mulher sua conhecida
da infância e no dia seguinte, com os peitos vazando leite, porque não tinha
mais como dar de mamar, porque seu bebê havia ficado, porque ele não
conseguiria resistir à dura empreitada consigo, porque ela os amava demais para
deixa-los morrer a míngua e foi pedir emprego de casa em casa, de comércio em
comércio e no fim de uma semana conseguiu. Dormiria no emprego, porque não
tinha lugar para dormir e olhou admirada aquela alma auxiliadora trazendo um
par de chinelos para calçar.
O marido nunca mais voltou e um Juiz concedeu-lhe,
quinze anos depois, o direito de vender as terras que tinham, e foi o que ela
fez. Tentou a todo custo que seus filhos voltassem para junto dela, mas o que
conseguiu foi uma casa vazia. Completamente vazia.
Nenhum dos filhos quis voltar. Os dois menores não
a reconheciam como mãe mesmo sabendo que ela era a mãe deles e os dois maiores
não entenderam nunca a atitude dela naquela noite de abandonos.
E então Lenise sentou-se em sua cadeira nova de
palha na varanda. Respirou pela última vez o entardecer. Fechou os olhos e
acariciou o ventre daqueles quatro filhos que nunca esqueceria em sua vida.
Sentiu o vento em seu rosto, mas ele não foi capaz de enxugar as lágrimas do
seu coração.
Michele Calliari Marchese é catarinense de Xanxerê. Formada em ciências contábeis, é contista semanal do Jornal Diário Folha Regional de Xanxerê - SC, mantém uma escrivaninha no site Recanto das Letras e no blog Sem Vergonha de Contar. Participou com contos nos livros UFOs - Contos não identificados e Espectra, ambos pela Editora Literata de SP, do Livro dos Prazeres editado pelo SESC de Santa Catarina e no E-book Quinze Contos Mais pela editora Helena Frenzel.
Michele Calliari Marchese é catarinense de Xanxerê. Formada em ciências contábeis, é contista semanal do Jornal Diário Folha Regional de Xanxerê - SC, mantém uma escrivaninha no site Recanto das Letras e no blog Sem Vergonha de Contar. Participou com contos nos livros UFOs - Contos não identificados e Espectra, ambos pela Editora Literata de SP, do Livro dos Prazeres editado pelo SESC de Santa Catarina e no E-book Quinze Contos Mais pela editora Helena Frenzel.
Puxa! De arrepiar porque a narrativa nos põe na pele e na dor da protagonista e uma mãe, de fato, nunca abandona seus filhos, ela só aceita a separação por motivo de força maior, até para a sobrevivência dos rebentos. Homens, sim, são capazes de abandono sem dó, mas uma mãe, não consigo conceber que consiga esquecer de quem gerou. É uma dor para o resto da vida e dessa protagonista senti muita dó. Deve ter sido muito difícil colocar esta história comovente no papel. Muito bem, Michele, muito bom.
ResponderExcluirBom dia Michele. É um belo conto, texto forte e muito triste mas é uma realidade cruel que faz parte da vida de muitos do nosso povo brasileiro. Abraço.
ResponderExcluirOlá, Michele!
ResponderExcluirVocê conseguiu numa narrativa comovente, emocionante, ficar acima dos valores de juízo, isentando-se de influir no enredo com opiniões próprias e assim deixando a cargo do leitor, a reflexão sobre todos os vieses que permeiam a história de vida do personagem central. Muito bom, mesmo, gostei muito.
Um abraço
Celêdian
Bom dia, Michele! Um conto comovente que toca o leitor no fundo da alma.Pensar que há inúmeras mães que precisaram abdicar dos filhos para que não morressem. Parabéns! Abraço aqui da Canastra.
ResponderExcluirGente, obrigada pelas palavras! Beijos!
ResponderExcluirMichele C.Marchese