Suzo Bianco
Reviver
aquilo, que nos aconteceu quando nos conhecemos, me traz um misto de nostalgia,
melancolia e felicidade, mesmo depois de tantos anos.
Eu
caminhava sem rumo por uma passarela de madeira suspensa, desses tipos de
caminhos construídos sobre plantas e moitas, no intuito de sentir melhor o
bosque sem formar trilhas. Era um lugar lindo e calmo, chamado Por da Lua, uma
área grande de mata preservada bem no coração da cidade de Clinzândia, ao norte
do Deserto Cinzento, lugar esse que quase ninguém ousava mencionar.
Por
da Lua era um parque bastante procurado por todos devido sua essência mágica e
qualidade calmante, sob as copas verdes, as pessoas se sentiam mais relaxadas,
abrigadas, tranquilas para caminhar e caminhar sem rumo certo, aproveitando a
atmosfera entorpecente a qualquer hora do dia.
Bom
exemplo desse costume era eu mesmo, que mesmo sob o manto imperioso da noite e
da luz fantasmagórica da soberana Lua, andava a passos lentos, fazendo ranger
as ripas de madeira, pensando em nada demais, apenas uma sombra ambulante em
meio aos focos de luz branca, derramados pelos postes que se dispunham de
metros em metros, de cada lado da trilha. Foi quando avistei o Coreto da Lua.
Um
lugar aconchegante e fresco, todo branco, muretas bem trabalhadas com
ornamentos que, num padrão suave, lembravam folhas de árvores e animais
silvestres. O telhado era bem cuidado, a tinta anil das telhas ainda parecia fresca,
embora coberta por folhagem seca, plantas rasteiras e trepadeiras. Em seu cume,
um cata-vento na forma de uma Lua prateada girava lentamente ao gosto da brisa
noturna. E sob o telhado, lá embaixo, bancos curvos, moldados de forma que
acompanhassem a curvatura do coreto, convidavam silenciosamente os possíveis
transeuntes a algumas horas de meditação ou reflexão. E isso fazia todo
sentido, já que, quando ali cheguei, percebi uma jovem de cabelos longos e
escuros. Sentada, cabisbaixa, concentrada em um ponto invisível no meio do
pequeno salão que o coreto disponibilizava, ela nem sequer notou quando me
aproximei. Parecia triste, e associei aquela situação com a do homem que ia
embora, por outra abertura, também de ombros caídos, quieto e aparentemente
melancólico.
Possivelmente
a moça sentia algum recente aperto no peito ou decepção amorosa.
Pensei
em abordá-la com um cumprimento reconfortante quando ela de repente me notou,
com olhos arregalados, fazendo-me estacar em meu lugar. E ali de pé, vi a jovem
espiar mais uma vez o homem, que se distanciava por outra trilha suspensa do
bosque, como se não acreditasse no que lhe estava acontecendo. Ela tornou a
reparar em mim, como se eu fosse algum tipo de fantasma. Antes que ela pudesse
dizer algo, arrisquei:
— Parece
triste, posso lhe ajudar?
— Quem
é você? – Ela logo perguntou.
— Ninguém,
eu estava apenas caminhando quando a vi aqui e... Pareceu-me triste.
— Na
verdade não. – Sorriu. – Não estou triste. Estava apenas pensando na loucura
que acabou de me acontecer, quando você apareceu. E, sinceramente, isso só me
deixou mais confusa ainda.
— Não
entendi.
— O
homem que acabou de sair daqui.
— O
que tem ele, era seu namorado, ou algo assim?
— Não
sei o que dizer, não agora, depois que você apareceu.
— Não
compreendo.
— Era
um senhor, um senhor de meia idade, gentil, mas de olhar tristonho. —
Percebendo que eu ainda não a entendia, explicou: - Bem, eu estava aqui, lendo
meu querido diário, quando ele apareceu, bem ali. — Apontou para a outra
abertura do coreto. — Ficou me olhando como se me conhecesse há anos, olhos
cristalizados de lágrimas. Fiquei um tanto desconsertada, assustada até, não
sabia o que fazer ou o que falar quando ele me disse: “Sei que deve estar
assustada, sei que não me reconhecerá, sei que deve me achar um mendigo louco
ou algo assim, ou só um velho carente e esquisito, sei que provavelmente irá
ignorar esse encontro daqui algumas horas, sei de tudo isso, mas ainda tenho
esperança de realizar meu sonho, de lhe abraçar pela última vez e de me lembrar
como eu poderia ter sido feliz, e desperdicei isso...” Então ele chorou
abertamente, de maneira tão tocante que me apiedei e o abracei com toda a
sinceridade que eu poderia oferecer. Ele então me afastou gentilmente, e disse:
“podemos dançar?” Sorri, limpei minhas próprias lágrimas e dançamos por um tempo,
como pai e filha que há muito tempo não se viam. Até que nos afastamos. Ele me
olhou nos olhos. “Obrigado, e me perdoe, minha querida. Adeus!” – Sorriu a
jovem ao lembrar daquilo. – Então ele simplesmente foi embora, quando você
chegou.
— Nossa!
— Falei, me aproximando. — Que estranho. — Tomei coragem e me sentei ao lado
dela. Era linda. – Essa cidade é cheia de gente maluca.
—
Tem razão! — Ela concordou, voltando a sorrir.
Nossos
olhos brilharam naquele momento; os dela eu pude ver, os meus eu mesmo os senti.
Naquele
dia nunca poderia imaginar que aquela jovem se tornaria a minha companheira, amada
de uma vida inteira.
Tivemos
muitas coisas juntas depois daquilo; alegrias, viagens, lembranças, tristezas e
arrependimentos. Eu mesmo, hoje, reconheço o quanto a fiz mal. Pois com o tempo
a paixão diminuiu, e isso me distraiu. Tornei-me negligente, arrogante, iludido
e idiota. Ela, coitada, acompanhou minha áurea tornando-se tão tola quanto eu.
Começamos a brigar demais, a discutir demais, a querer sem merecer demais, até
que num dia fatídico, minha tão amada companheira veio a falecer num acidente
de balão.
Ela
só queria ver a Lua mais de perto, para ver os problemas mais de longe.
Aquilo
viria a me recuperar do modo mais doloroso possível. Passei desesperadamente a
procurar uma forma de reverter àquela situação, a da morte de alguém que eu não
soube aproveitar, amar, enquanto viva.
Procurei
tanto que acabei achando.
Uma
bruxa, oriunda das cavernas do Deserto Cinzento, ficara sabendo de minha agonia
e me propôs um acordo:
— Se
o senhor me der sua vida, posso fazer com que você a veja mais uma vez, e
assim, além de revê-la, poderá finalmente descansar em paz...
E
inundado de tristeza, movido pela dor da perda e do amor perdido, aceitei o
acordo.
Fui
levado para o passado, e a revi.
Linda,
sozinha, minutos antes de me conhecer, sob aquele lindo coreto mágico. O
primeiro contato quase me fez gritar de dor e saudade saciada. Mas não podia. Enchi-me
de coragem, aproximei-me e lhe disse:
— Sei
que deve estar assustada, sei que não me reconhecerá, sei que deve me achar um
mendigo louco ou algo assim, ou só um velho carente e esquisito, sei que
provavelmente irá ignorar esse encontro daqui algumas horas, sei de tudo isso,
mas ainda tenho esperança de realizar meu sonho, de lhe abraçar pela última vez
e de me lembrar como eu poderia ter sido feliz e desperdicei isso.
Então
desabei abertamente, de maneira tão tocante que me senti uma criança
arrependida por ter feito algum mal imperdoável.
Ela
me abraçou, com força. Eu a afastei gentilmente, falando:
— Nós
podemos dançar?
Ela
sorriu, limpou suas próprias lágrimas, e dançamos por um bom tempo, até que nos
afastamos. Eu a amava, imensamente, e sem poder me revelar só pude olhá-la nos
olhos:
— Obrigado,
— Suspirei controlando meus sentimentos que pareciam querer-me afogar. — E me
perdoe, minha querida. — Me virei de vez, para evitar novo pranto aberto.
Apenas conseguindo murmurar minha última palavra, aquela que há anos não pude
ter dito:
— Adeus!
E
agora, mesmo prestes a doar minha vida para aquela bruxa, reviver aquilo, que
nos aconteceu quando nos conhecemos, me traz um misto de nostalgia, melancolia
e felicidade, mesmo depois de tantos anos.
Autor: Suzo Bianco - São Paulo/SP