Autor: Alberto Vasconcelos
A lua prateava a estrada naquela noite fria e eu morrendo de fome, botei tudo o que a mercedinha aguentava para chegar logo em Caruaru.
Sozinho
na boleia iluminada pelas lâmpadas do tabelier e pelo luão bem em minha frente
eu pensava na ironia da minha situação.
Azul de
fome e carregado com duzentas e sessenta sacas de feijão. Se botasse na panela,
aquele feijão iria me alimentar pelo resto da vida toda.
A
mercedinha com capacidade para dezesseis toneladas chega parecia uma pata
choca, abaixadinha por causa do peso.
Quando
peguei a serra do mimoso, senti o motor perdendo força. Não era falta de óleo
porque os tanques estavam cheios até a boca.
A
mercedinha fazia seis quilômetros por litro. Com os trezentos litros que eu
tinha, dava para rodar mil e oitocentos quilômetros, quase duas vezes do Recife
até Afrânio, que é a última cidade de Pernambuco. Depois de Afrânio não existe
mais nada porque lá é o fim do mundo.
Será que
eram os bicos injetores entupidos pela má qualidade do diesel, quase sempre,
adulterado?
Só um
mecânico é que saberia responder. Desci a serra na banguela para pegar
velocidade. Quando cheguei lá em baixo, engrenei uma terceira porque eu
esperava que, com o tranco, fosse jogado fora o que estivesse entupindo os
bicos. Mas a minha manobra não deu certo. O motor tossiu umas três vezes
e morreu. Para não ficar parado na estrada, dirigi a mercedinha para o
acostamento e puxei travão.
Aqui prá
nós, eu só sei consertar fusquinha, daqueles com vela, condensador e platinado.
Sei desmontar e montar o carburador com uma faca de mesa, mas mesmo assim, levantei
o capô e fiquei olhando aquele filho duma égua que tinha me deixado, morto de
fome, na estrada no meio do nada.
Era o
mesmo que olhar para um dinossauro bêbado, deitadão, quente e fedorento.
- Tá veno
u quê aí, moço? (o susto que eu levei, chega me deu um formigamento das pernas
subindo pelas costas)
- O
motor parou. Que susto o senhor me deu. Eu pensava que estava só na estrada...
- Nói
nunca tá só não. Principarmente quano si tem amigo, né não?
- É, eu
acho que o senhor tem razão.
- U sinhô
tem as ferramenta, mode cunsertá esse bichão?
- Prá lhe
ser franco, eu nunca mexi na maleta de ferramenta desse caminhão. Não sei o que
tem dentro dela, porque eu pego a mercedinha já carregada, faço as entregas,
depois trago de volta e só pego outra vez quando já está pronta para viajar.
- Qué
dizê que voimicê é impregado do dono?
- É mais
ou menos isso. Eu recebo por serviço prestado depois de feito.
- Hum!
Qui nem meieiro?
- É, é
assim mesmo. O senhor sabe dizer se tem algum mecânico ou oficina aqui por
perto?
- Ói,
Timoti, meu fio é mecânico de casa de farinha. Mai vez pru ôta ele arruma
seiviço di carro.
- E onde
é que ele mora?
- Ele
mora mais eu, é aqui bem pertim. Eu vô chamá ele modi ajudá o sinhô.
Antes que
eu pudesse dizer qualquer coisa, o homem meteu-se no mato da beira da estrada.
Algum tempo depois, ouvi o som de um trator e os dois homens chegaram para meu
alívio.
- O
senhor voltou logo.
- É qui
nói mora aqui pertim in Serro Azul...
- Nunca
ouvi falar.
- Oxe! É
logo atrai desse morro. Todo mundo conhece. Vamo imbora arrebocá esse bichão
qui é pru mode o sinhô cume e acabá cum essa cara di fome. Zefinha fêi angu.
Nói come cum charque na brasa e café.
- Não
posso deixar de aceitar essa oferta. Estou mesmo com uma fome do cão...
Amanhecia
quando cheguei ao pátio da transportadora. O vigia, despertado pela buzina da
mercedinha, veio abrir o portão.
- Chegou
cedo, não foi?
- Que
nada, estou é atrasadão. A mercedinha me deixou na estrada ontem de noite. Não
fosse o mecânico que caiu do céu para me ajudar, eu ainda estaria penando
quebrado na beira da estrada.
- É. Faz
muita falta a pessoa não saber mexer nesses carros novos.
- Pois
você pode acreditar. Quem consertou a mercedinha foi um mecânico de casa de
farinha.
- Oxe!
Onde você arrumou um, isso ainda existe?
- Em
Serro Azul...
- Serro o
quê? Onde é que fica isso homem...
- Logo
abaixo da serra do mimoso. Eu estava olhando o motor quando seu Zé Ferreira, um
senhor gordo e brincalhão, apareceu para me acudir.
- Ele é o
mecânico?
- Não. O
mecânico é Timóteo Ferreira, filho dele. É um rapaz magro, ainda bem moço, com
um sinal de cabelo nas costas da mão direita. Seu Zé me levou para comer na
casa deles e Timóteo rebocou a mercedinha com um trator velho. Quando eu sair
daqui mais tarde, vou voltar lá porque tem festa da igreja na rua. Comi uns
beijus feitos por dona Judite, mãe do seu Zé Ferreira. Uma velhinha animada que
está trabalhando numa das barracas da quermesse que o padre Vicente está
fazendo para juntar dinheiro para pintar a igreja. Fiquei na festa até de
madrugada. Arrumei até uma namorada, Maria Edite, e vou me encontrar com ela
junto da barraca de tiro ao alvo.
- Olhe
meu amigo eu não quero lhe chamar de mentiroso. Mas o Timóteo Ferreira que você
descreveu e que foi mecânico de casa de farinha, morreu faz uns dez anos. Ele
vivia no abrigo espírita d’ali da esquina e sempre que alguém se dispunha a
ouvi-lo, contava as histórias de uma tal cidade, cidade não, arruado, chamado
serro azul, já a essa altura feita em ruínas pelo abandono dos moradores. Quando
ele morreu tinha mais de noventa anos...
Autor: Alberto Vasconcelos - Santo André/SP
Página do autor:
Autor: Alberto Vasconcelos - Santo André/SP
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GLOSSÁRIO
Banguela
= ponto morto no jargão caminhoneiro
Mercedinha
= caminhão Mercedes Benz
Tabelier
= painel de automóvel
3 comentários:
Esse conto é ótimo! Super criatividade do autor ao colocar esse gentil mecânico na história. E esse final ficou excelente.O Glossário também ajuda muito o leitor não familiarizado com as falas regionais. Parabéns a quem escreveu o conto!
Uiiiiiiiiii!!! Finalizo com um arrepio, sob o impacto desse inusitado final. Conto pra lá de bem escrito! Destaque para o cuidado especial em não entregar o ouro ao leitor, que vai até à última linha, querendo saber no que deu o causo. Parabéns ao autor ou autora! Marina Alves.
Texto interessante e bem escrito, parabéns ao autor ou à autora :-)
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