- Cada
louco com a sua mania – resignou-se o amigo, diante da resoluta decisão daquele
herdeiro maluco. – Andar por estas estradas poeirentas e vasculhar cada
centímetro destes casebres, à procura de sabe-se lá o quê, só para fazer a tua
vontade, ainda vá lá, mas morar aqui, contigo? Nem pensar! Fica aí, com as tuas
ruínas, que tanto te encantam, que eu volto hoje mesmo para casa. Isto não é
lugar de gente viver. Meus pés ainda tem muito chão novo para pisar e fazer
história.
- Pois eu
gosto de pisar no que já foi, bem o sabes. – Respondeu o jovem e determinado
milionário. - Não nasci para o que ainda é. Porque todo chão batido contém a
vida dos pés que o pisaram e eu, pisando-o, continuo-a, por eles. Porque toda
ruína tem história e eu que não tenho nenhuma, tenho-a toda. Sinto que
encontrei o lugar que tanto tenho procurado e é aqui que eu quero viver.
Despediram-se,
e a última lembrança que o amigo levou de si, foi o aceno avermelhado de sol
poente e pó, enquanto deixava para trás aquele amontoado de escombros, de um
lugar que um dia poderia até ter sido uma cidadezinha razoável, mas que naquele
momento não comportava mais que uns gatos pingados de almas, em pleno sertão
pernambucano. Estava cansado das inúteis tentativas de fazer do amigo um
companheiro de viagens normais, onde visitassem praias, montanhas, bons hotéis,
ao invés de acompanhá-lo em peregrinações bizarras por locais inóspitos e a se
misturarem com gente pobre e suja. Sentiu certa pena de perder o patrocinador
de suas aventuras, mas não aguentava mais sufocar a própria personalidade, para
embarcar na busca incessante do elo perdido daquela mente desajustada.
O jovem
Plínio Moreira de Castro, proprietário de boa parte da fortuna de uma
tradicional família sulista, há muito deixara de se importar com os negócios do
pai, não porque fosse perdulário, mas por pura inaptidão empresarial. Desde
muito moço pôs-se a viajar, a fim de conhecer outros lugares e outras culturas,
sobretudo os sítios arqueológicos, sua grande paixão. Numa dessas viagens
conhecera o amigo que, percebendo seu desprendimento e generosidade, logo o
convencera a financiar sua preciosa companhia. Depois de correrem o mundo acabaram
por regressar ao Brasil para, desta vez, se embrenharem pelos sertões, de norte
a sul. Gostava de pesquisar, (e aí o tédio do amigo), a vida dos sertanistas,
da gente pobre, sofrida, de vilarejos abandonados. Era nítido o fascínio que
lhe exerciam as casas vazias de paredes semidestruídas. E tijolos quebrados.
Quando
chegara a Brejo Santo, dias antes, sentira-se rasgar por dentro, ao deparar-se
com aquele cenário de destruição e abandono, que, de maneira tosca,
lembrava-lhe a emoção das primeiras ruínas que, um dia menino, viu, alhures,
sendo a única diferença que estas eram ruínas de pobres inda vivos, e aquelas
de nobres de outros séculos. Mas o que foi é sempre o mesmo. Não se sabe por
qual obra do destino, viera aquele restolho de cidade, aquela carcaça concreta
de bicho feito e desfeito pelo homem, aquela morte respirando vida,
emaranhar-se em seu desassossego e aquietar-lhe a alma. A empatia com a família
que lhe dera abrigo foi imediata. Sentiu-se acolhido, como nunca antes na vida.
E a necessidade de estar ali, ao lado daqueles sobreviventes, e ouvir as suas
histórias, foi de tal modo impactante, que simplesmente resolveu fincar raízes.
O velho
Jeremias, dono do casebre que lhes serviria de pousada, assim que avisado da
presença de dois visitantes, aparecera à porta, limpando as mãos na velha calça
de brim surrado e oferecera-lhes mãos, coração e sorriso, numa calorosa
recepção, como só os verdadeiramente humildes a sabem fazer. Enquanto D.
Jurema, a mulher, preparava a pouca comida de que dispunha, Jeremias
convidava-os a sentar-se nas cadeiras do alpendre, a fim de “apreciá o dia” e
tomar um tira-gosto. Foi o amigo, desinteressado da conversa, quem lhe
sussurrara sobre a menina que os espiava, da portinhola de um dos quartos.
A menina
era Clarinda que, a princípio, enrabichara olhos para o amigo, mas logo depois,
percebendo o desprezo no olhar de volta, abaixara o seu, na direção dos
próprios pés descalços e sujos. Pouco a pouco, Plínio, que nem era assim tão
vistoso quanto o amigo, foi ganhando a sua simpatia e admiração. Durante toda a
semana revezava com o pai o papel de anfitriã do vilarejo:
- Ali, o
senhor vê que tinha o ... mais pra cima o ... e logo adiante a ... que era onde
o pai e a mãe se reunia com os ... Era tudo novinho e ... mas daí o pessoal foi
indo, indo, e no fim, só restou umas poca família, porque nem pra ir
embora nóis num tem dinheiro. - E apontava com o dedo para
lá e para cá, na direção das residências, das casas de comércio, do posto de
gasolina, da igrejinha, do casarão do proprietário da fábrica de caroá (única
fonte de renda nos bons tempos dos que povoaram aquele lugar), da escolinha...
E tudo, absolutamente tudo, abandonado, devastado pelo tornado da miséria.
Após a
partida do amigo, Plínio pediu a Jeremias que o deixasse ficar ali, por uns
tempos. Claro que ele pagaria bem pela hospedagem, até mandaria construir um
cômodo a mais para ele, a fim de não interferir na intimidade da família.
Jeremias
e a mulher confabularam por alguns minutos e, com os olhos brilhando de antecipada
fome saciada, concordaram.
Meses de
intensa emoção e paz interior ali viveu Plínio, ao lado daquela gente simples e
hospitaleira. Cumpriu o prometido do cômodo construído, além de outras
benfeitorias, para a comodidade de D. Jurema, como a instalação de luz
elétrica, encanamento de água que mandou trazer de um riozinho próximo, comprou
alguns eletrodomésticos que fizeram brilhar os olhos das duas mulheres e a
sobrancelha levemente erguida do velho Jeremias. Poderia ter feito muito mais,
que aquilo tudo para ele nada custava, porém, se mais fizesse, já não seria o
lugar que era e já que os donos da casa estavam satisfeitos, deixasse-se assim.
Somente uma coisa ele se negou, e até rispidamente, a fazer: do lado de dentro
tudo o que quisessem, do lado de fora nada. Não se calçaria o chão e não
se roçaria o mato. Quem haveria de contrariar aquele homem que surgira do nada,
para transformar de forma tão surpreendente aquela família? Jeremias mataria o
infeliz que tentasse! Ainda mais quando Plínio o presenteou com o cavalo mais
lindo que seus olhos já viram! Ia e voltava e ia e voltava, até Santo Antão,
distante alguns quilômetros, por puro gosto de sentir o vento quente no
rosto. – Sim, sinhô. Já tô ciente di num falá di nóis pá ninguém
daquelas banda, pode ficá sussegado. Igual sorte tiveram os moradores das
outras três casas vizinhas, com a condição de nada comentarem com estranhos. A
coisa foi feita de modo que quem passasse por aquelas bandas jamais imaginaria
que aquela gente vivia feliz num lugar de tão desoladora aparência.
Coube à
D. Jurema manter o interior da igrejinha sempre limpo, a fim de se reunirem
todos os domingos, onde ela, filha e vizinhos ali oravam e entoavam louvores
por horas, enquanto Plínio e Jeremias jogavam, sossegados, o seu carteado.
Clarinda
não se cabia de contente. Ajudava a mãe nas tarefas domésticas, sempre a
cantar. Limpava mais de uma vez por dia o piso que deixava brilhando, lavava e
passava cuidadosamente as poucas roupas do hóspede ilustre, caprichava nos
pratos que rapidamente percebeu serem os seus preferidos. E Plínio a ensinou a
ler, com os livros que lhe presenteava e que pacientemente a orientava nas
palavras mais difíceis. Deu-lhe um mundo novo. E ela lhe deu o seu amor.
O
casamento foi consequência natural da proximidade e juventude de ambos. Apesar
de certa resistência aos trâmites religiosos, Plínio fez a vontade de sogra e
noiva, comprando-lhe um simples e belo vestido branco. Importou um padre da
cidade vizinha e consumou-se a união. Conforme o tempo foi passando e Clarinda,
espertamente, obtendo numa conversa ou outra, informações sobre a vida
pregressa do marido, pôde avaliar o tamanho de sua fortuna, assanhou-se com a
perspectiva de poder usufruir dela para todas aquelas coisas que se sabe poder
usufruir quando se tem dinheiro. Para isso, primeiro era preciso sair dali.
Começou a sugerir, nas mais variadas situações e lugares, que gostaria de
conhecer a família do marido, a cidade onde ele nascera, conhecer o Rio de
Janeiro, visitar as ruínas da Grécia, etc. Com a ingenuidade de quem já pensa
saber persuadir, azucrinava os ouvidos do marido, a princípio discretamente e
depois a todo instante.
.....................
Acontece que Plínio era feliz ali e não o saberia ser em outro lugar no mundo,
por mais que a amasse. Reconhecia, porém, que ele escolhera viver ali, depois
de ter conhecido tudo da vida, mas ela não. Ela jamais conhecera outro pedaço
de chão que não fosse aquele. E assim, aos poucos, sentiu as águas límpidas
daquele amor se turvando, inexoravelmente. Não que não fossem felizes, mas a
crescente insatisfação tomava conta daquela que já se transformara numa bela e
desejável mulher. Já não lhe bastava ser feliz, era preciso viver.
Uma
noite, após uma das frequentes discussões por futilidades quaisquer, Plínio,
carinhosamente, tomou as mãos de Clarinda e lhe fez uma surpreendente proposta:
ele compraria para ela uma casa na capital, ou onde ela quisesse, e lhe daria
uma boa mesada, para que ela vivesse como bem entendesse. Aos pais também, caso
quisessem acompanhá-la. Ele ficaria ali, esperando. Um tanto incrédula, mas
diante de tal sinceridade concordou, pensando, talvez, que indo na frente ele
mais tarde a seguisse. Jeremias, porém, apressou-se em dizer que do seu chão só
no caixão sairia. Jurema (Plínio sentiu pena) dividida entre seguir a filha e
apoiar a decisão do marido. Ficou.
- Após a
separação, Clarinda foi viver na capital. Com a generosa quantia que lhe caía
na conta todos os meses comprou roupas de boas grifes, viajou por todas as
cidades cuja beleza ouvia dizer e até algumas que o próprio marido lhe
recomendava, por ter gostado de lá estar. De onde estivesse mandava-lhe cartas,
com cartões postais e fotos suas, onde lhe dizia de sua eterna gratidão por
tanta felicidade, mas também da frustração de não ter a companhia do seu amor
ao seu lado. Plínio, sem esboçar nenhuma reação, apenas sacudia as cartas nas
mãos, para dar a notícia aos sogros. Jeremias e Jurema encantavam-se com
os cartões e fotografias, sem acreditar que pudesse haver tanta beleza no mundo
e sentavam-se, solenemente, à frente do genro, após o jantar, para ouvirem a
leitura das cartas.
Os anos
passaram ligeiros, como tudo o que é efêmero, exceto para Plínio, que parece
ter parado no tempo. E ainda hoje se pode vê-lo, sentado todas as tardes à
frente da casa, a admirar o avermelhado pôr-do-sol, tomando o seu caldo de
cana, ao lado dos sogros, cada um em sua cadeira de balanço, tecidas e
entrelaçadas pelo velho caroá, a ouvirem e falarem de fatos e sentimentos idos.
Vez ou outra ainda percorre devagar as ruas empoeiradas do vilarejo, e ainda
passa horas no interior das casas vazias, deslizando os dedos por suas paredes
quebradas, numa estranha e completa comunhão com, aos olhos de outros, meros
escombros. Vez ou outra enxuga uma saudade de sua amada distante. E os velhos
lhe contam coisas dela, deles, de outros tantos que por ali passaram, das
passagens do bando de Virgulino... Quando, às vezes, lhe assuntam se ainda está
certo de esperar por Clarinda, ele serenamente responde:
- Ela voltará.
Quando a juventude lhe for passado, quando de tudo o que viver não puder reter
entre os dedos, quando deixar cada pedacinho de sua vida em um canto diferente
e não puder juntá-los (porque não teceram história) .... ela voltará. Hoje ela
ainda é tijolo inteiro e não há como juntar tijolo inteiro com um quebrado. Já
disse que não nasci para o que é. Somente quando ela deixar de ser o que ainda
é, é que será verdadeiramente minha, e vocês talvez não a vejam com os seus
olhos, mas a verão com os meus.
Os olhos
maravilhados de quem ouve cada palavra sem entender nenhuma, mareiam-se diante
da voz tranquila do estranho benfeitor. O verdadeiro matuto não entende quase
nada de metáforas, mas reconhece a segurança de um prato de comida quentinha,
todos os dias, até o fim da vida.
As noites
chegam de mansinho e as estrelas brilham por sobre o chão batido e por sobre as
ruínas. E tudo é história, porque tudo é vida.
Autora: Alice Gomes - Porto Velho/RO
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4 comentários:
O que dizer desse texto? Ao ler percebi que tem alma e coração em cada palavra, em cada frase. É daqueles que o leitor não vê nada em sua volta quando começa a ler, pois, fica hipnotizado pela criatividade do autor ou autora. Meus parabéns!
Um personagem muito interessante, num cenário que nos transporta. O resto é por conta da imaginação que o autor ou autora tão bem soube instigar. Parabéns. Marina Alves.
Nossa, muito criativo e escrito com esmero, várias frases se poderia sublinhar. Um candidato fortíssimo a vencedor, parabéns! P.S.: gostei também da abordagem, a proposta de ver a riqueza no interior das ruínas, ao invés de investir no 'superficial' é muito boa. Saudações letripulistas, parabéns mais uma vez! ;-)
Li todos os textos e poesias e minha alma foi longe. Alice Gomes voce é uma grande escritora e poetisa.Conceição Gomes.
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