Autora: Alice Gomes
Há pessoas que não nascem para se encaixar nas relações sociais
convencionais. Eu sou uma delas, desde a infância.
Quando era pequena e brincava de super-heróis com os meus irmãos, o meu
super-poder preferido era o de voar. Era uma delícia! Abria os braços e
corria ziguezagueando e, na minha imaginação de criança, voava de verdade. O
meu irmão era o imortal: nada o atingia. Matava de ódio a minha irmã que, mesmo
sendo uma titã e atirando-lhe pesadas colunas, nunca o derrotava. A resposta
era sempre a mesma: - “Eu não morro, sou de aço!” - E eu,
voando, ao passar de vez em quando por eles, pensava comigo: -Quando ela vai
perceber que nessa brincadeira só ele ganha? - Todo dia é a mesma coisa. -
Me consternava por ela Eu sim, me divertia. Levei décadas para
entender que ela não se importava realmente com o seu posto de eterna
derrotada, caso contrário, não aceitaria aquela situação. Os dois se
divertiam, no final das contas. Também levei anos para entender que só os dois
brincavam entre si. Eu não participava efetivamente da brincadeira. Para eles
eu era a doidinha que fingia voar. O meu poder não cabia na estória.
E assim cresci, voando sozinha, aprendendo coisas de mim e do mundo.
Com o passar dos anos, substituí as asas imaginárias pela imaginação alada.
Minha cabeça é um universo e só quem é como eu pode entender que sou feliz
assim.
De todos os super-poderes com os quais já me imaginei, o único que ainda lamento de verdade não possuir é o de ler o pensamento alheio. Não para
bisbilhotar, porque quem voa não se importa com essas coisas, mas para
economizar tempo. Seria tão mais fácil se pudéssemos conversar com as pessoas,
sabendo o que elas realmente pensam e querem de nós! E nessa grande brincadeira
que é o mundo real, quantos amigos verdadeiros teríamos, eliminado
mal-entendidos, e quantas mágoas desnecessárias de traições descobertas!
Que grande triagem nas relações amorosas! Quantos abandonos e desenganos seriam
evitados! Quanto sexo de prazeres unilaterais interrompidos a tempo de não
simular!
Quantos feedbacks autênticos teriam as relações profissionais! Quanta energia
gasta nos engalfinhamentos e escaladas tortuosas pelos corredores seria melhor
canalizada!
Quantas lições ridículas de moral perderiam plateias!
Quanto preconceito abolido, quanta santidade desmascarada!
Quanta guerra mais sincera!
Há certos poderes que talvez não trouxessem prazer a quem os tivesse. Acho que
bem poucos teriam estrutura emocional para conviver com o corpo feio da verdade
nua. Melhor continuar voando.
Tranqüilize-se, ainda não endoideci. Só estou brincando de super-poderes. De
certa maneira, entendo que o mundo seria morno demais se ninguém pudesse
enganar ninguém. Cadê a aventura, ao se levantar de manhã e tentar adivinhar
quem, hoje, vai te mentir ou dizer a verdade?
Recanto das letras:
Autora: Alice Gomes - Porto Velho/RO
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6 comentários:
Seja bem vinda ao blog Alice Gomes.
Boa noite, Alice. Coincidência esse seu texto, esse questionamento sobre adivinhar pensamentos. Uma colega pediu-me para substituí-la amanhã numa aula de Filosofia, quando ela foi me passar o conteúdo da aula, havia um questionamento para ser feito com os alunos e era justamente esse: Será que seria bom ou ruim saber o que os outros pensam de nós? Ela e eu paramos por um momento sem falar, questionando mentalmente, não chegamos a uma conclusão. Eu pessoalmente acho que prefiro não saber, o que os olhos não vêm o coração não sente, sei lá. Mas deixando de falação eu queria te dizer uma coisa. SEJA BEM VINDA AO NOSSO BLOG!
Escrever é voar! Poucos tem esse dom, no sentido literário: os autores. Muito reflexivo o seu texto Alice Gomes, gosto dessa leitura.
Um texto para filosofar e que me pareceu bastante sincero, poucas linhas que disseram mesmo o que queriam dizer, não o que esperávamos que dissessem. Quando eu era criança, sonhava com um mundo em que as pessoas fossem sinceras. Cresci um pouco e vi que neste plano isto é inviável, até mesmo pela sua conclusão a que chega este texto. Na verdade, é vital a gente não saber de tudo, se até o cérebro se autoprograma para o esquecimento, cegueira e surdez podem ser convenientes em várias situações. O sofrimento faz parte das nossas vidas, é o motor para voar. Bom ver você por aqui, Alice Gomes. ;-)
É interessante notar esse voo solitário do escritor, pois creio que somos todos assim quando nos entregamos às palavras e elas se dispõem a nos acolher em nossos pousos. Então podemos mesmo ser super heróis e escolher os poderes que darão vazão à nossa imaginação. Talvez eu não escolhesse o mesmo, esse de antecipar a verdade dos outros quanto ao modo de pensar deles, mas achei espetacular o seu texto que me pareceu confessional, no qual analisa a dificuldade de relacionar-se socialmente. Há muita reflexão proposta em seu belo texto.
Um abraço e seja bem vinda à família Gandavos.
Celêdian
A autora, quando criança, escolheu o poder certo: voar. Agora, que escreve, continua voando com a imaginação literária. Quanto a ler pensamentos, acho que também tem esse poder, como escritora, lendo aqueles de seus personagens. Texto bom e gostoso!
Flávio
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