Autor: Carlos A Lopes
— Seu Aderbal, as pessoas da sua idade
que aparecem aqui, soltam baba, não interagem e muito menos entendem o que
digo.
Fomos interrompidos pelo barulho da porta atrás de
mim, quando entrou um indivíduo todo de branco. Insensível a minha presença,
perguntou o que fazer com um paciente que se dizia curado após ingerir o chá de
uma planta com propriedades medicinais. Segundo disse, o paciente voltou a
urinar sem dificuldades.
Enquanto
falavam, observei o quase roçar do seu jaleco em mim, isso me fez lembrar o
curso que fiz para aplicador de injeção. Fui infeliz no meu primeiro serviço,
pois, o paciente foi esmorecendo e desmaiou aos
meus pés. Dias depois, uma urgência me fez
aplicar uma injeção e a criança nasceu minutos depois. Nem preciso dizer que
fiquei consagrado na região, apesar do meu treinamento ter se resumido a enfiar
a agulha da seringa cheia de água numa laranja.
— O senhor tem um coração de menino.
Nas suas taxas, controle a glicose e o triglicerídeo.
— Eu nem sei por que estou aqui,
doutor.
Senti um vazio dentro de mim ao ver o
médico ensacar os exames no enorme envelope da clínica onde me mandaram fazer
exames. Aquilo tudo parecia embrulhar mais ainda o meu estômago.
— Posso tirar uma foto sua, para
mostrá-lo aos médicos de cabeça branca?, disse já de pé e posicionando o seu
aparelho celular.
Deixei-me fotografar com a sensação
de quem não havia produzido nada de útil naquela manhã. No entanto, aquele
hospital era um velho conhecido, local onde padeci no meu tempo de militar.
Era o dia 25 de outubro de 1948
quando fui socorrido no Hospital de Pesqueira. O motorista do veículo em que
viajava cochilou no volante e o caminhão desgovernado caiu da ribanceira. Das
quatro pessoas que estavam na carroceria duas morreram. Saí com a perna
“esbagaçada” por conta de um tonel que por pouco não me tirou a vida. Fui
levado às pressas ao hospital.
Depois de onze dias de muito
sofrimento me enviaram de trem com destino à Recife. No Hospital do
Derby sofri muito, principalmente depois que me engessaram a perna. Doía,
coçava e queimava o tempo inteiro. À noite eu não conseguia dormir. Quando não
suportava mais, abriram o gesso e descobriram que o tecido da minha perna havia
apodrecido. Depois de tratado e o gesso reposto, dormi por três dias seguidos.
Apareceu por lá um médico alemão e disse que a minha perna havia
sido engessada com o pé torto. O gesso foi retirado e a anestesia aplicada não
fez efeito em mim. Fui amarrado na cama e sem poder reagir, tive a perna
quebrada como se fosse um pedaço de pau enquanto suava e gritava de dor.
Nunca sofri tanto em minha vida. Nos
dias que se seguiram, eu tive exata impressão de que qualquer coisa que se
movia ao meu redor me fazia doer a perna.
— Tempo atrasado aquele... Como veio
parar na capital?
É uma longa história, mas vou lhe
contar um pedaço. Era o início do ano de 1941, eu tinha a idade de dezessete
anos e seis meses. Lembro-me por ter sido de boa invernada, quando depois da
recusa do meu pai em ceder-me um pedaço de terra sem significado, era chegada a
hora de deixar minha terra.
Um dia de feira em Tabira, soube que
haveria alistamento para a Polícia, na cidade de Sertânia. De imediato comprei
uma mala e voltei a Solidão com o utensílio na lua da sela do cavalo. Ao chegar
a Sertânia, fomos alojados no quartel e pelo chão cimentado todos se ajeitaram.
Pela manhã obtivemos os documentos e sentia estar próximo o
alistamento. Já noite ouvi uma sanfona tocar: "Lá no olho do pau tem um
ninho e isto é armação de comadre seriema..." Perguntei:
— Onde será aquela dança?
Alguém disse que a música vinha de um cabaré nas proximidades. Com
mais dois outros desmantelados, seguimos o som do fole da sanfona. Nunca tinha
visto uma coisa daquelas! Tinha putas quebrando para todos os lados. Isto é um
inferno, pensei. Vou entrar no meio!
Uma morena de olhar agateado
perguntou:
— Filho de onde você veio?
Disse-lhe que vim sem rumo e cairia pelas bandas do Recife. “Vamos
lá e vem pra cá.” O suor escorria salgando a pele da morena e o seu cheiro
entrava pelas minhas ventas de maneira intensa e gostosa. Lá pelas duas da
madrugada a mulher perguntou se não gostaria de ir aos seus aposentos. "Só
se for agora", respondi.
A esta altura eu estava cheio de
cachaça misturada com Zinebra, o guaraná da época. Quando cheguei ao quarto
quase caí de costas. Não tinha nada que se aproveitasse. Além de uma mesinha e
um candeeiro velho, só o chão batido e empoeirado...
No outro dia amanheci todo sujo de
terra. Ao chegar ao quartel, só ouvi um grito:
— Vai tomar banho!
Depois de asseado, começou aquele negócio de vai para lá e vem
para cá. Chegada a minha vez perguntaram de onde vim. Não tive dificuldade de citar minha procedência. Eu era uma
“marra de homem.” Pediram que abrisse a boca e examinaram meus dentes e com
expressão de satisfeitos me encaminharam para outros exames.
Algum tempo depois fui lembrado numa
lista de uns trinta nomes dos homens que seguiriam para o Recife. Ainda
chamaram mais uns oitenta e dispensaram o resto. Fiquei de alma aliviada.
Já no quartel e de banho tomado, contei meu apurado e constatei haver restado
pouco dinheiro, mas estava satisfeito.
Para minha surpresa, chegou uma ordem
de última hora, que, ninguém poderia sair à noite, pois o trem ia partir às
cinco da manhã, mas eu precisava me despedir do “sertão”. Havia uma pequena porta nos fundos do
quartel e iria escapar por lá. Todos se deitaram cedo e havia dois soldados
como vigias. Quando o primeiro caiu no sono, saí pela portinha e desapareci na
escuridão. Ao chegar ao cabaré fui logo dizendo:
— Minha morena, vim me despedir!
Quatro horas da manhã, já no quartel, ouvi o grito:
— Levanta mundiça!
Naquele tempo ninguém tinha educação. Em poucos minutos todos
estavam de pé. O trem chegou apitando no horário anunciado. Fomos jogados
dentro de um vagão como animais. Quando chegamos a Arcoverde, apareceu um
menino vendendo sanduíche gritando:
— Olhe o sanduíche de galinha!
Logo que o garoto se aproximou da minha janela pedi um. E haja o
menino a gritar para vender o seu produto. Quando o trem apitou o garoto disse:
— Moço, o dinheiro!
Respondi:
— Adeus meu amiguinho, eu vou ser
soldado!
A esta altura confesso que estava bem
alimentado e por algumas horas minha barriga ficaria em paz. Agarrei no sono
enquanto o trem lentamente me levava em direção à capital do estado. Vez por
outra acordava e observava um ou outro colega a conversar, logo voltava a
dormir. Pouco me importava quanto tempo ainda levaria a viagem. Despertei do
sono em Caruaru com o intenso movimento das pessoas na estação. Olhei pela
janela e vi um número grande de vendedores. Uns vendiam umbus, outros tapiocas
ou abacaxi. Nada daquilo me atraia.
Uma velhinha despertou meu interesse
ao aproximar-se da janela e ofereceu pão com carne. Perguntei quanto custava
aquilo:
— Quatrocentos réis!
Vendo minha indefinição, reforçou:
— Tem carne dentro, filho!
Simulei escolher entre um ou outro, quando o trem deu o sinal de
partida, olhei-a nos olhos e sentenciei:
— Adeus minha velhinha! O seu pão com carne vai comigo!
A coitada colocou os pertences no chão e gritou com todo o ar do
pulmão:
— Infeliz, tu vai morrer de dor de
barriga!
Tive tempo de responder:
— Não quero saber se cago por cima ou
por baixo, vou é tocar “vialejo” no seu pão com carne.
Na nossa chegada, descemos um atrás do outro. Um pouco mais de
tempo e chegaram umas "sopas" vermelhas, que pareciam "uns
chofreus." Pensei: ¨Seria tudo isto para nos conduzir até o quartel do Derby?
¨ Eu já estava com uma fome danada e começava a sentir dor de barriga.
— Desculpe seu Aderbal. Não seria o
tal pão com carne da velhinha, disse o médico a sorrir.
— Os solavancos do trem misturado com
a banha do preparo, podia sim, porque não?
— Uma vida e tanto a sua, Seu
Aderbal. Voltando ao seu caso. Vamos fazer o exame
retal, para avaliar as condições internas do reto? É importante para o
diagnóstico de diversas doenças, entre elas, o câncer de próstata.
—
Foi só um quase nada
de sangue, doutor!
Houve um longo silencio, seguido de
outro silêncio, desta vez constrangedor, pela parte de Aderbal.
Agora a pouco, lá fora, perguntei a minha esposa se ela se
lembrava de quando eu tinha vinte e poucos anos. Disse isso enquanto percorria
com o olhar toda extensão do beiral do quartel. Senão pelas tantas construções
ao redor da Praça do Derby, tudo parecia igual há setenta anos, quando saí
desse palacete na condição de soldado aposentado por invalidez e em seguida
casei. Agora lhe pergunto:
— Como olhar nos olhos dela, dos
filhos e dos amigos depois do constrangimento?
O médico me olhava em silêncio.
— Vamos fazer o seguinte, doutor:
— Diga, Seu Aderbal:
— Lembra-se daquele sujeito de jaleco
branco que entrou na sala andando igual um sabiá? Pois bem, lá na minha terra
tem a tal planta que curou o homem ao qual se referiu. Vou preparar e tomar o
remédio, todos os dias, religiosamente...
— Espere Seu Aderbal. A coisa não é
tão feia quanto o diabo pinta. Se me deixar fazer o exame pode evitar dor de
cabeça daqui a algum tempo. Deixa explicar direito para o senhor...
Interrompi o doutor e levantei dali
com uma baita pressa, acho que era mesmo medo dele me convencer ao contrário,
macho que é macho, foge às léguas.
— Carece explicar não. O senhor
conhece aquele ditado “pimenta nos olhos dos outros não arde”?
— Pois então Seu Aderbal, tem um
outro que diz “o que arde, cura”.
—
Só volto aqui depois de testar a tal raiz unha de gato e se não der certo, aí
então venho experimentar da sua pimenta. Então, até mais ver doutor!
Autor: Carlos A Lopes
Olinda - Pernambuco
Autor: Carlos A Lopes
Olinda - Pernambuco