Autor: Charles Lucevan
A
dor foi tão intensa que Laércio pensou que iria desmaiar e chegou a desejar
isso. O desmaio não veio, mas, fingiu-o, na esperança de que não iriam bater
novamente em alguém desfalecido. Por isso, onde estava, ficou, caído de bruços
no piso molhado pela água derramada, com um dos braços sobre o bebedouro que
caíra junto consigo. Laércio tinha já 35 anos nesse dia. Morava na roça,
sozinho, sem pais, já mortos em acidente com o caminhão pau-de-arara, indo
trabalhar numa propriedade vizinha num desses mutirões que aconteciam todos os
anos onde todos se reuniam para ajudar o vizinho a realizar todas as tarefas da
sua terra, sabendo que o próximo passo seria que esse mesmo vizinho estaria no
próximo mutirão vindo ajudar na realização das tarefas de sua própria terra.
Ninguém naquela terra pobre tinha condições de contratar trabalhadores, e,
apesar das disposições e coragem pra enfrentarem o serviço, nunca dariam conta
de fazer tudo. O mutirão era solução boa demais pra resolver o problema de
todos. Por essas e outras, como já dito, Laércio vivia só, saboreando sozinho
todas as suas amarguras.
—Levanta, maricas! Ouviu enquanto seu agressor testava
a sua inconsciência dando lhe pequenos chutes em sua costela. Achou melhor
continuar “demaiado” na esperança de que o deixassem em paz em sua agonia.
Ouviu
um baque surdo e abafado e um grito de dor enquanto que seguidamente um braço
forte cujas mãos calejadas agarraram-no na parte de trás do seu pescoço fino e
o ergueram do chão sem fazer qualquer esforço aparente. Pela rudeza do gesto
receou que morreria caso o sujeito desconhecido resolvesse também lhe bater.
Teve a certeza de que não escaparia vivo do próximo golpe.
Ousadamente,
desafiando seu medo interior, abriu o canto dos olhos para saber quem seria o
responsável pelo seu desencarne. Chegando no céu, assim poderia apontar pra
Deus o responsável por tal ato e exigir Dele a justiça. No entanto, para a sua
supresa, que não sabia ser boa ou ruim, quem lhe segurava com apenas uma das
mãos com a mesma facilidade que se segura um frango depenado pelo pescoço, era
uma mulher extremamente robusta e segura de si que o erguia e sacolejava na
direção dos seus algozes e bradava em alto e bom som, como trovão reverberando
em ecos graves nos azulejos do ambiente da cantina:
—Quem tocar nele de novo vai se ver comigo! Quem o
agredir verbalmente vai se ver comigo! Vai apanhar de mulher e quero ver quem
vai ser o “machão” da escola depois disso!
Quem
assistia a tudo em volta, podia jurar ter visto um leve sorriso se fazer no canto
dos lábios do “incosciente” Laércio.
Alguém
ofereceu uma cadeira para nela pousar o corpo dele enquanto sua salvadora
levantava o bebedouro caído e dele lhe tirava água gelada para lhe molhar o
rosto e lavar os ferimentos enquanto ele recebia tapinhas nas bochechas para
recobrar os sentidos.
—Muito obrigado! Você foi a única pessoa que me
defendeu em toda a minha vida!
—Não tem de quê! Você foi o único homem da escola que
nunca me maltratou!
—E porque eu te maltrataria?
—As mulheres não me aceitam por ser “macha” demais pra
elas. Os homens não me aceitam por me acharem feia demais pra ser mulher, forte
demais pra ser feminina.
—Por meu lado, os homens me julgam bonito demais pra
ficar perto deles, frágil demais pra ser homem, delicado demais pra ser “macho”...
—Qual o seu nome?
—Laércio! E o seu?
—Jovina!
O
respeito nasceu ali. Laércio e Jovina passaram a andar sempre juntos, trocando
experiências. Viraram confidentes. Ambos viviam sós em seus mundos. Foram se
descobrindo aos poucos. Ele, apesar de conhecer o ofício, não tinha forças para
trabalhar muito na enxada ou no facão, ou na foice, ou na lida com o gado.
Cansava logo. Mas, morando sozinho, o pouco de forças que tinha era suficiente
para se manter com a sua mandioquinha, o seu milhinho, as suas poucas galinhas,
numa agricultura de subsistência. Mas, a sua renda mesmo era tirada dos
bordados e tricôs que aprendera a fazer com a avó já falecida. Eram-lhe
serviços leves e agradáveis para serem feitos entre quatro paredes, ouvindo o
rádio e na solidão do seu quarto. Depois vendia o resultado dos seus trabalhos
na cidade sem revelar “a fonte” de quem os fornecia a ele para revender, por
mais que insistissem:
—“Segredo de
Estado!” Se eu revelar vocês não compram mais de mim... E assim ele
conseguia ir mantendo o seu “segredo de Estado”.
Jovina
e Laércio se deram tão bem em sua amizade que um começou a frequentar a
propriedade do outro em visitas cada vez mais frequentes. As desculpas sempre
apareciam das mais diversas.
—Trouxe-lhe um bolo de fubá!
—Estava passando aqui por perto e vim te visitar!
—Você tem galinha pra vender?
E
assim foram ... foram... até que um dia, em uma das visitas da Jovina ao
Laércio, o tempo fechou, escureceu e ficou tarde e perigoso demais para que ela
voltasse pra sua casa em sua charrete.
—Dorme aqui!
—Ôxe! E minha casa?
—Sua casa não vai sair de lá!
—Sei não! E tem lugar?
—A gente ajeita! Não tem luxo, mas a gente ajeita!
E
assim, naquele dia, se ajeitaram. Ambos no quarto de Laércio. Uma goteira no
quarto da “visita” a expulsou de lá. Também, quem poderia imaginar que naquela
terra seca poderia cair chuva tão intensa. Laércio, um pouco envergonhado com a
situação, se viu obrigado a colocar o colchão da amiga ao lado de sua cama, no
seu próprio quarto.
—Não se preocupe! Eu não poderia te atacar nem se
quisesse... sou franzino demais pra isso!
Riram.
Se ajeitaram. Ela já estava quase pegando no sono quando ouviu dele um pequeno
comentário que lhe deixou desperta:
—Você é bonita!
Levantou-se
sobressaltada:
—O que você disse!
Com
medo de apanhar pelo pensamento alto demais, mas já sendo tarde pra voltar
atrás, repetiu se justificando:
—Disse que você é bonita! Mas falei com respeito! Me
desculpa se por acaso te ofendi.
—Ninguém nunca me chamou de “bonita”. Você está me
gozando? Nesse mundo, o que menos sou é bonita!
—Engana-se! Você é corajosa. Você é carinhosa.
Defensora dos fracos e oprimidos. Tem garra, autoconfiança. É amiga, humilde.
Se faz presente em minha vida. Só vejo beleza em ti.
—Você que é bonito, aliás, o homem mais bonito da
escola.
—Sou um completo fracasso! Não posso nem me defender.
Sou inteligente, mas o que posso fazer com a minha inteligência? Apanho todos
os dias, sou discriminado, fraco como um graveto, me chamam de todos os nomes
vexatórios, não me aceitam como sou, sou rejeitado no círculo de amizades tanto
por homens quanto por mulheres. Se quer saber, - confessando o inconfessável
- nunca me envolvi com nenhuma mulher em
minha vida!
Aquilo
a deixou boquiaberta!
—Mesmo?
—Mesmo! Meu único envolvimento é com os meus
bordados... sim, sou eu quem os faço! Os tricôs também. Lavo, passo, cozinho,
pinto e bordo, coisas de mulher, mas não sou o que falam de mim.
—Também não!
—Também não o quê!
—Também não sou o que dizem de mim. Trabalho na
lavoura, tenho as mãos calejadas, enfrento qualquer serviço pesado de igual pra
igual com qualquer homem, mas sou avessa a serviços delicados. Sou mais macho
que muito homem pra enfrentar a vida, mas sou mulher e sou discriminada por ser
assim tão bruta e rústica. Por isso, também confesso que nunca me envolvi.
Ficaram
reciprocamente pasmos. Aquelas eram declarações muito íntimas de ambas as
partes. Ficaram sentados, se olhando, se analisando vendo que ambos tinham
histórias diferentes, mas, no âmago da situação, eram exatamente iguais na dor
e no sofrimento. Um viu que entendia perfeitamente o outro. Choraram! Primeiro,
tentando esconder suas lágrimas na penumbra do quarto. Depois, sentiram-se mais
confiantes e deixaram as lágrimas rolarem de forma que o outro visse. Por fim,
estavam abraçados aos soluços chorando juntos as dores de toda uma vida
solitária e incompreendida por todos. O amor nasceu ali. Nasceu como num parto!
Primeiro vieram as dores, depois, as lágrimas pelas dores, as contrações
geradas pelos soluços, e por fim, o amor nasceu. E, lá fora, os trovões rompiam
os céus como a festejar a descoberta naquele encontro de amores tão iguais nas
suas próprias diferenças.
Jovina
vive hoje na casa de Laércio, para onde se mudou. Casados, todos os dias ela
chega do trabalho, com a enxada nas costas, vindo da lavoura e dos serviços
pesados, suada, rija em toda a sua musculatura adquirida ao longo de anos na
lida rural:
—Meu bem, o almoço está pronto?
—Está sim, já vou servir, mas antes, vá se lavar e por
favor tire as botas antes de entrar em casa... acabei de limpar o chão!
E,
naquele dia, a casa, como sempre, estava lindamente arrumada e, na roça, estava
tudo como deveria estar:
Perfeito!
Assim
como as suas vidas:
Perfeitas!
Autor: Charles Lucevan - Ji-Paraná - Rodonia/RO
Autor: Charles Lucevan - Ji-Paraná - Rodonia/RO
5 comentários:
Excelente história, bem contada e plena de imagens literárias nessa troca inusitada de papeis sociais. Parabéns a quem o produziu.
Alberto Vasconcelos
Originalidade, criatividade, num enredo surpreendente, conseguindo manter do começo ao fim o interesse do leitor. Parabéns!
Original, criativo, surpreendente. ConceiçãoGomes.
O amor nascido do compartilhamento do sofrimento e da dor causada pelo preconceito e ignorancia dos seres "humanos"... Quanta história verdadeira acontece assim... Parabéns ao Autor... Muito boa narrativa...
Feliz por este segundo lugar de Charles. Já havia escolhido este texto desde que li a primeira vez. Parabens Charles. Merecida classificação.
Postar um comentário