Alice Gomes
— Fé eu tenho, dona, mas é que é meu
filho, entende? Meu primeiro filho! E é a minha amada quem está lá dentro
sofrendo e desta vez não posso fazer nada para ajudá-la. Este sentimento de
impotência já o tive e é por demais sofrido uma outra vez. Se ao menos parasse de chover!
— Sim, esta chuva parece nunca mais
terminar, mas nesta época do ano é assim mesmo. Não se preocupe, a casa é
resistente e há muitas velas lá dentro. Aí na janela é que não é um lugar
seguro, venha sentar-se, vamos conversar um pouco.
— Sabe, esta chuva assim, intensa, sinistra,
traz-me de volta um jorro de lembranças terríveis daquele dia em que ela e eu e
sentimos todo o peso do céu desabando sobre as nossas cabeças e eu fico me
perguntando quais desgraças mandará desta vez para feri-la?
— Então não pense na chuva. Pense em
algum momento feliz em que tenham vivido os dois. Eu aposto que nesse dia fazia
sol...
— Sim, um lindo dia de sol, aquele em
que a vi pela primeira vez e ela estava feliz. A imagem dos seus cabelos
dourados e olhos azuis brilhantes me transportam para uma outra realidade. A
realidade onde ela não era minha, mas ainda era feliz, e eu era feliz por que
nem sabia que a teria, mas, que à distância, inconscientemente, já a amava.
Daqueles amores que nada pedem porque nem se sabem ainda amores. Sim, ela era
feliz. E naquele tempo em que ainda não
havíamos nós, ela era feliz com ele...
— Sinto que o senhor está precisando pôr
para fora toda essa angústia. Que tal me contar a sua história? Assim passamos
o tempo, já que teremos mesmo de esperar.
— Para lhe contar a nossa história
tenho que começar pela história deles e de como cruzaram o meu caminho, ou eu o
deles...
— Bom homem era o Sr. Nicolau. Íntegro,
trabalhador, bom esposo e pai amoroso. E jovem. A vida toda pela frente. E ela, bem, ela tinha nome de flor, o que mais
posso dizer? Os dois, jovens, imigraram pela promessa de terras fartas e futuro
glorioso, vindos de um país devastado por guerras intermináveis. O trabalho
duro, sol a sol, não tirava deles a esperança, em nenhum momento, de viverem o
seu sonho de mundo novo. Viviam a tranquilidade dos que têm família e braços
fortes e filhos sadios.
Eu, um reles negro, molambo, filho de
ex-escravos recém libertados por um pedaço de papel que só lhes permitiu a liberdade de irem morrer por malária num beco
qualquer, sem trabalho, sem casa, sem dignidade. Enfim, eram os novos tempos.
Saíram os escravos, entraram os imigrantes, e todos se arranjavam como podiam.
Alguns com terras, outros com pés em terras alheias. E foi neste cansaço de
pisar tanto chão que eu cheguei até ali. A princípio um banho, um prato de
comida, algum serviço que lhes pagasse o favor, um cantinho para passar a
noite. - Jamais, em toda a minha vida, provara de comida tão boa! - “Mãos de fada tem esta mulher”, pensava,
enquanto ela se retirava com as suas duas crianças e ele me observava em
silêncio. Ao final da farta refeição, levantei-me, preparado para qualquer tipo
de pagamento físico. Nada cobrou, ainda que eu insistisse e, para minha
surpresa, ofereceu-me trabalho. Seria a primeira colheita e eu fui um enviado
de Deus, segundo suas palavras. Palavras que eu nem sei dizer como as entendi, pois
a sua língua era muito estranha para mim. Praticamente por gestos e à muito
custo, me disse que estava desesperado por não ter sobrado ninguém para lhe
ajudar e a proposta que me fez pareceu justa para ambos. Ele teria, enfim,
braços tão fortes quanto os seus e eu teria comida e um canto só meu para
dormir. Terminando a colheita viria um brinde. Nem lhe perguntei o valor,
negócio fechado. Assim passamos alguns
meses, eles na casa e eu na tulha, no primeiro colchão decente da minha vida.
Durante os dias, enquanto trabalhávamos, ouvia as histórias de sua terra natal,
das quais eu pouco compreendia, mas que ele as contava assim mesmo, quase um
monólogo. Canções, muitas, momentos em que soltava a voz afinada a plenos
pulmões, quase catarse. E eu gostava tanto de ouvi-las que nem percebia o couro
despregando-se dos meus dedos e indo-se grudar nos galhos dos pés de café.
Jamais consegui assimilar sua técnica para fazer aquilo sem sangrar. Às noites,
ela mergulhava as minhas mãos numa bacia de água escaldante para me aliviar as
dores, enquanto preparava os seus pratos impressionantemente bem temperados. Após
o jantar eu os via brincando com as crianças no alpendre até que adormecessem. E
dormíamos todos em paz. Ao menos eu pensava que sim...
Vez ou outra Nicolau, já meu amigo, ia
à cidade e sempre que ia trazia alguns temperos que a deixavam e a mim muito
felizes e, por causa deste detalhe, comecei a sentir algo estranho acontecendo,
pois suas idas à cidade tornaram-se cada vez mais raras. A comida já não era
tão boa, pela falta dos seus temperos preferidos, por mais que ela se
esforçasse. Um dia, quando ele teve mesmo que ir, me pediu que cuidasse de tudo
enquanto estivesse ausente, olhando na direção dela e dos filhos, me fazendo
claramente entender que a sua preocupação era não deixá-los sozinhos. Não os
deixaria nem que não pedisse. Era, de certo modo, a minha família também, como
um cão que, por instinto, protege, sem que nenhuma ordem precise ser dada. Na
volta, a cabeça baixa, semblante carregado, olhar aflito. Sobre a causa não disse, mas era evidente que
alguma coisa não corria bem. A princípio pensei que fosse a gravidez, terceira
e num momento inoportuno, mas não era, já que o carinho que um tinha pelo outro
parecia inabalável. Passei a perceber as portas e janelas trancadas com
ferrolhos, uma estranha faca na cintura, um pedaço de pau sempre por perto,
troca de olhares entre eles sempre que saíamos para a lida, as canções rareando,
ouvidos sempre alertas. Até que um dia, ao invés de ir à cidade, me pediu que
eu fosse em seu lugar. E, nesse dia, no armazém, eu soube das ameaças que um
fazendeiro vizinho vinha lhe fazendo, caso Nicolau não lhe vendesse as suas
terras para anexá-las às dele. E, nesse dia, eu temi pela vida daquela família.
E, nesse dia, chovia.
Estava distante da casa várias léguas e
o cavalo não conseguia atravessar, com a velocidade que a urgência requeria, o
lamaçal que se formava na estrada de terra batida. A noite caindo e sob um
temporal medonho a premonição de uma tragédia. Ainda faltando um bom trecho, já
noite fechada, meu cavalo sucumbiu e tive que completar a minha corrida a pé,
por entre o cafezal, iluminado apenas pelos relâmpagos. Estaquei a poucos metros da casa, aterrorizado
com a cena que via: meu amigo Nicolau, caído no alpendre, sendo espancado até a
morte por cinco jagunços mascarados, armados cada um com grosso pedaço de
madeira. Um relâmpago mais forte iluminou, cravando para sempre na minha
memória, a imagem de um deles chutando a porta, na intenção de arrombá-la e, lá
de dentro, gritos aterrorizantes das duas crianças. Sem pensar na desproporção
da força daqueles homens corri para salvá-las e consegui acertar um chute
potente nas costas do que estava à porta, que o derrubou, desacordado. Os
outros assustaram-se, talvez supondo que houvesse mais gente comigo, e sumiram no
cafezal. E eu fiquei ali, ajoelhado no
chão, tentando desesperadamente encontrar um fio de vida nos olhos abertos e estagnados
do meu amigo. Era tarde demais. Com medo
de que os jagunços voltassem e com um medo ainda maior que ela e as crianças o
vissem daquela maneira, arrastei-o rapidamente para dentro da tulha e o deitei
no meu colchão. Atrás de nós um rio de lama e sangue. Quando voltei, o jagunço
que eu derrubara também já havia desaparecido.
Bati na porta e gritei seu nome, mas
ela não abriu. As crianças, entre choros e gritos, tentavam me dizer alguma
coisa que eu não compreendia. Então, sem alternativa, arrombei a porta e
entrei.
Outra vez, atônito com o que via,
roguei aos céus que não a perdesse também. Ela, caída no chão, se contorcendo, sangrando,
em completo estado de histeria, e eu sem saber onde estava ferida, sem saber se
a amparava, sem saber o que dizer, o que fazer. Como as crianças não paravam de
chorar, abracei-as com força e assim ficamos por uns instantes, todos olhando
para ela e foi aí que percebi a causa das contorções e do sangramento. Eram as
contrações do parto, que se antecipava, devido às fortes emoções. Eu não tinha ideia
do que fazer mas sabia que a primeira providência seria deitá-la numa cama.
Coloquei as crianças de volta no chão e quando tentei pegá-la no colo para
levá-la ao quarto, na esperança de que ela me instruísse no que fazer, olhou-me
com terror, sem ter ainda me reconhecido. Estava a um passo de desfalecer e eu
não podia permitir que acontecesse, pois seria o fim. Ela precisaria estar
consciente naquele momento, mais do que nunca. Então, com uma das mãos,
imobilizei os seus braços e com a outra segurei firmemente o seu rosto assustado
e frágil e a obriguei a me olhar nos olhos, gritando-lhe quem eu era e o que
estava acontecendo. Finalmente aquietou-se e pudemos nos concentrar no que
teríamos de fazer. E foi assim, naquela noite medonha, que parimos a sua
terceira filha. Deixei-as se recuperando, trouxe os colchões das crianças para
perto da cama e velei os seus sonos até amanhecer.
Todas as providências para o enterro e
os cuidados com ela e o bebê só foram possíveis pelos curiosos que consegui
trazer do povoado. Junto com eles vieram o delegado e o vizinho fazendeiro, o
primeiro para tomar depoimentos e em seguida a constatação de autoria
desconhecida do crime, o segundo para prestar solidariedade. Evidentemente que
a solidariedade foi a oferta de compra da sua terra, por quase dez vezes menos
do que valia. E junto o conselho para que ela tentasse refazer a sua vida,
longe das más lembranças. Foi o que
fizemos. Ela, por absoluta falta de alternativa, eu, pela absoluta convicção de
que jamais a abandonaria.
Uma família composta por um negro semianalfabeto
em dois idiomas, uma linda e entristecida mulher, e três crianças famintas foi
o que restou depois do último tostão. Tentei emprego em todas as fazendas da
região, tentei lustrar botas de branco endinheirado, furei poços, limpei
privadas, fiz o diabo, mas dinheiro quase nada. E muitas, muitas fuças partidas
de quem ousasse tocar num só fio de cabelo daquela mulher. Não que houvesse
sentimento de posse, pois nem sequer vivíamos como marido e mulher. Não havia
qualquer intimidade física entre nós. O que havia era a fidelidade à memória de
um grande amigo, que um dia me igualara a um anjo enviado por Deus, além do
amor incondicional e silencioso por ela e por aquelas crianças que passaram a
ser também as minhas filhas. Enquanto eu me ardia em busca de trabalho ela
arregaçava as mangas, literalmente, oferecendo-se para ajudar na cozinha do
albergue que nos acolhera. A sua fama de excelente cozinheira espalhou-se
rapidamente e em pouco tempo já preparava marmitas para todos os peões da
redondeza. Com muito trabalho e muita economia ela conseguiu alugar um espaço,
ao lado de uma venda de beira de estrada e assim pôde trabalhar por conta
própria. Em razão da sua dedicação em tempo integral ao pequeno restaurante,
achamos por bem que eu me encarregasse de cuidar da casa e das crianças. E,
pouco a pouco, ela foi-me ensinando os seus segredos de culinária e eu fui-lhe
ensinando os segredos do carinho de mesas postas e banhos preparados. – Olhe, dona, não vou lhe contar as nossas
intimidades, só lhe posso dizer que a noite em que ela me permitiu tocar-lhe
cabelos e mãos e braços e boca, foi a noite mais linda da minha vida. A
primeira de muitas e que culminou neste serzinho que agora vem ao mundo. Fruto
deste amor feito de respeito, de proteção, de doação mútua, de muito sofrimento
e muita superação. E sempre juntos, em todos os momentos. É por isso que eu não
posso imaginar a minha vida sem ela. É por isso que eu não concebo a ideia de
que ela esteja lá dentro, sofrendo, e eu aqui fora, sem poder fazer nada. É por
isso que eu não aceito de Deus que Ele mande este maldito temporal justamente
hoje, para fazê-la recordar o seu outro parto. Entende agora a minha angústia?
— Sim, eu entendo. O que eu não entendo
é como o senhor está falando há horas e ainda não percebeu que a chuva passou
faz tempo. Olhe ali pela janela, veja quantas estrelas no céu!
— Puxa! É verdade! Eu não tinha
reparado que Ele também me ouvia. E, agora, para a minha completa felicidade
sabe o que falta?
— Claro que sei! Não seria esse
chorinho de bebê que estamos ouvindo lá de dentro?
Autora: Alice Gomes
Porto Velho/RO
Autora: Alice Gomes
Porto Velho/RO
3 comentários:
Excelente texto. Perfeitamente dentro dos parâmetros do concurso. Parabéns a quem o produziu.
Alberto Vasconcelos
Um conto instigante, reunindo todos os ingredientes pertinentes a uma boa leitura. Ótimo! Parabéns ao autor.
Um primor de conto me pendeu da primeira a ultima paLavra aplausos ao autor ou autora//
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