Alice Gomes
“O teu olhar caiu no meu, a tua
boca na minha se perdeu; foi tudo lindo, foi tão lindo, foi...”
Maio de 1995. A noite em que dormi
na sua casa, hóspede da família, foi decisiva para unir duas pontas de uma
história feita de ilusões. Uns dez anos que não a via. Tornara-se uma linda mulher,
quem diria, aquela pirralhinha dentuça de cabelos despenteados! Que idade
mesmo? Uns treze ou quatorze, nem me lembro...
Casa pequena, foi-me oferecido o
seu quarto para o pernoite, ela no sofá. Ficaria eu no sofá, sem problema,
porém, diante da insistência da mãe e dela própria, resignei-me a dormir num
quarto de paredes cor-de-rosa, ursinhos e penduricalhos que desciam do teto até
quase ao meu nariz.
— Está tudo de acordo? Precisa de
alguma coisa? Olha, aqui na parte de cima
do guarda-roupa tem o edredom, caso esfrie. O banheiro fica ali no
corredor, segunda porta, mas você ainda se lembra, não? O interruptor ao lado
direito, quase atrás da tv. – De um só fôlego, naquele tom polido e ansioso das
camareiras de hotel em final de
expediente.
— Está tudo bem, não se preocupe e
obrigado por tudo. – Respondi, também rapidamente, incomodado pela presença
daquela quase estranha e linda mulher. Eu precisava estar só para me
reencontrar. Tantos anos passados desde que eu saíra daquela cidade e da vida
daquelas pessoas e agora ali, meio sem jeito. A família toda, muito minha
amiga, que me ajudara a suportar alguns dos piores anos de um casamento
infeliz. Muitas e muitas vezes eu vim
àquela casa unicamente para conversar amenidades, jogar dominó ou cartas com
eles. Seus dois irmãos, ela e eu formávamos as duas duplas, e passávamos horas
a rir e a brincar inocentemente, sempre ao som de canções da época ou até mais
antigas, das quais ela gostava, para minha surpresa, pois eram do meu tempo e
não do seu.
— Você ainda tem aqueles discos
que ouvíamos quando eu vinha aqui? – escapou-me a pergunta que transformaria a
minha vida.
— Sim, tenho todos ainda
guardados. Estão aí numa caixa, embaixo da cama. Quer que eu ligue o
toca-discos pra você? – indagou, aproximando-se.
Por um momento pensei em dizer
não, mas, não sei se pela demora na resposta ou pela urgência do reencontro com
o meu único pedaço de passado feliz e nisso a música talvez ajudasse, quando
dei por mim já um som baixo e melodioso invadia o ambiente. E já eu, sentado na
cabeceira da cama e ela, na outra extremidade e, entre nós, diversos discos
espalhados. – Olha este! Lembra daquele dia, assim, assim...? – Sim, me lembro.
E esta música? Lembra daquela vez em que... E, aos poucos, aqueles dez anos em
que estivemos distantes desapareceram e me senti transportado novamente para o
seio daquela família tão querida, que tão bem me acolhia sempre que eu
precisava.
Num determinado momento, (sim,
determinado, porque me parece, hoje, determinado pelo Destino), as palavras da
canção: “ o teu olhar caiu no meu...” aniquilaram de vez as minhas forças. Debrucei
a cabeça sobre o colchão, com uma vontade imensa de atravessá-lo, e ao centro
da Terra, e ir sumir lá pelo outro lado do mundo. Sumir com todas as lembranças
dos meus longínquos vinte anos na década de setenta, quando a ouvira pela
primeira vez e a sussurrara nos ouvidos da primeira namorada, que viria a se
tornar esposa. Lembranças de todas as
dores do mundo, que foram minhas, pela escolha errada da mulher errada na época
errada. E sumir comigo próprio, que não soubera me salvar a tempo de não fazer
sofrer a mim, à minha companheira e aos meus filhos, testemunhas e vítimas de
um casamento angustiosamente frustrado. Sumir até mesmo com a lembrança recente
da razão pela qual eu viera parar naquela casa, pernoitar para seguir adiante,
numa viagem que me fizesse esquecer o doloroso fim de uma união de tantos anos.
Foi nessas e por essas
circunstâncias que o toque suave dos seus dedos nos meus cabelos arrepiaram-me
até à alma. Levantei a cabeça, olhos fixos e depois fechados... “E foi tão
lindo, foi, e eu nem me lembro do que veio depois”... Amanhecemos num abraço
contorcido de cama de solteiro num quarto de paredes cor-de-rosa, ursos e
discos pelo chão e penduricalhos a fazer cócegas no nariz. O sol, batendo no
rosto, a me lembrar que era preciso urgentemente desarrumar o lençol do sofá e
torcer para que o sono da mãe tivesse sido pesado. Não o foi. Ela já nos
esperava com o café pronto e sorriso nos lábios. Vim a saber por ela, com o
olhar assertivo e encabulado da filha, que aquele momento teria que ser vivido
um dia, pois que senão, a filha não desengasgaria aquela paixão-espinho-de-peixe
que lhe atravessava a garganta. Vim a saber detalhes dos quais eu nem sequer
supunha daquele amor platônico pré-adolescente, enquanto eu a considerava uma
pirralha boa parceira de baralho. Da vigilância permanente da mãe e irmãos para
que ela não se excedesse e eu não desconfiasse, pois sabiam eles, mais velhos,
de todos os meus problemas reais da época e que eu certamente me afastaria,
caso soubesse que uma garotinha estaria interessada em mim, tão mais velho que
ela e casado. Mal casado, sabíamos todos, mas responsável o suficiente para não
tirar proveito de sua inocência.
O mundo é feito de ilusões e eu
tive as minhas, por duas vezes. Na primeira, quando eu, jovem, me perdi de
amores por uma mulher e com ela constituí família e envelheci mais que devia.
Na segunda, eu, meia-idade, cabelos indecisos entre preto e cinza, me perdi de
amores por uma jovem que me convencera de que eu era um semi-deus. E “eu me
senti renascendo outra vez”... Fiz da minha vida uma canção. Esqueci, por um
precioso tempo, das dores do mundo e me entreguei de corpo e alma àquela
criatura, tão sedenta de vida, tão ávida de tornar realidade as suas mais
loucas e ensaiadas fantasias. Realizei-as todas, as delas e as minhas. E fui
imensamente feliz ao seu lado, mesmo nas horas em que o medo de perdê-la me
roubava horas de sono e, nessas horas de vigília, em que eu a tinha em meus
braços, a sono solto, me vinha a certeza de que nunca mais seria o que fui, depois
dela.
Poderia terminar aqui a minha
história e seria um final sublime, porém todas as ilusões, que pena, um dia
acabam. Acabou-se a minha primeira quando tive de fazer ver à mulher errada que
alguns namoradinhos apaixonados um dia despertam, sufocados e envelhecidos mais
do que deveriam e que, nesse dia, é preciso libertar-se para não mais sofrer. (Por
onde andará meu primeiro amor? Nem sei se ainda vive...) Acabou-se a segunda
quando tive de me fazer ver que garotinhas apaixonadas um dia despertam, sufocadas
por insônias alheias e que, nesse dia, é preciso libertar para não mais fazer
sofrer. (Por onde andará meu segundo amor? Saberá que ainda vivo?...)
Pensando no mal e no bem que nos
fazem ilusões e desilusões, e o que delas em nós permanece, brindo, sereno e
só, à minha nova fase, a terceira das idades: aquela, onde se pode ouvir, em
silêncio, e entender e absorver cada um dos versos de uma linda canção.
Autora: Alice Gomes
Porto Velho/RO
Autora: Alice Gomes
Porto Velho/RO
3 comentários:
Excelente texto, perfeitamente dentro dos parâmetros do concurso.
parabéns a quem o produziu.
Alberto Vasconcelos
Tão real quanto a própria vida. Que bom se viver pudesse ser um eterno conto de amor, sempre com final feliz. O conto ficou joia! Parabéns ao autor.
Excelente conto. Bem desevolvido, enxuto e com final intrigante. Conceoção Gomes.
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