Alice Gomes |
Sou quase uma de muitas.
De todas me falta um pedaço.
Um não-sei-quê, que ainda busco.
Por que escrevo?
Porque Uma e Outra me habitam.
Uma que está para o mundo e Outra que só está.
Uma respira o pó da terra, Outra o pó das estrelas.
Uma sofre quando pensa, Outra canta quando sofre.
Uma tem poderes de fazer calar, quase sempre.
Outra só tem o poder de sufocar, às vezes.
É Uma que escreve quando Outra quer falar.
De todas me falta um pedaço.
Um não-sei-quê, que ainda busco.
Por que escrevo?
Porque Uma e Outra me habitam.
Uma que está para o mundo e Outra que só está.
Uma respira o pó da terra, Outra o pó das estrelas.
Uma sofre quando pensa, Outra canta quando sofre.
Uma tem poderes de fazer calar, quase sempre.
Outra só tem o poder de sufocar, às vezes.
É Uma que escreve quando Outra quer falar.
ALMAS (HÁ UMAS)
Há uma parte de mim
que agradece à que desarruma
(uma parte de mim
que obedece ) à que se acostuma
a uma parte de mim.
Há uma em mim que
se acomoda, se empanturra,
se acautela, se
engordura.
Há uma em mim que
se sujeita.
Há uma em mim que
se enoja, se esmurra,
se rebela, se
procura.
Há uma em mim que
se respeita.
Há uma parte de mim
que se habitua à que adormece
(uma parte de mim
que tumultua ) a que enlouquece
uma parte de mim.
Há uma em mim que
boceja, atrofia,
desconversa, renuncia.
Há uma em mim que
não rejeita.
Há uma em mim que
lateja, repudia,
desgoverna,
desafia.
Há uma em mim que
não aceita.
Há uma parte de mim
que não se importa,
uma parte de mim
que grita e morde,
uma parte de mim
que não suporta
uma parte de mim que
vira e dorme.
AMOR TEMPORÃO (letra de música)
Já andei por
caminhos, já pisei em espinhos,
que você, sendo tão
jovem, sei que não pode entender.
Tenho tantas
cicatrizes, de lembranças infelizes,
dessas que tanto
remoem, de antes mesmo de você nascer.
E você chegou,
quase menina, e me amou, inocente
num momento em que
eu estava carente
sedento de vida,
água fresca bebi
Me trouxe a fartura
tardia das frutas sadias
e eu não resisti.
E eu te amei como
um doido varrido
um louco perdido no
meio de tanto frescor
Te sufoquei com
meus beijos famintos
eu fui só instinto,
não vi que matava um amor
Com a mesma leveza
que veio
sem nenhum rodeio
você me deixou
Eu vi que a loucura
tem preço
sozinho envelheço:
- a fonte secou.
E eu gritei como um louco varrido
um louco perdido no
meio da minha aflição
E sufoquei meu
ciúme doentio
e agora o vazio,
sofrendo com a solidão
Eu vi que a loucura
tem preço
sozinho envelheço:
- a fonte secou.
Com a mesma leveza
que veio
sem nenhum rodeio, você
me deixou.
ANGÚSTIA
a febre do estrepe
o eco do berro
o prego, o flagelo
o secreto inferno
o inverso.
a seca da pena
a arena, a algema
a rede, a sede
a parede
o beco, o fecho
o medo do erro
o peso do gesso
o azedo do apego
o avesso.
o desassossego.
NA RUA QUE VOCÊ MORA
Na rua
que você mora
tem umas flores bem branquinhas
de uma árvore pequenina
que tanta inveja me dá
de todo dia vê-la passar
sem jamais ter de ir embora.
tem umas flores bem branquinhas
de uma árvore pequenina
que tanta inveja me dá
de todo dia vê-la passar
sem jamais ter de ir embora.
Ai! Quem dera também minha
fosse a rua que você mora!
HOJE NÃO
Juro por Deus que eu te queria
Fazer um poema de amor
Mas, à minha revelia,
O coração, miúdo e mudo,
Decidiu que hoje não...
Amanheceu carrancudo
Não quer riso, não quer sonho,
Não quer volta nem milagre
Só quer saudade sofrida
Do que foi realidade.
Perda por demais doída
Faz dessas coisas com a gente
Põe medo, tira a esperança
Tranca portas, pede um tempo
Vela em silêncio o fim de “um dia”
Juro por Deus que eu te queria
Aqui comigo pra sempre
Dizer o que nunca te disse
(E hoje até que eu diria)
Mas meu coração, de repente,
Resolveu que hoje não.
Juro por Deus que eu te queria
Fazer um poema de amor
Mas, à minha revelia,
O coração, miúdo e mudo,
Decidiu que hoje não...
Amanheceu carrancudo
Não quer riso, não quer sonho,
Não quer volta nem milagre
Só quer saudade sofrida
Do que foi realidade.
Perda por demais doída
Faz dessas coisas com a gente
Põe medo, tira a esperança
Tranca portas, pede um tempo
Vela em silêncio o fim de “um dia”
Juro por Deus que eu te queria
Aqui comigo pra sempre
Dizer o que nunca te disse
(E hoje até que eu diria)
Mas meu coração, de repente,
Resolveu que hoje não.
INDIFERENÇA (letra)
As pintas todas das
tuas costas já conheço bem
pois nas respostas
nem te viras para ver-me
e ao fazê-lo , é
com um desdém
que não se tem nem
com um amigo
Eu tenho tanto a
dizer-te e já não digo.
“Olha pra trás,
olha pra trás” nas despedidas,
Já tentei isso com
o olhar fixo em tua nuca
Eu sei, são coisas
de maluco,
e estou maluco, sem
cautela,
mas só eu sei da
minha vida e o que fiz dela.
Falo bobagem, faço
gesto, invento assunto,
Só pra saber se
ainda resta alguma gota
mas há um fosso que
é tão largo, é tão fundo
e fica sempre um
gosto amargo na minha boca.
O nosso fim já está
aí fora, bate à porta,
que ele entre, não
importa, já passou da hora
Eu te devolvo a
liberdade, sem nenhum pedido.
Eu vou sentir muita
saudade, mas sobrevivo.
O CHÃO
Ah! Tão pé no chão!
Tão pé no chão que
o peso do chão
me sobra à cabeça.
Me cobra a represa
do voo travado.
Me pune o pecado da
lida rasteira.
Da beira, da beira,
da eterna beira,
de quem só entende
de chão.
Da asneira de lição
aprendida dos precipícios alheios.
Tanto receio, tanta
xepa de vida!
Tanta regra
seguida, a nem um metro do chão!
Quanto chão! Quanto
chão!
Quanta vã guarida
de chão!
Tanta pedra, tanto
tropeço e o chão,
sempre o chão,
a me poupar da
queda.
Quanta náusea de
altura da superfície do chão!
O MEIO DO MEDO. O MEDO DO MEIO
Ando
meio com medo da vida, mais que da morte.
Ando meio sem sorte, sei lá. Meio sem prumo.
Meio desacreditado até do que posso. Meio velho por dentro.
Ando meio cru, mal passado, vendo a vida passar, embrulhada
Em papel de embrulho de pão bolorento.
- Com tantos eus que podia ter sido e não me permiti um só! –
Ando meio só de mim, pra falar a verdade.
Ando não me querendo ultimamente.
- Nem a mim, ai de mim! –
Ando pelo meio do caminho, até da calçada.
Ando meio sem nada de bom pra fazer.
Ando é querendo ver logo o fim disso tudo.
Saber se o oco tem meio.
Ando com medo do meio um dia ser inteiro
E acabar pelo meio o tinteiro de cor desbotada
Que ressecou, por desuso, num canto da mesa.
- Ah! Pro meio do inferno toda essa tristeza! –
Bendita a ira que me liberta!
Ando meio sem sorte, sei lá. Meio sem prumo.
Meio desacreditado até do que posso. Meio velho por dentro.
Ando meio cru, mal passado, vendo a vida passar, embrulhada
Em papel de embrulho de pão bolorento.
- Com tantos eus que podia ter sido e não me permiti um só! –
Ando meio só de mim, pra falar a verdade.
Ando não me querendo ultimamente.
- Nem a mim, ai de mim! –
Ando pelo meio do caminho, até da calçada.
Ando meio sem nada de bom pra fazer.
Ando é querendo ver logo o fim disso tudo.
Saber se o oco tem meio.
Ando com medo do meio um dia ser inteiro
E acabar pelo meio o tinteiro de cor desbotada
Que ressecou, por desuso, num canto da mesa.
- Ah! Pro meio do inferno toda essa tristeza! –
Bendita a ira que me liberta!
O RIO
DETRÁS DA CURVA
Atrás daquela curva há um rio
Sei-o, porque o vi.
Há rios que ficam na retina,
para o lado de dentro.
Eternos, a quem os conhecem
invisíveis, a quem nunca os viram.
Amores, na vida, há alguns
que a curva do tempo não mostra.
Eternos, na memória do avesso
dos que os sabem, porque os viveram.
RELÍQUIA
Trago dentro do meu
peito
um amor já
amarrotado
tantas vezes
desdobrado
na intenção de ser
feliz.
É que o destino não
quis
que este amor
tivesse jeito.
Então, até por
respeito,
Por medo que se
destrua
e nem mais isso eu
possua,
hoje o conservo
guardado.
Melhor mantê-lo
intocado
A arriscar vê-lo
desfeito.
O traduzir-se
Com que cores
pintar essa tela, se há nela todas as cores e, todas elas, intensas e
sobrepostas? Que borrão é este, que encobre paisagens e cubos, e esferas?
Como traduzir este
ser que há e que nem a mim se revela?
Sem antenas, setas,
trilhos, retas. E nada se completa.
Tudo, de início em
início, se entrelaça a outros inícios de coisa alguma.
E tudo esfalfa,
tudo sangra, tudo arde.
E tudo foge, tudo escapa, para de novo um novo
ser se pintar.
Este ser de
movediças areias, de patagônicas geleiras a se derreter.
Com que cores
pintar instantes? Qual a cor da vertigem?
Que ser é este,
múltiplo, ávido, desgovernado? Que olha por meus olhos e não me lega lembrança
sólida de sequência nenhuma?
Este ser que não me
ensina a diferença entre estar feliz ou infeliz, que não me dá tempo de sentir
nada por inteiro. Que tudo já foi e não vi. E nada me deixa.
Que ser é este que
em mim rodopia, e se contorce em misteriosas danças? E vai ao alto e despenca voos
alucinados. E sorri, nem sei de quê, e se inebria. E fecha minhas pálpebras e
aspira partículas inspiradas de sons dispersos no ar que é só dele. Que
vivencia serenidades e no instante seguinte me encharca de angústia.
Que ser é este que
em mim habita, mas não me pertence?
Com que cores
pintar essa tela, se há nela todas as cores, e nenhuma permanece mais que um
segundo?
O cavalo das almas
- I
Licinha
ajudava como podia. Subia no telhado e, com vara, várias vezes mais longa que
suas finas perninhas, socava, socava com força, pra dentro da chaminé.
A
mãe talvez nem soubesse, (não, não sabia), o perigo que a filha corria. Em pé,
sem apoio, girava no ar os braços, brincando de equilibrista. E ria.
Depois
não descia, era por lá que ficava, no seu mundo de silêncio e telhas, e os
livros que lia.
Às
vezes ouvia o canto feliz da mãe, que cozia. Esquecida das pragas que há pouco
rogava:
-
Cavalo das almas!
Toda
a pobreza, cansaço e fumaça, o fogão resumia.
Velho
vermelho fogão, de cimento e lenha, e fogo, e choro. Nuns dias picumã, noutros
iguarias. Nunca soube Licinha de onde vinha o nome e o porquê, achava que se
tratava de tudo aquilo que entupia.
-
Cavalo das almas!
E
a vida seguia, como tinha de ser.
Numa
noite, talvez véspera de Natal, findo um desses dias de pragas rogadas, ouviu
Licinha a mãe que chorava, coberta de raiva, pobreza, cansaço e fumaça, e o pai
que dizia: - Calma, velha! Não era pra eu lhe dizer (então, porque é que
dizia?) mas amanhã ganharás um novinho, à gás!
Dos
dias seguintes não se lembra, mas ainda em si e em meia dúzia de seres, mesmo
que a ninguém mais faça sentido, haverá para sempre o amado inimigo:
-
Cavalo das almas!
E
a vida seguiu, como tinha de ser.
Antigamente...
Antigamente, quando
eu era jovem, achava que podia comer a vida,
feito sobremesa.
Que ela estaria
sobre a mesa, esperando para após o jantar.
Não importava comer
o nada, ela estava lá, para dali a pouco.
Quando finalmente
cansei de inapetências quis o doce.
E ele era de fruta
estragada.
Antigamente, quando
eu era jovem, sonhava que o tempo não existia.
Que era brincadeira
de mau gosto das velhas bruxas.
Desdenhava das
máscaras enrugadas, mostrando-lhes minha força.
Sem medo do escuro do meu quarto.
Quando finalmente,
acesa a luz, porque se fez noite lá fora,
o escuro veio para dentro.
Antigamente, quando
eu era jovem, abdicava dos grandes prazeres,
na espera
fantasiosa dos pequenos milagres.
Doava amores e
humores a quem comigo dançasse
a dança dos
desatentos.
Quando finalmente,
pés cansados, ouviu-se a música,
zumbiu no ouvido o
som do tempo. Desafinado.
Poesia para uma
pedra
Sei
que não falas a minha língua e nem eu entendo em qual idioma me desprezas.
Mas,
quem dera, ouvisses-me, compreendendo-me!
Quem
dera, que mesmo calados, entendesses que tenho eu muito mais a dar-te que tu a
mim!
Quem
dera o nefasto de teus longos braços, que hoje me alcançam e me destroçam,
sucumbisse, à luz do entendimento!
Sei
que a vida é perda, o tempo todo. Aprendi isto contigo e aprendi cedo, mas quem
dera, o olhar que me negas ao menos te visse a ti, por dentro, e te cegasse das
tuas monstruosidades!
Sei que me poupaste ao acaso, e só ao acaso
devo o que me resta de vida inocente, mas quem dera fosse a minha vida
salvar-te da tua!
Quem
dera descesses à minha trincheira, que hoje me obrigas a cavar com as minhas
próprias mãos rubras de sangue, e visses, daqui de baixo, o mesmo céu azul que
eu via, antes do teu sobrevoo!
Quem
sabe aprenderias a minha língua e eu a tua, e aprendendo-a, te ensinaria que
existem outras coisas a se fazer no mundo além de fechar caminhos.
Quem
sabe me ensinarias a tecnologia com que fabricas as tuas bombas e eu,
aprendendo-a, transformaria em saudáveis as tuas veias podres, e te daria
século e meio de novas possibilidades.
Quem
sabe converteríamos juntos a pedra que és, em água límpida, e irrigaríamos
outros áridos solos. Quem sabe daríamos boas sementes.
Quem
sabe houvesse tempo de não permitir-me crescer assim, tão parecida contigo.
(dedicado aos
soldados que despejam bombas nas cabeças de crianças)
A borboleta
As lindas asas
azuis de corpo cansado,
Finalmente na
parede quieta e branca.
Ah! Descanso! Oh!
Cansaço!
Grande aventura foi
o voar! Sim, grande aventura!
O que fazia mesmo
enquanto voava? Não se lembra.
Ah! Descanso do voar!
Oh! Cansaço do voar!
A amiga cigarra, a
cantar, cantar:
- Despuès de um año
bajo la tierra!
Morreu a amiga de
tanto cantar.
Ah! Se pudesse,
outra vez, lagarta!
Comer, comer!
Brincar de comer.
Há quanto tempo não
come...
Deslizar por entre
as folhas e depois comê-las.
E deslizar, e
comer, e deslizar, e comer.
Armazenar,
armazenar.
Grande aventura foi
o voar! Sim, grande aventura!
O que fazia mesmo
enquanto comia? Não se lembra
Ah! Descanso do
comer! Oh! Cansaço do comer!
A amiga cigarra no
chão. As formigas a comê-la.
Comer! Comer!
Armazenar.
Armazenar.
Ah! Se pudesse,
outra vez, casulo!
Silêncio, silêncio.
Dormir em silêncio.
Dormir em si mesma,
sobre si mesma, dentro de si.
Há quanto tempo não
dorme...
E dormir, e
comer-se, e dormir, e comer-se.
Poupar-se.
Poupar-se.
Grande aventura foi
o voar! Sim, grande aventura!
O que fazia mesmo
enquanto dormia? Não se lembra
Ah! Descanso do
dormir! Oh! Cansaço do dormir!
A amiga cigarra,
que já é formiga...
Fragmentos de
cantos comidos.
E tudo é transmutar.
Ah! Se pudesse,
outra vez, o voo!
O gozo consciente
do voar!
Sem fome, sono,
chão, amiga, destino.
Sem visões de
formigas de asas azuis.
Nunca mais o
encolher-se
Nunca mais o
desdobrar-se
Grande aventura foi
o voar! Sim, grande aventura!
O que fazia mesmo
enquanto tentava? Não se lembra.
Ah! Descanso do
tentar! Oh! Cansaço do tentar!
6 comentários:
Obrigado Alice Gomes pela sua participação na Quinzena do Autor.
Parabéns a Alice Gomes pela excelência dos seus textos nesta seleção.
Parabéns Alice Gomes, pela versatilidade das composições, pelas imagens literárias sugeridas, pelo linguajar maduro de quem sabe colocar as palavras certas nos devidos lugares.
Parabéns ao Gandavos pela maravilhosa escolha.
Alberto Vasconcelos - Santo André/SP
Poemas fortes, bonitos e verdadeiros.
Parabéns a Alice!
Agradeço ao Carlos pela oportunidade de aqui mostrar um pouco do que escrevo. Coisa muito rara neste meio este desprendimento de dar espaço aos autores, sem qualquer interesse que não seja o de difundir a literatura brasileira. Te admiro muito por isto e você sabe. Agradeço ao Alberto pelas palavras carinhosas com que sempre me brindou neste blog. Agradeço também à Ana Bailune, poetisa de primeira grandeza, por quem nutro grande respeito literário. Este momento ficará marcado na minha memória para sempre. Obrigada.
- Alice Gomes -
Um verdadeiro passeio poético. Poesias da mais alta qualidade. Parabens Alice Gomes. Voce é poetisa de primeira grandeza.Conceição Gomes
Um verdadeiro passeio poético. Poesias da mais alta qualidade. Parabens Alice Gomes. Voce é poetisa de primeira grandeza.Conceição Gomes
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