A canção vem de longe. Acorda a
lembrança e sacode a memória, vinda do fundo do Tempo, doce e envolvente,
percorrendo de volta os caminhos da infância.
Eu era o mais taludinho do grupo,
criado ao sol e à chuva, seis a oito “capitães da areia” dos marmeleiros e das
malvas da Fazenda Cangalha, na vila de Custódia, que branquejava ao sol do
sertão.
Devia ser maio ou junho, íamos pela
vereda estreita e de repente, num deslumbramento, apareceu aos nossos olhos
atônitos o açude cheio, sangrando na fúria da enchente. Moitas verdes boiavam
na água barrenta, onde o sol rebrilhava e as andorinhas ligeiras molhavam as
penas nos voos curtos de flechas.
No ar pairava o cheiro forte da terra
molhada, o odor da vegetação que surgira, de noite para o dia no milagre das
primeiras chuvas, tapetando de verde o sertão, que ressurgia feliz. A babugem
enchia o olfato, perfume agreste de mato novo surgindo da terra molhada,
estadeada ao sol, salpicada de flor-de-jurema na festa da fecundação.
Paramos no alto e ficamos olhando a
paisagem fulgurante, diante dos nossos olhos. Depois sentei-me à sombra de um
pé-de-turco que floria ao lado, crivado de florzinhas amarelas. Ao redor em
silêncio, o grupo aguardava ordens: Jobelino, de riso largo, Pedrinho que
chamava manancia, Apolínio, invencível na baleadeira. Erasmo, orgulhoso no
canivete Corneta, “Lulu” de claros olhos e cabelos caídos à testa, Quincas e
Abraão, este o caçula da turma, gordinho e rosado, chorando com a picada das
urtigas. Também havia a índia. Sim, ali estava Xarapa, de negros cabelos e
talhe delgado, ágil como as corças, que a fome tangera de Vila-Bela para a vida
farta da fazenda de “seu” Nemésio Rodrigues.
Um dia ela chegara, de olhos baixos e
voz sumida, vestida de trapos, cabelos endurecidos pela poeira das estradas,
quase nua e faminta, pedindo um pouco dágua e um pedaço de pão.
Dona Marta lhe matou a fome e lhe
cobriu o corpo que desabrochava.
Ela ficou ajudando a preta Ana, nos
afazeres da copa.
E quando a gente varava o mato em
busca de fruta silvestre e de ninhos de pássaros, de uma curva qualquer dos
caminhos, ela saltava à nossa frente, de olhos brilhando, o cabelo solto, o
corpo esguio e moreno, ligeira como as corças. Nós a batizamos de Xarapa.
Porque ela era do grupo, tinha
direitos adquiridos, tomava parte nas brincadeiras e nas traquinadas e quando
menos se esperava, desaparecia, voltava para a preta Ana, chegava desconfiada,
a malícia nos olhos de amêndoa, pisando de leve, com pés de gato.
E sem palavras, lavava os pratos,
levava a ração aos porcos, varria o alpendre e o terreiro. Logo mais, porém,
quando menos se esperava, lá estava ao nosso lado, caçando ninho de rolinhas e
de pomba avoante, procurando umbu maduro e murta cheirosa. Ali à beira do
açude, fiamos olhando a água nova, o voo certeiro das andorinhas, a paisagem
deslumbrante do açude sangrando.
De repente Xarapa começou a cantar
uns versos magoados que ela trouxe de Vila-Bela. Talvez a lembrança do pai
morrendo à míngua, intoxicado com farinha de mucunã, a mãe desgarrada pelo
mundo; dois filhos nos braços e um no ventre, talvez a via crucis da retirada
exaustiva, sangrando os pés nos caminhos, tudo isso amolentou a garganta e adocicou
a voz de Xarapa.
Porque a música era tão triste que
doía na alma e nos chumbava em silêncio.
O tempo apagou os versos daquela
canção dolorosa.
Só a música persistiu, a melodia é
que ficou na memória, plangente e magoada como um poema que tivesse perdido as
palavras e ficasse gravado na lembrança feito somente de sonoridade.
Crônica
de Luiz Cristóvão dos Santos, extraída do livro Caminhos do Pajeú. Ed. 1954
Texto enviado por Jorge Farias Remígio em 03/05/2020
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