[CELÊDIAN] Não foi nada fácil revisitar
aquele lugar, passados mais de dois anos e confesso, me faltaram coragem e
força, mas eu não poderia adiar mais. Postei-me de frente às duas lápides, que
me pareciam frias e indiferentes àquelas histórias ali enterradas. Não sei
quanto tempo permaneci em transe, estático. Como num replay de um filme, revivi
os momentos felizes que junto à minha esposa Anna e à minha filha Polianna,
foram os melhores anos de minha vida. Cheguei a sorrir ao senti-las assim tão
perto de mim de novo.
Uma aragem
gélida e o farfalhar das folhas secas me fizeram recobrar a lucidez e naquele
momento senti um misto de saudade, tristeza, revolta, raiva. Lembrei-me de cada
detalhe daquele fatídico dia, do sofrimento que parecia me sufocar. Estávamos
em um acampamento no qual passávamos as nossas férias, quando Polianna, com
apenas seis aninhos, se perdeu na mata. Foram horas e horas de uma angustiante
busca, mesmo com a ajuda de outras pessoas que ali acampavam também. Dividimo-nos
para procurá-la. Eu fui para o lado do lago, enquanto Anna se embrenhou na
mata. Ao fim da tarde, eu retornava desolado ao acampamento, sem saber como
contar sobre minha busca infrutífera. Foi quando ouvi os gritos medonhos de
Anna, vindos da mata. Ela pedia socorro aos berros. Desabalei-me para a mata
guiando-me pelo som da voz dela, até que não a pude ouvir mais. Continuei
andando a esmo, sem rumo e foi quando me deparei com aquela cena
horripilante...
[MARINA] O ar faltou-me, por um breve
instante achei que não fosse aguentar. Minhas pernas trêmulas mal sustinham meu
corpo e meu peito ardia num nó que me estrangulava. Com esforço sobre-humano
corri para o corpo de minha esposa, mergulhado na poça de sangue que ainda
jorrava aos borbotões por um imenso corte que lhe abria o pescoço de um lado ao
outro. Ajoelhado junto ao seu corpo, fixei meus olhos de pavor no rosto pálido
da bela mulher com quem fora casado por quase dez anos. Vi que sua fisionomia
ainda guardava a expressão de terror que experimentara antes de morrer. Anna
fora morta com requintes de crueldade e o assassino não a poupara de extremo
sofrimento.
— Meu Deus! —
exclamei num grito desesperado — Quanta barbárie! O que fizeram com você, meu
amor!?
Depois de um
longo tempo em que apenas consegui cobrir o rosto e chorar toda a minha dor,
levantei-me com uma força que desconheci. Precisava chamar a Polícia, tomar
alguma providência, pedir ajuda... Dei alguns passos adiante, tentando me
orientar no meio da mata, e foi aí que outra parte do meu doloroso calvário me
colocou novamente à prova: meio coberto pelos galhos de um arbusto, avistei o
corpo de Polianna! O mesmo corte no pescoço, o mesmo modus operandi do
assassino de Anna! Não tive dúvidas. Havia algo de muito sinistro por detrás
das mortes das pessoas que eu mais amava. Os sinais deixados pelo criminoso não
deixava dúvidas: certamente, tratava-se de alguém movido por graves distúrbios
psiquiátricos, pois seria inconcebível imaginar crimes tão hediondos sendo
praticados somente por maldade. Nada justificaria tamanha selvageria. Completamente
aniquilado, atordoado pela visão de minha filha esvaída em sangue — à maneira
covarde da mãe — deixei-me cair ao lado de seu corpo, e entre soluços que me
sacudiam de forma incontrolável, fiz um juramento: eu viveria para vingar meus
dois amores...
[JOÃO BATISTA] Impulsionado por esse
sentimento, tomei nos braços o corpinho daquela criança que tanto amei, corri
sem bem saber o que fazia até chegar ao acampamento e colocá-lo ao solo, num gramado.
O pânico instaurou–se de imediato. Todos que ali também acampavam, rodearam-me,
ficando em forma de círculo, falavam ao mesmo tempo, com exclamações de terror.
Eu, ajoelhado ao lado de Polianna mal ouvia as vozes, só consegui entender que
alguém ligava para a Polícia e passava as informações do ocorrido e da
localização.
Em meio a tudo
isso, senti uma presença incômoda, relanceei o olhar a todos que me rodeavam,
até que em um ângulo de 45 graus à minha esquerda, meu olhar deparou-se com um
rosto, que por alguma razão não me era estranho. Era uma mulher que aparentava
uns 35 anos, porte esguio, cabelos ruivos ao ombro, olhos azuis, rosto delicado
com algumas sardas nas bochechas. Usava um par de óculos de sol em cima da
cabeça, prendendo o cabelo, e ao sentir-se observada por mim, baixou-o para os
olhos e passou os dedos entre os cabelos jogando-os pra trás, de uma forma
sensual, quase obscena, o que para o momento me pareceu uma afronta. Os
músculos da sua face contraíram-se num movimento quase imperceptível, esboçando
o que poderia ser um sorriso. Desviei o olhar, baixando-o para o corpo inerte
de Polianna, mas pelo canto do olho a observava. Ela tirou do bolso o celular e digitou alguma
coisa, esperou alguns instantes. Parecendo ter recebido uma resposta, foi se
afastando discretamente até que a perdi de vista.
Permaneci no
mesmo lugar, imóvel, buscando na memória algo que pudesse me revelar quem era
aquela mulher misteriosa. De repente, num flash a vi ainda adolescente...
—Não! Não! Eu devo estar
delirando, procurando um culpado. O som estridente da sirene da viatura
policial trouxe-me de volta à realidade.
[ROSÁRIO] E de repente, eu me vi envolvido numa cena de terror,
olhando os corpos das mulheres da minha vida sendo colocados em sacos plásticos,
como se fossem pedaços de carne, cobertos de sangue e do pó da terra onde
rolaram. Vi quando as levaram e alguém me guiou por caminhos que eu não via
mais. Nem sei como cheguei a casa e quem me acompanhou nos momentos seguintes,
quando passei pelo velório, assisti ao funeral e vi a terra cair sobre os
caixões da minha mulher e filha, sem que uma lágrima sequer me rolasse pela
face, ou que uma palavra saísse dos meus lábios. Fiquei assim não sei por
quanto tempo, relutando em acreditar que tudo aquilo era verdade, que havia
acontecido realmente.
E os dias foram passando, a dor foi se acomodando,
e eu tive que retornar à vida. E nesse retorno, a pergunta que me despertava
todo dia era a mesma? Por quê? Foi
tentando entender o motivo que me lembrei dela novamente. Aquela mulher que eu
vira no local do crime não me era estranha. Seu olhar buscava o meu enquanto
falava ao telefone, foi um segundo só, mas eu havia percebido. E buscando lá no
fundo das minhas memórias, de repente eu me lembrei.
-- Era ela! O olhar era o mesmo, meu Deus, como não
pensei nisso antes? O que fazia ali, naquele momento?
Foi então que me lembrei
daquela noite. Éramos jovens, na nossa pequena cidade do interior, e havíamos
terminado o ginasial. Fomos comemorar com os amigos o fim da nossa jornada e,
pela primeira vez, eu bebi além da conta. Lembro-me de ter passado mal no meio
da festa e saí para o jardim para respirar ar puro; estava me sentindo sufocado
pelo cheiro de bebida e a fumaça de cigarros que me davam náuseas. E foi ali,
recostado num banco do jardim que ela me encontrou. Lembro-me que nunca havia
falado com ela, mas ela se mostrou preocupada comigo e me ajudou a recobrar do
mal-estar. Ficamos juntos por algum tempo, até que minha mão mais atrevida
começou a acariciá-la, num gesto impensado de carinho. Ela me olhou assustada a
princípio, mas depois foi se aproximando, devagar. Notei que também havia
bebido, mas que mal isso podia fazer? Não estava acostumado a me aproximar
assim das meninas da escola, mas ela parecia diferente. Nossos corpos se
tocaram, começamos a nos beijar e, de repente, eu não era mais eu. Perdi
completamente a noção do tempo e do espaço e num instante estávamos rolando na
grama, cheios de desejo. Ela parecia louca, sequiosa dos meus beijos, enlaçando
meu corpo com as pernas, numa clara demonstração de que me queria. E eu cedi à
fraqueza do meu corpo, deixei que a paixão me dominasse e a possuí como um
animal selvagem.
Ficamos assim, por um tempo olhando as
estrelas no céu, procurando palavras que não vinham e esperando nossa
respiração voltar ao normal. Timidamente, tentei tocar-lhe os seios, mas suas
mãos foram mais rápidas que as minhas e não deixou. Achei estranho e já ia me
levantando quando um impulso me fez agarrar a sua blusa, que se abriu diante
dos meus olhos. A luz da lua iluminou
seu dorso nu e o silêncio foi quebrado pelo grito de raiva dela e pelo espanto
do meu. Em vão, ela tentava cobrir com as mãos, os seios que não existiam. Sob
os dedos crispados, apenas cicatrizes escuras, que ela relutava em esconder.
Meu olhar de espanto deve tê-la confundido, porque de repente ela saiu correndo
enquanto me amaldiçoava:
—Teve nojo? Tem nojo de mim? Ou
tem pena? Seria diferente se soubesse? Maldito! Não diga para ninguém, ouviu?
Ninguém!!! Se alguém souber que sou
assim, você ainda vai sofrer por ver cicatrizes mais fundas e tristes que as
minhas! Nunca diga nada para ninguém, esqueça que eu existo e tudo que
aconteceu aqui!!!
E sem que eu pudesse dizer
nada, ela se foi, desaparecendo pela rua escura. Algum tempo depois, desabafei
com um amigo e contei o meu segredo. Fui embora para a capital pouco tempo
depois e soube que ela também havia se mudado, quando a nossa história virou
tema de chacotas pela pequena cidade que deixamos. E agora, lembrando de tudo,
as palavras “cicatrizes mais fundas e tristes que as minhas” latejaram na minha
mente. Tive medo dos meus
pensamentos. E de repente, a garganta
cortada de Anna e da minha pequena Polianna se tornaram cicatrizes fundas e
tristes nas minhas lembranças.
[CELÊDIAN] Tomado por sentimentos muito
confusos, que variaram desde a sede de vingança pelos meus amores perdidos, a
certa culpa pelo constrangimento que causei àquela moça no passado, resolvi
tomar uma atitude para pôr fim a tamanho sofrimento. Decidido, rumei para a
minha cidade natal em busca de informações sobre a tal moça, a fim de saber
onde poderia encontrá-la para desvendar aquele mistério. Não foi difícil, pois
aquele meu amigo que se encarregou de espalhar nossa história e torná-la motivo
de chacota, foi o primeiro a quem procurei. Quase não o reconheci, o encontrei
num estado lastimável, desde aquela época tornara-se um alcoolista inveterado.
Não teve nenhum escrúpulo em me contar que passado algum tempo depois que parti
de nossa cidade, Adelina, a moça a quem ofendi profundamente no passado,
voltara, também para saber de meu paradeiro. Ela tinha sede de vingar-se de mim
e ele, no afã de controlá-la, tornou-se seu amigo e posteriormente acabaram se
apaixonando, até que se casaram. Adelina, que também se tornara uma alcoolista,
tornou-se obcecada por encontrar-me, até que isso passou a interferir de uma
forma incontrolável na relação deles. Contou-me que era louco por ela e faria
qualquer coisa para não perdê-la e foi então que ela viu num destes sites empresariais,
o meu nome e onde eu trabalhava, e daí começou a tramar sua vingança.
Aproveitando-se da louca paixão dele por ela, o convenceu a ajudá-la em sua
vingança. Vieram ambos para a cidade em que eu vivia com minha família e
passaram a seguir meus passos, a conhecer minha rotina. Foi assim que tomaram
conhecimento de nossas férias no acampamento. Foram até lá e de tocaia
aguardaram o melhor momento de atacar a minha filha. Descreveu-me com detalhes
o que Adelina, embora ela não tenha participado daquele brutal ato que ele
cometeu, assistiu a tudo com a frieza de quem esperava há anos para ver
marcadas em mim, cicatrizes mais fundas e tristes que as dela.
Ouvi cada
palavra daquele relato horrendo tremendo de ódio e asco e sem pestanejar, abri
minha pasta, saquei a minha arma e apontei para ele, mas algo me fez titubear,
não consegui atirar naquele ser desprezível e miserável. Virei as costas e saí
dali rapidamente. Foi então que tive coragem de voltar ao túmulo de minhas
amadas e ali entre as minhas boas lembranças delas, que entendi porque não tive
coragem de matar aquele sujeito: eu aprendera com elas ao longo de nossa
convivência, que as pessoas más convivem com seus infernos particulares e que
eles são o bastante para puni-las até que um dia se arrependam, ou não. Não
somos nós que definimos as suas penas.
E ali diante da presença ausente de Anna e Polianna, sorri, senti-me em paz, finalmente!
AUTORES: 1 - Celêdian Assis de Sousa; 2 - Marina Alves; 3 - João
Batista Stabile; 4 - Maria Rosário Bessas.
Um comentário:
Foi um exercício fascinante! Neste processo criativo, a cada parte, fomos montando o quebra-cabeças dos pensamentos e a diversidade resultou numa produção surpreendente. Foi um prazer interagir com meus queridos companheiros de Letras, João Batista, Celêdian e Rosário. Obrigada, Carlos, pela coordenação e orientação dos trabalhos.
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