Autora: Conceição Gomes
Conceição Gomes, paraense
nascida na cidade de Irituia, Pará, em
13 de agosto de 1944. Formada em Pedagogia pela Universidade Estadual do
Ceará. Reside em Curitiba desde 1978. É casada, dois filhos. Poetisa amadora,
escreve a partir das observações de seu entorno, seja o mais próximo ou o mais
distante. Escreve para o Portal do Poeta
Brasileiro, para os Blogs Gandavos e BVIWtecendoletras, para o site Recanto das
Letras e para sua página no facebook. É membro da Academia Itapoaense de
Letras-Itapoá, SC e da Academia Nacional de Letras do Portal do Poeta Brasileiro. Já participou de cinco antologias. Escrever para ela, é
manter sua sanidade emocional e um dos
projetos de vida.Que viva em cada um de nós, a poesia.
ARMADILHAS.
Apaixonara-se pelo homem grisalho
desde a primeira vez que o vira no
umbral do ateliê de artes. Passava por aquela rua todos os finais de tarde e depois daquele primeiro dia, ele estava
sempre na janela, por trás das cortinas rendadas. Ela fingia não vê-lo, passava
altaneira e inacessível, mas o coração denunciava o quanto desejava que ele a
notasse. Era o seu homem!.
O homem grisalho tomara-se de
amores pela moça bonita, orgulhosa e distante, que passava todos os finais de
tarde pela sua janela. Quanto sonhava em ter um olhar dela, por mais fugidio
que fosse... Era a sua mulher!
Naquela latência, em que ambos
dormitavam o amor que sentiam um pelo outro, imaginavam mirabolantes estratégias para um encontro. O homem grisalho imaginou então
que se deixasse de aparecer na janela, a moça bonita sentiria sua falta e quem
sabe, entraria no ateliê. Então, uma bela tarde, ele não apareceu. A moça
bonita afligiu-se! Observou as cortinas embaladas pelo vento e teve uma idéia.
Ateou fogo em uma delas. E fingindo o mais desesperado clamor, entrou
inopinadamente no ateliê para avisar o homem grisalho do risco de incêndio. Os
dois apagaram o fogo. Em sinal de agradecimento, o homem grisalho convidou a
moça bonita para um café. E ali, sentados em frente um do outro, olhos nos
olhos, sentimentos em ebulição, sentindo o fogo da paixão acender-se, ambos
sorviam lentamente o café, cada um pensando: armadilhas funcionam. A
minha funcionou!
CAIXA DE GUARDADOS.
Era uma caixa bem grande, 60 x60 mais
ou menos. Lá eu punha todo tipo de correspondência recebida: cartas, bilhetes,
convites e cartões de natal
Quando aposentei fui revirar a
tal caixa. Não tive coragem de jogar nada fora. Separei o que estava
datado por mês e ano e coloquei em
álbuns. Tenho cartões de natal desde 1967, quando deixei Belém para morar em
Fortaleza. Parte da minha história está nos bilhetes e mensagens que recebi de
meus alunos, na época em que ministrava cursos e treinamentos de capacitação
profissional.Outra parte está nos cartões de natal e carta dos amigos. Em
outra caixa menor estavam os
certificados, quase quatrocentos...Estão
todos em álbuns, cuidadosamente catalogados. Vocês podem perguntar: por que ela
guarda tudo isso? Não sei muito da minha história com avós, tios e primos. Eu
era muito criança quando perdi minha mãe e já não tinha avós. Meu pai se foi
quando eu era adolescente e já estava
morando longe dele. Um dia meu filho mais velho perguntou quem eram seus
antepassados e eu não soube responder.Ainda quero fazer uma pesquisa no
Cartório da cidade onde eu nasci para resgatar meus ancestrais. Por estas
razões, fiz o álbum dos filhos, especialmente do mais novo.Lá estão os
registros de nascimento meu e do meu marido, certidão de casamento, batismo,
assim como dos avós paternos, o que pude conseguir.Minha neta, a primeira e
mais jovem membro da família já foi nomeada por mim, a guardiã desses
registros. Guardei e já organizei do
mesmo jeito, todas as correspondências recebidas pelos meus filhos.Até
bilhetinhos de amigo secreto estão em álbuns. Espero dar este presente quando
Mariana completar dez anos, se eu ainda estiver por aqui, o que espero com
certeza.Também guardo com carinho uma Bíblia
Ilustrada Para Crianças. Vou encaderná-la para ser o presente de um ano
dela. Não me importo de ser chamada de saudosista. Eu sou e assumida!
Nota: Já temos o segundo neto e a
Biblia já foi entregue para Mariana.
RECORTES DA VIDA.
Já haviam se passado mais de
quarenta anos desde que havia deixado sua cidade natal para acompanhar o
marido em suas várias transferências em
função da carreira militar.Mas sempre que
voltava para visitar os familiares retornava às ruas de sua Cidade Velha,
o bairro onde havia morado até o casamento. As calçadas com suas pedras
portuguesas lhe eram tão familiares quanto o calor que lhe aquecia o corpo
todos os dias. E as fachadas das casas, com os azulejos também
portugueses...Gostava de deslizar os dedos pelos relevos dos desenhos artisticamente dispostos
e inalterados pelo tempo. Também se punha a imaginar o que acontecia nos velhos
casarões geminados com suas janelas venezianas fechadas...Nos seus tempos de menina
e de jovem, não havia medo em deixá-las abertas. Agora, isso não era mais
possível. E na sua caminhada, buscava o velho casarão onde havia nascido. Sentia-se feliz em saber quantas pedras
compunham a calçada , da cor das suas janelas e do número colado à parede. Sabia das cores que compunham os azulejos. E ao encontrá-lo, felizmente tombado pelo
patrimônio histórico, seu coração sorria aliviado. Ali estava parte de sua
história, um pedaço de sua vida. Adentrava em seu interior buscando o abraço de seus bem quereres que já estavam a sua
espera.
COMO NÃO SEI REZAR...
Que mal pergunte a quem de direito, o que há de
novo na midia televisa que não seja a
espetacularização da violência, a mediocridade dos programas que fazem apologia
a bundas e peitos e as mentiras calculadas dos politicos em desmentido s de
suas falcatruas? Teremos nós de ser
chamados de alienados se recusarmos assistir tais noticias e tais programas?
Por estas e por outras, estou pulando essas noticias, prefiro ligar meu três em
um e ouvir algo que me toque o coração como
por exemplo o encontro do caipira pirapora com o seu Deus quando ele diz, “como não sei rezar, só queria trazer meu olhar, meu olhar “ou ainda, “como vai você, que já modificou a minha
vida? E para agraciar amigos dizer,
“entre, fique à vontade , a casa é sua.”..E mandar um recado: “vai minha
saudade e diz a ele, que sem ele não pode ser, diz-lhe numa prece, que ele
regresse, que eu não posso mais sofrer”... O olhando para minha netinha, murmurar para seu coraçãozinho, “Dio como te amo”. Para os amigos
distantes cantar , “tô com saudade de tu meu benzinho”. E daqui há
pouco vou escutar Alvorada Voraz e dançar neste final de tarde comigo mesma. Ou
quem sabe, um Bolero de Ravel...
DEPOIS DO SUSTO, A SURPRESA.
Quando o casal adentrou no consultório do Dr. Bento Damasceno, o
médico teve uma surpresa fora do comum. Jamais, em toda a sua vida profissional
vira duas pessoas de tamanha feiúra física.Os bonecos dos carnavais de Olinda
perdiam de longe para o marido e a esposa, em tudo assemelhava-se a Madame Min, aquela das histórias em quadrinhos. Passado o susto, o
médico, especialista em reprodução humana, acomodou o casal e iniciou a entrevista inicial. Casados há mais de dez
anos, já haviam tentado todos os tratamentos possíveis sem
nenhum sucesso. Já estavam passando da idade para ter um filho e não podiam esperar mais.
Queriam uma criança! O Dr. Bento era a última esperança. Adotados os procedimentos para a inseminação artificial,
a mulher engravidou e durante toda a gestação foi acompanhada pelo médico,
religiosamente. Passados os nove meses, o próprio Dr. Bento fez o parto. Estava
curioso para ver o rosto da criança. Quando o bebê, uma menina, nasceu, Dr.
Bento não podia acreditar no que estava vendo. Jamais vira uma criança tão bela! Mais tarde, foi ao berçário. Por muito
tempo, admirou aquele rostinho cor de
rosa, os cabelos em cachos, tal qual os que vemos nas gravuras dos anjos, as
mãozinhas como que esculpidas pelo
cinzel de um artista...Aquela criança, nascida de pais tão feios, era de uma
inusitada beleza. E como se percebesse
que estava sendo admirada, a
menina abriu os olhos de um azul anil e
sorriu levemente, o mais belo sorriso que
ele já havia visto. E o médico, não contendo a emoção, chorou as lágrimas
mais felizes de toda sua vida.
DAS NOITES
E AMANHECERES.
Nada mais romântico do que
observar um casal banhado por uma noite
enluarada caminhando em paradisíaca
praia, entre calientes beijos e sôfregos abraços, matizes da esperança na infinitude do amor.
Inebriante é a atmosfera de
aposentos incensados pela paixão, entre lençóis de seda, dos corpos que
entregam-se à dança do acasalamento e pedem pela eternidade da noite.Quem vive ou viveu, sabe.
Suaves são as noites em que os sonhos acalentam o sagrado sono do repouso e os felizardos
podem rechaçar a indesejável insônia. Serenidade
para o próximo amanhecer.
Envolvente é o encontro de amigos
embaixo de caramanchões, ao som do violão que dedilha canções
para acalentar noites de saudades
e esperanças. A música é companheira contagiante.
Interessantes são as noitadas boêmias nos bares e becos, onde os
amantes do bom copo deságuam sonhos ou
mágoas. Para eles, a noite será sempre
uma criança.
Por tudo isso e muito mais, quase podemos ouvir os protagonistas desses cenários, dizerem em prece sussurrada para que os anjos
atendam: vamos viver intensamente esta noite, antes que o dia chegue. E nesses sagrados ou profanos momentos pode-se até desejar a finitude.
Impossível porem, fugir da realidade do amanhecer de cada dia. Ele nos aguarda
e nos diz compassivamente: acalma-te! Novas noites e novos amanheceres virão. É assim o ciclo da vida, dos dias e das
noites.
MUROS DO INCONSCIENTE
Muitos de nós somos
especialistas em criar muros onde aparecem nitidamente pixados a intolerância,
o preconceito, o amargor do silencio, a arrogancia, a maledicencia e o
egoismo...Essses muros tornam-se intransponíveis com o passar do tempo...Alem
destes, temos outros: o medo, a
insegurança, a dificuldade para
perdoar... Por algum motivo erguemos esses muros e eles vão ficando semelhantes as muralhas de pedras
das grandes fortalezas. É possível derrubá-los?
Desconfio dos determinismos de
qualquer natureza assim como da imutabilidade do caráter humano. Acredito que
apenas o conhecimento é incapaz, em larga medida, de lapidar o individuo.
Acredito sim no auto conhecimento e no exercício consciente para a mudança. É assim que construimos muros
de palhas, menos resistentes e mais fáceis de serem transpostos quando por alguma
razão pisamos feio na bola.
Falando em muro lembrei-me de um que dividia o quintal da casa de meus pais
com o do nosso vizinho, o
sinistro SR. Pedro Banana. Era feito de palhas da palmeira do açai . Era
muito frágil, mas eu e minhas irmãs não
ousávamos transpô-lo. Dizia-se que a falecida esposa do SR. Pedro estava
sepultada no quintal. Talvez fosse tudo invencionice de meus pais para impedir
que fossemos bisbilhotar onde não éramos chamadas e impor-nos limites. O medo
era maior que a curiosidade .Para mim, transpor o muro significava encarar a
falecida como a guardiã da propriedade do marido. Com o tempo aprendi que a fragilidade dos muros de palha pode
revelar-se nossa fortaleza à medida em que temos coragem para desconstruí-los em busca da nossa verdade interior.
VESTIDO VERMELHO.
Era vermelho, de seda pura, o
mais belo que já havia possuído. Guardava com todo carinho, embrulhado
em papel celofane. Aquele vestido guardava recordações de um tempo em que os toques sensuais em corpos aprendizes nas artes do amor eram
sutis e refinados. Gostava de lembrar das mãos amadas deslizando através
da seda, em seu corpo ávido de desejos.E no tempo certo, lembrava da primeira
vez em que fora despida lenta, suave e apaixonadamente pelas mãos do amor
amante e do vestido vermelho jogado no chão. Entretanto, a lembrança que mais lhe marcava a alma
era daquele dia em que pedira para a mãe
passar o vestido. Iria a um baile e já antevia os momentos de prazer. Por um
descuido, a mãe passou o ferro muito quente e queimou um pedaço do vestido.
Desolação total, choro, desespero, raiva! E a mãe calmamente: vou remendar essa tolice, para de chorar! E
com um retalho rendado da mesma cor do
vestido, aplicou um coração bem no pedaço onde havia o estrago do ferro quente
e noutros pontos estratégicos .O vestido ficou até mais bonito do que antes e
no baile, não faltaram os elogios para o
que hoje em dia chamamos de customização ou reciclagem.
CONVERSANDO COM O LEITOR.
Tenho um critério muito particular para gostar de ler algo: eu preciso
conversar com o autor. Dificilmente consigo essa sintonia se o texto for
hermético e utilize muito a meta linguagem ou as agendas ocultas, ou seja, as
entrelinhas. Isso é para intelectuais. Para o leitor comum, só é possível
mergulhar no texto se este traz
respostas ou questões que agucem a imaginação e lhe façam visualizar as cenas
descritas.Claro, não estou me referindo a livros técnicos, estes lemos por
obrigação, para alicerçar nossa profissão. Refiro-me a romances, artigos,
crônicas, ensaios etc e até mesmo na poesia.
Outro cuidado, é o respeito a norma culta. Não precisa ser empolado, mas,
concordância verbal, grafia correta,
linguagem enxuta, sem prolixidade, são
outros critérios que me agradam.
Talvez um outro critério seja escolher o público-alvo da leitura. Não daremos a
uma criança de dez anos, um romance de Jose Saramago. Monteiro lobato seria
mais adequado.
CARTA PARA MARIANA.
Hoje é 24 de dezembro de 2030. Voce está com 25 anos. A mesa para a ceia de natal está posta. Tenho certeza de que todos estão
em plena alegria. Com certeza está casada e já me deu bisnetos. Não poderia
deixar de lhe perguntar se você guardou
os álbuns de fotografias, os CDs, aqueles albinhos em que estavam todos os
cartões postais e de natal que eu colecionava e que deixei para você ser a
guardiã? E os discos de vinil? E seu pai, o meu Jean e Ronise, sua
mamita? Como estão? Voce ainda tem
cachorros? Lembra do dia em que disse se papai e mamãe brigassem com você,
iria para “Gaciosa” e não voltava nunca mais? Está realizada na profissão que escolheu?
Lembra quando disse que não queria ser professora? Você só tinha três aninhos. E eu lhe chamava
de minha morena de olhos cor de mel? Voce era linda! Ainda vai na Graciosa? E seu tio Luiz por
onde anda? E Rodolfo, com seus belos olhos azuiz? Roni e Queca já estão velhinhos? Não, acho que não!
Com sessenta e poucos anos, já não se é velho. Isso era coisa do século XX.
Minha princesa, lembre sempre do quanto
eu e seu Vô amávamos você. Deixo-lhe um abraço, deste distante ano de 2013, em
uma noite em que a lua banhava o meu jardim e eu pensava na minha finitude. A
única coisa que eu pedia naquele momento era que Deus me permitisse ver você e
Rodolfo completarem quinze anos. Sua vò Conceição.
MUDEMOS NÓS.
Imaginemos uma cidade com 12 milhões de habitantes dos quais dez milhões fumam apenas uma carteira
de cigarro por dia. São quarenta milhões
de pontas de cigarros jogadas nas
ruas. Para onde vão esses filtros? Para
os esgotos, contribuindo para o
entupimento dos bueiros. Quando você está na rua e após pitar o seu cigarrinho,
onde joga a bituca? Tenho uma amiga que anda com um potinho de maionese na bolsa.
Quando apaga o cigarro, joga lá dentro a
mal cheirosa bituca.
Em São Paulo, os serviços de coleta não dão conta de tirar o lixo jogado nas ruas, sem nenhum cuidado e muito desse lixo vai para os rios da
cidade. A prefeitura poderia colocar enormes caçambas coletoras, mas
adiantaria? Quando apenas uma parte da população faz o dever de casa e a outra é
reprovada no quesito responsabilidade pessoal e social é difícil ter uma cidade
limpa. No final das contas, pagam
todos pelo ônus das mazelas
ambientais.
Em uma cidade nortista, vi um
feirante jogando toda espécie de
detritos bem na entrada da feira e no
chão, fazendo a festa dos urubus. Nessa mesma cidade, depois de quarenta anos
persiste uma rua com um enorme valetão, cujo acesso para as casas é feito por
umas pontes de madeira. Penso que não
houve mobilização para mudar a paisagem da rua.
Gostaria muito de escrever romanticamente sobre como mudar a cidade, a
minha cidade, mas não saberia fazer isso hoje diante de tanta indelicadeza por
parte dos habitantes para com suas
cidades.Para que haja mudança, nós é que precisamos mudar. Há muitas
estratégias para provocar a mudança. Um delas é começar pelos hábitos
saudáveis e ecologicamente corretos,
entre os quais, dar um destino correto
para as sobras do famigerado cigarro. Outro, é
dar o destino adequado ao lixo,
seja orgânico ou reciclável. Ter tambem
uma sacolinha dentro do carro, evita-se jogar lixo na rua. Quem agradece? O
meio ambiente e todos nós.
ONDE ANDAM A INOCENCIA E OS INOCENTES?
Em se tratando de seres humanos penso que os inocentes só podem ser
encontrados nos berçários das maternidades do mundo inteiro.Esses ainda não
foram contaminados pelas intrusas conveniências da vida que nos levam
gradativamente a perder a nossa inocência. O que pede o grito dos inocentes? Quem são os inocentes, além dos recém
nascidos? Aqueles que clamam pela misericórdia da natureza que eles mesmos
ajudam a destruir? Ou aqueles que clamam
pela ética, pela transparência mas não
devolvem um mísero troco que lhe foi
dado a mais? Ou ainda os que saem em passeatas
contra as drogas, mas se aliam com a traficante ao adquiri-la? Ou quem clama pela justiça social, mas
explora e oprime seus serviçais? Ou os que usam o poder para humilhar, denegrir, desqualificar? Inocentes?
Eu diria que é preciso sair com uma
tocha de luz nas ruas, a procurá-los.
Há uma longa lista dos atos e fatos que
nos roubam a inocência e nos impedem moralmente de gritar. Entretanto,
desconfio muito das inevitabilidades,
até por acreditar que nós seres humanos
somos duais ou múltiplos e assim sendo, trazemos em nós muitas incoerências.Já disse também que
acredito na força do autoconhecimento o que me leva a pensar que podemos retomar sim e sempre, o
nosso direito de gritar pelo que é certo
e justo, vencendo os nossos limites e abrindo portas para possibilidades em que possamos dizer diante do espelho:
neste caso, sou inocente e meu grito há
de ser ouvido.
ONDE FICA O INFERNO?
Quando criança ouvia dizer que o inferno era uma enorme cratera,
muito, muito funda, para onde ia a alma do pecador. Então eu perguntava onde
ficava esse lugar e quem ia para lá. Minha mãe dizia: quem é guloso, quem
mente, quem bate nos irmãos menores, quem é guloso , quem não obedece aos pais e mais um rosário
de pecados. E que esse lugar que estava sempre ardendo em fogaréu, ficava em um
ponto qualquer da terra. Claro, eu tinha pavor de morrer e ir para lá, pois eu
tinha todos esses pecados. E de noite eu pedia: papai do céu, não me deixe ir
pro inferno. Prometo ser boazinha amanhã. Cresci, tornei-me adulta ainda
cultivando o pecado da gula por uma comida saborosa, mas a visão que tinha do
inferno, mudou. Não acredito mais na cratera em fogaréu, mas no inferno particular de cada um. E cada um
sabe do seu.
AS NOSSAS PORTAS.
Abra a porta e a janela e vem ver o sol nascer...Porta aberta, essa
porta não se fecha, contra ela não há queixa, são os braços de Jesus...Duas
musicas que nos remetem aos nossos sentimentos, aqueles guardados cuidadosamente atrás de portas bem
fechadas ou aqueles que deixamos fluir pelos oásis da vida, sem a preocupação
de aprisioná-los nos escaninhos do medo e do julgamento dos outros. Alguém me
disse certa vez que meus olhos eram portas
abertas que escancaravam minhas mais primitivas emoções, tal como a raiva por exemplo. O tempo nos ensina o
domínio dessas emoções, mas abrir as portas da mente e do coração para o novo, para o inédito ainda é e sempre será, um desafio
para todos nós. Gosto imensamente de viajar, por mim, daria volta ao mundo, mas nada melhor do que
abrir minha porta e adentrar no aconchego da minha casa.Aí é meu porto seguro.E
essa porta eu abro para os que amo.
DONA ISABEL
Era uma viúva, dona de umas terras, as quais arrendava para os pequenos plantadores.
Era elegante para os padrões da época, com os cabelos presos num coque e
brincos penso que de ouro pendurados na orelha.
Tinha um filho único chamado Lourival, se não me engano. Corria o boato
de que ela tinha um ciúme louco do filho e não deixava nenhuma moça do lugar, por os olhos nele. Naquele tempo eu ainda era
menina, nem cheguei a conhecer o tal mancebo.
Dona Isabel tinha um apelido,
Velha Caroara. Em Santa Catarina, segundo o meu marido, caroara é a
pessoa que gosta de fazer intrigas, fofoqueira, que fala mal de todo mundo.
Alem disso corria outro boato, de que
Dona Isabel virava matinta pereira nas
noites de lua cheia às sextas feiras. Uma bela tarde de verão, dessas em que o sol
fica à pino, eu e minhas irmãs estávamos empoleiradas em cima de uma árvore,
bem perto do caminho ou estrada por onde se transitava naquele tempo. De
repente divisamos Dona Isabel, sempre
com sua sombrinha protetora. Ela caminhava com passo miudinho, parecia uma põe- mesa, de tão empertigada que era.E
então, resolvemos azucrinar a pobre
mulher e gritamos em coro: Velha Caroara, matinta pereira do Igarapé Açu de
Cima! Dona Isabel proferiu todo o
estoque de palavrões do seu arquivo.E
nós, é claro com toda a falta de educação, caímos na risada. Essas eram transgressões que
cometíamos naquele tempo e
que se nossa mãe descobrisse, vara de
marmelo nas canelas. E foi o que aconteceu, pois dona Isabel não se fez de
rogada e foi contar a nossa travessura
para minha mãe e aí, pagamos pela nossa
falta de respeito para com os mais velhos. Dona Isabel compõe a minha galeria
dos meus tipos inesquecíveis.
Obs: a matinta pereira era um pássaro noturno com um assobio apavorante, mas naquele tempo
dizia-se que era uma sina dada como
castigo a uma pessoa. Igarapé Açu de
Cima ainda é o povoado onde eu nasci.
Autora: Conceição Gomes – Curitiba/PR
Página da autora:
Número de acesso inicial: 160.535
4 comentários:
Parabéns, amiga. Você merece todo esse reconhecimento dado pelo companheiro sol, rodeado de luzes, Carlos Lopes. Seus trabalhos são lindos, no conjunto. Um abraço.
Grande autora! A participação dela no último Gândavos foi linda!
Obrigada Carlos Lopes , Carlos Costa e Ana Bailune. Vindo de voces, é uma honra.
Que delícia de textos, Conceição!
A gente lê que nem pisca.
(Alice Gomes)
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