Acordara
tarde naquela manhã. Ainda sonolento, levantei-me depressa, quando bateram à
porta fortemente. Era Matilde, minha tia e vizinha de minha mãe. Nervosa, ela
gritava:
—Você
não atende mais telefone e nem campainha, rapaz!
—Desculpe-me,
mas eu estava dormindo! —respondi meio aéreo e sem entender toda aquela
urgência. —O que está acontecendo? —continuei.
—Seu
tio está a morrer e lhe manda chamar! —responde a mulher transtornada.
Como
se todo o ar na atmosfera tivesse faltado ao mundo, foi assim que me senti. Sem
fôlego. Uma espécie de estrangulamento, só que na alma.
Como
podia ser? Eu acabara de deixar sua casa na noite anterior. Ríramos tanto. Ele
foi se deitar e, segundo ele, ainda em condições de beber no mínimo mais cinco
garrafas. No entanto, dissera-me:
—Deixemos para ocasião melhor, quem sabe no seu noivado, heim?
A
última imagem do meu tio foi uma piscadela meio jocosa e ao mesmo tempo
carinhosa, depois que me disse essas palavras. Havíamos tomado três garrafas de
vinho e comido todo o queijo que havia na despensa. Não, não poderia ser —eu
repetia enquanto me trocava.
Nem
percebi quando Matilde saiu do quarto. Só me dei conta, quando ouvi ao longe o
seu choro convulsivo. Tinham sido namorados na juventude e só não se casaram
devido à maldade alheia e também por causa de uma promessa religiosa. Deixem-me
explicar melhor.
Eles
foram criados juntos na fazenda Ribeira, no interior de Minas Gerais, que era
do pai dela. Embora todos os considerassem como irmãos, eles não sentiam e nem
pensavam dessa forma. O que os unia era uma espécie de amor, diferente do
parental. Descobriram cedo demais esse amor, contudo despertaram para o seu
perigo tarde demais. Essas são as contradições e, ao mesmo tempo,
contrariedades por que passam os homens e as mulheres que amam. As razões pelas
quais se ama nunca serão dadas a conhecer, a não ser aquelas que os amantes
fantasiam ou inventam e dizem ao fazerem as famosas juras de amor. No entanto,
as razões para que não se ame serão sempre dadas pela realidade e brutalidade humana.
Normalmente, por pessoas que não cultivaram em seu peito a leveza e doçura dos
sentimentos amorosos ou até mesmo a urgência e a imensidão da paixão.
Assim,
uma prima torta de Matilde começou a destilar o veneno da mentira, da
falsidade. O ingrediente básico desse veneno era a inveja de sua prima, que
sempre sentira desde menina. Matilde sempre fora singela, doce e ligeiramente
acanhada, o que lhe dava certo encanto, ao contrário de Diva, que não soube
cultivar a beleza dos traços que a vida lhe esculpiu. Diva preferiu os atalhos que também a vida
lhe apresentou, embora tivesse em seu nome a chance de se tornar uma mulher
excepcional e especial, ainda que mais tarde, talvez. Dessa forma, começou a
contar histórias maldosas sobre Matilde e Baltazar-esse era o nome do meu tio.
—Meu
Deus, o que estou a dizer, era não! Baltazar é o nome dele! Ele vive e ainda
viverá muito! Preciso me apressar, pois
são duas léguas até chegar a casa dele, e eu não posso demorar!
Com
o passar do tempo, as histórias sobre Matilde e Baltazar foram se tornando cada
vez piores, no sentido de insinuar liberdades e safadezas, que —Diva sabia —ninguém
aceitaria que acontecessem, mesmo que todos naquele povoado soubessem que eles
eram primos e não, irmãos. O que o povoado não sabia era que o pai de Matilde
havia prometido a menina para Jesus e a levaria ainda jovem para um convento,
principalmente quando ficou sabendo pela sobrinha dos acontecimentos entre ela
e Baltazar. Sabe-se que essa promessa se deveu ao fato de a mãe e a menina
terem sobrevivido a um parto muito demorado e a uma hemorragia que quase lhes
levou a vida. Assim, quando todos souberam do motivo do afastamento da jovem e
do moço, nada puderam, a não ser concordar, além de considerar que o pai estava
certo, pois a menina e a mãe deviam a vida ao nosso Senhor Jesus Cristo, amém!
—Como
eu gostaria de acreditar em Vós, Senhor! Eu rezaria agora de joelhos e lhe
imploraria pela vida de meu tio. Ele não pode morrer, não agora! Ele tem 48
anos só! Só, sim! Só, no sentido de solidão! Ele nunca se casou, nunca entrou
numa igreja! Porque, segundo ele, o Senhor roubou-lhe a noiva e a deu a seu
filho. Não permitiu que se entregassem um ao outro e tivessem um futuro, coisa
que só o amor, no sentido de somente, pode nos dar! Viveram a vida pela metade!
—Eu
sou obrigado a concordar com meu tio Baltazar, Senhor! O amor é que nos dá
esperança, é que nos faz seguir adiante, ir em frente derrubando todos os
obstáculos, inclusive as cercas que nos colocam ao longo da vida! E ele bem que
tentou! Eu soube.
Foi
há muito tempo, quando ele ainda era bem jovem. Minha mãe me contou que ele
saiu um dia a cavalo e não disse a ninguém para onde ia. Ficou dez dias fora.
Muitos
anos depois, numa noite em que ele tomou um porre desgraçado, é que ele deixou
escapulir que naqueles dias ele ficou de tocaia em frente ao convento, com a
espingarda apontada para a porta da igreja que tinha ao lado. Estava só
esperando o tal Jesus aparecer para atirar nele, pois tinha decidido que se
ele, Baltazar, não podia se casar com a Matilde, Jesus também não.
Depois
do sumiço, meu tio nunca mais foi o mesmo e só foi piorando, então. Deixou de
sorrir, de falar e só voltou a conversar, segundo ele, depois que minha mãe
precisou me deixar aos seus cuidados, pois ela não tinha condições de cuidar de
mim. Eu tinha quatro anos. E ele, dezoito.
O
povo ficou apavorado, pois como um rapaz que estava perdendo o juízo dia após
dia, poderia cuidar de uma criança tão pequenina! Não sei explicar muito bem
não, só me lembro de que todo dia, ao acordar, tinha leite e broa de fubá com
queijo quentinha para eu comer, e ele me levava todos os dias ao açude para eu
tomar banho, isso no verão, é claro! Já no inverno, ele esquentava a água no
fogão a lenha e colocava na bacia para eu tomar banho quente. Eu pensava comigo
mesmo como pode alguém ter medo de um homem que sabe fazer broa de fubá quente
e que todo dia faz um brinquedinho de madeira ou sabugo de milho para eu
brincar!
—Ele
teria sido um pai amoroso, cuidadoso! Que pena meu, Deus! Por que ele não pode
amar e ter uma família como a maioria? Talvez porque ele não fosse como a
maioria. Às vezes, penso que ele carrega dentro de si uma maldição, uma espécie
de impedimento, que nem ele nem ninguém sabem por quê. Mas sabe que tem. Meu tio se convenceu disso
e nunca mais procurou a Matilde, mesmo depois de saber que ela fingiu
adoecimento mental e fugiu do convento.
Dizem
que ela tentou encontrá-lo, mas, quando ela chegou para visitá-lo, a família já
tinha avisado ao hospital. E, crentes
que ela tinha ficado mesmo louca, internaram-na num hospital grande, de muro
muito alto e de gente muito triste, que ora ficavam num silêncio tão mudo, mas
tão mudo, que a Matilde começava a gritar só para não esquecer que tinha voz e
que ainda existia.
Contou-me
também que, quando percebia que ia se perder nos labirintos da loucura, ela
tirava a roupa, para lembrar quem era ela, quando voltasse. Porque se ela
mantivesse o uniforme de louca, eles não a reconheceriam e a tratariam igual
aos outros. E, nua, ela e eles teriam certeza de que aquele corpo, aquela voz
eram dela, eram ela. Entretanto, ela me disse também que os médicos nunca
entenderam isso e davam-lhe cada vez mais remédio. Exatamente quando ela estava
melhorando, eles diziam que ela estava muito ruim.
—Se
tive alguma doença — ela dizia —foi um aperto agudo no coração, que nunca me
largou, mas essa tal de loucura, insanidade, essa eu passei longe, mesmo tendo
vivido tão perto dela e durante vinte anos!
—Lembro-me
ainda da certeza com que Matilde falava isso. Havia firmeza nas suas palavras e
brilho intenso nos seus olhos.
Há
alguns anos, ela me disse que nunca compreendeu o que a medicina, a psiquiatria
e a psicologia sabem da alma humana, pois, quando ela se manifesta, eles dão um
jeito de a esconderem de novo, com remédios, com isolamento e com falta de
atenção. Ela lembra que até choque levou. Só não ficou tantã de vez, porque
sabia quando ia ter as sessões de choque e, assim, fazia um chá com uma mistura
de ervas, que ela nunca contou quais eram.
Tomava três goles antes e dois depois e assim, segundo ela, o choque não
cumpria sua finalidade.
Quando
descobriu o efeito do chá, riu tanto, tanto, que quase a levaram novamente para
uma segunda sessão, pois parecia o diabo rindo - contou-lhe um enfermeiro, que
lhe dava cigarros de vez em quando e que permitia que o chá fosse feito na
cozinha do hospital e levado para ela. Lembro-me de ela dizer também que esse
enfermeiro era um homem bom, um homem de raízes, como ela e nossa família.
Doeu-me na alma, ouvi-la dizer isso com tamanha naturalidade, após ter sofrido
tanto, por terem-lhe tirado o amor e depois a razão, tão precocemente, ainda na
sua juventude.
—O
que a fez continuar a viver? Nunca tive coragem de perguntar. Acho que não
tinha o direito. Mas gostaria muito de saber: o que faz alguém seguir em
frente, mesmo depois de perder algo ou alguém que tanto desejara e amara? Algo
que fazia tanto sentido para sua vida?
—Meu
tio é a pessoa mais importante na minha vida, vejo isso claramente. Aliás, eu
soube disso, ainda criança, quando ele fazia rapadura e guardava uma inteira só
para mim. Mesmo quando estávamos sem dinheiro e vinham comprá-las, ele dizia
que vendera todas.
—Nunca
me esqueci de quando fui pela primeira vez à escola e comecei a chorar aflito e
desesperado, agarrando-me a suas pernas, pois não queria me separar dele. Ele
então assistiu às aulas durante um mês e meio até que eu me sentisse mais
seguro. Não preciso nem dizer a confusão na escola e na fazenda por causa dessa
decisão dele. Mas nada nem ninguém demoveu meu tio, e todo dia acordávamos bem
cedo e íamos à escola. À tarde, nadávamos pelados no açude e à noite dormíamos
no mesmo quarto. De vez em quando, eu podia jurar que ele me beijava a face,
mas nunca soube ao certo.
—Meu
tio, não vá, ainda não! Temos tanto o que fazer! Ainda não aprendi a fazer
rapadura, e você ainda não me ensinou a fazer carrinho de boi para o filho que
terei, lembra? Esqueci-me das épocas certas para o plantio do arroz, do feijão
e do milho! Por favor, não me abandone! Quem vai fazer broa de fubá quente pra
mim?
Limpo
as lágrimas e entro no quarto do meu tio.
Silêncio
absoluto. Tristeza profunda.
Ele
me deu a vida dele, pois cuidou de mim até que eu pudesse seguir o meu caminho.
E agora o que eu faço para que ele possa seguir o dele? Eu mal sei viver e, quiçá, o que dizer sobre
como ir ao encontro da morte! Seguro-lhe as mãos, frias, moles. Nada parecido
com o que tínhamos vivido ontem à noite.
—Como
pode ser? Em tão pouco tempo, da alegria para a tristeza, da vida para a morte?
Interrogo
ao vazio.
—A
Matilde bem que podia fazer um chá que parasse o tempo. E o fizesse voltar
exatamente àquele dia em que meu tio foi até o convento. Ela sairia de dentro
dele correndo e subiria na garupa do seu cavalo e trotariam pelas estradas da
vida, sobreviveriam às curvas do amor e da vida em comum e teriam três filhos.
Dois meninos e uma menina. A roça precisa de muitos braços e fortes para ararem
a terra e cortarem a lenha. Os afazeres da casa são muitos e monótonos, mas a
mulher tem paciência e sabe retirar da vida o melhor, vejam a Matilde.
Mesmo
depois de tudo o que passou, ela acorda todo dia às cinco horas da manhã, vai
para o hospital e ainda é enfermeira particular nas folgas.
—O
que será de Matilde depois que ele se for? A vida já o afastara dela por duas
vezes! —O que posso fazer por eles?
Silêncio
profundo. Tristeza absoluta.
De
pé, o jovem homem entristecido tosse engasgado e fecha os olhos, enquanto o
homem deitado e enfraquecido o observa com alegre surpresa e lhe diz:
—Querido
Antônio! Que bom que veio! Pensei que teria que tomar as cinco garrafas de
vinho sozinho! Disse com esforço.
Sorrio.
Misto de desespero e alegria, por vê-lo brincar diante do escuro, do vazio,
pelo menos é essa a ideia que faço da morte. Não consigo ver beleza, nem
leveza! Penso amargurado.
—Não
se entristeça, meu filho, a vida é cheia de surpresas e não podemos fugir a
elas. Há momentos felizes e há momentos de dor. Não façamos deste nem uma coisa
nem outra. Apenas estejamos juntos. Sente-se aqui. Continue segurando minhas
mãos. Até que eu me despeça de você e da vida. É só isso que lhe peço. Ah!
Tenho outro pedido. Cuide da Matilde, pois ela pode não aguentar. Ela é frágil.
Lembra-se do problema dos nervos dela, não deixe que a tranquem naquela gaiola
terrível, onde os pássaros não cantam, nem de desespero! Eu nunca entendi por
que Deus não quis que ela fosse minha esposa e nem mãe dos meus filhos e, há
muito tempo, eu deixei de querer entender o porquê.
—Talvez
ela fosse muito melhor do que eu, talvez não fôssemos felizes juntos, talvez eu
não a merecesse, quem sabe? O que sei é que nunca deixei de amá-la e foi por
amá-la que eu consegui amar você. Todo dia eu acordava e pensava que ela saíra
cedo de casa e fora para o trabalho na fazenda vizinha, deixando você para eu
cuidar. Então, eu tinha forças para levantar e tirar o leite, fazer a comida,
levar você para a escola e, mais tarde, vê-lo tomar a direção da cidade e
seguir seu caminho rumo à vida. Então, eu penso que Deus não me deu a Matilde,
porque ele precisava te dar um pai, e o escolhido fui eu! Se foi assim, meu
filho, eu te digo que posso não ter sido o homem mais feliz do mundo, mas fui o
pai mais feliz e orgulhoso do mundo. Posso morrer em paz!
—Não,
pai, não vá agora! Não antes de eu lhe dizer que o amo mais do que tudo nessa
vida! Não vá antes de eu te dizer que vou aprender a fazer rapadura e broa de
fubá quente para os meus filhos! E que, se eu tiver a sorte de encontrar uma
esposa, eu vou amá-la como você amou a Matilde, na presença ou na ausência! E
também quero lhe dizer que vou contar aos meus filhos o pai maravilhoso que
tive e que, só por isso, eu também pude ter filhos!
—Não
vá, pai!
Cala
Antônio, as frases na garganta.
Por
que Antônio não disse nada a ele? Por vergonha?
Por medo dos leitores acharem que é pieguice? Não!
Antônio nada disse a Baltazar, porque, muitas vezes, na vida, a intenção
adia a ação. A palavra se segue ao gesto. E o gosto, normalmente, desfaz-se
pelo desgosto.
O
susto impede a serenidade. A vida não pressente a morte. E, muitas vezes, a
morte vem rápida e a atropela.
Após
o enterro, segui para casa e encontrei Matilde desolada. Não teve coragem de ir
ao enterro. Já tivera que enterrá-lo tantas vezes, dentro dela. Também não fora, porque sabia que esse
enterro era definitivo, preferiu então ficar com os outros, na memória.
Perguntei-lhe
se queria um chá, e ela me disse:
—Só
se for um que me faça dormir e ir para junto dele para sempre!
—Então
já lhe trago um café! Dei-lhe um beijo na testa e me afastei. O que dizer numa hora dessas, o que fazer?
Não tive respostas.
Servi-lhe,
e então ela me disse:
—Sabe,
Antônio! Eu nunca entendi por que Deus não quis que eu casasse com o Baltazar e
fosse a mãe de seus filhos! Hoje, com a morte dele, eu encontrei a resposta. É
porque, se eu fosse a sua esposa e ele morresse, eu também morreria e talvez
deixássemos nossos filhos órfãos! Então, em vez de deixarmos filhos órfãos,
Deus mandou a ele um enteado, que ele amou como a um filho, e eu também. Tu
sabes, não é?
—Sim,
Matilde, sei o quanto me amas! Mas agora precisa descansar, é um dia difícil
para todos nós!
—Sim,
eu vou descansar. Venha dê-me um beijo de despedida.
—Ainda
incrédulo, aproximei-me dela, mal tive tempo de beijá-la e pude ouvir um
suspiro.
Até
hoje não sei se de dor, amor ou alívio. Finalmente, estariam juntos, na
eternidade, segundo os que acreditam.
—Eu,
que ainda não creio em Ti, Senhor! Entristece-me que não tenham estado juntos
nem na vida e nem na morte! Mas posso dizer que sou um felizardo! Sou herdeiro
de um amor sublimado!
3 comentários:
Apaixonei-me pelo texto. Tocante e belo. Conceição Gomes
Muito bom. Essa história poderia virar um romance pleno de imagens literárias. Perfeitamente dentro dos parâmetros do concurso. Parabéns a quem o produziu.
Alberto Vaconcelos
O amor através do tempo. Emocionante! Parabéns ao autor.
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