João
seguiu viagem no outro dia, acrescido dos seguintes companheiros: Mariana, o
cavalo escolhido, um cachorro policial cabeçudo com pelos e olhos amarelos e mais um cargueiro
com as coisas da Morena.
O
rosto do rapaz parecia de pedra, sem demonstrar emoção alguma. De ruídos e
claridade, só dos sapos e pirilampos e ao longe o berro de alguma rês perdida.
João estava mudo ao lado daquela pessoa de cabelos levemente ondulados que
vestia blusa de gola alta, saia amazona e botas de couro. O que denunciava a
mulher era a voz macia e delicada. Mariana aguardou em vão, ouvir palavra de
sua boca até que se arriscou:
—Pois
bem, seu João Belizário, já está na hora de dizer uma qualquer coisa, aproveita
o ar fresco da noite e me explica o motivo do silêncio.
—João
admirou o desembaraço daquela moça, que enfrentava de peito aberto a desgraça
que se abatera sobre sua vida há alguns meses.
—Dona
Mariana, pouco tenho a falar que sirva de proveito. —disse tentando em vão
desviar a atenção dela.
Com
o correr dos dias, no trotar lado a lado dos cavalos, sem perceber João contava
coisas de sua infância, das estradas e matas, das caçadas, causos contados por
sua mãe. Sem entender o que se passava, João estranhava o seu falar solto a
matar a curiosidade da moça entrando pela sua vida afora... Mariana ria,
mostrando uns dentes brancos, entre uma história e outra, provocando-lhe aquele
entornar de assunto. Quando parava ela lhe dirigia aquele par de olhos pretos
insistindo:
—Fala
mais, seu moço! Conta outra daquelas do Malazartes, ou qualquer outra. Você
fala pouco. Gosto de escutar histórias de vida, a minha sempre foi tão sem
novidades. Você ainda novo já correu mundo.
—Não
vale a pena contar tanta coisa, dona moça. Sendo novo ou não a vida vai
apagando as lembranças, ou tudo vai se arremedando igual ao que já foi.
—João
Belizário seguiu, a cada dia viajando lado a lado daquela moça em estradas
poeirentas, um tanto embaraçado pelo interesse dela. Um dia surpreendeu-se
quando a viu aos prantos.
—Se
ofendi a moça me desculpa. Não sei conversar, não sei lidar com mulher, não
queria ofender ninguém.
—Não
é nada com você João... De repente me lembrei daquele homem causador da minha
desgraça – murmurou Mariana com um soluço sufocado, disfarçando a emoção que a incomodava
– Seu peito arfava descompassado.
—João
não conseguiu desviar os olhos dos seios trêmulos sob a blusa branca. Acamparam
perto de um riacho quando se escondiam, atrás da serra, os últimos raios de
sol. Belizário preparou a fogueira soprando com força num tição, e logo as
chamas vacilantes iluminaram os últimos vestígios da tarde num contraste de
claro e escuro. Ele se encarregou de cozinhar e pouco depois os dois comeram em
silêncio a carne-de-sol que chiava no espeto, o feijão tropeiro e uns pedaços
de queijo curado.
—Na
madrugada, quando as saracuras entravam em concerto e os sapos silenciavam...,
a moça afastou-se por entre as ramagens. Estava longe o dia, despontava um
pálido clarão no horizonte. Exposta à solidão da madrugada, Mariana mergulhava
nas águas cristalinas e, quando ressurgia, seu corpo reluzia ao clarão da lua, em
linhas vigorosas. A pele em arrepios às carícias da correnteza e se abrigava
apenas no manto da espessa cabeleira que lhe tocava a cintura.
—Ao
perceber um vulto a contemplá–la, soltou um grito de espanto, cruzando os
braços sobre os seios.
—Não
tenha medo, dona Mariana. Sou eu – disse João, cabisbaixo e sem graça, enquanto
a moça tentava apressada pegar as roupas na areia.
Vestida,
a roupa amoldou aquele corpo molhado. Ela não ousava erguer os olhos. Saiu
apressada quando tropeçou e João segurou–a pelos ombros. Não viu quando a puxou
para si num abraço inesperado. Mariana correspondeu e sem timidez deixou–se
apertar ao peito forte de João. Suas bocas tremiam na ansia daquele inesperado
e primeiro beijo. Um respirar fundo um aperto no coração, mãos nervosas,
eletricidade nos corpos, denunciava João Belizário um iniciante ávido no
amor...
Com
essa madrugada de amor, João não imaginava que a vida pudesse ser tão boa. Pela
primeira vez se planejou como uma pessoa normal. Vida junto com Mariana, uma
penca de filhos, uma rocinha para tocar, sairia desta vida assassina, pois o
amor o humanizara. Com o sol já acima do horizonte, Mariana se antecipara a ele
e passara o café a moda tropeira, acordando-o com aquele perfume enfumaçado.
Depois,
enquanto Mariana arrumava as coisas pessoais, João dava trato à tropa. Em
seguida encilhou os cavalos, carregou os cargueiros. Ajudou a Mariana a montar,
sem antes dar-lhe um beijo prolongado. Pensava consigo:
“Não
tinha vivido até então, como poderia sair desta vida sem este sentimento!”
Seguiram
viagem. De taciturno, João, naquele momento, era só alegria. A todo instante, se aproximava da montaria de
Mariana, pegava em sua mão, alisava seu cabelo, contemplava–a.
“E
eu que não a queria como companhia nesta viagem!”
Fazia
planos... “vou ajuntar todas minhas coisas e vender para comprar uma terrinha,
ou então negociar com o Coronel a parte dele nesta empreita em terras. Fazer
roça de milho, abóboras, até um pouco de café. Um bom pasto para amansar as
tropas dos Coronéis. Sei que não vai me faltar serviço. Fazer um rancho, tocar
a vida com Mariana. Logo eu que sempre quis rodar mundo!”
Sua
conversa havia se destampado, a cada canto de pássaro o identificava para
Mariana, a cada erva na beira do caminho explicava para ela a utilidade,
demonstrando o conhecimento ancestral do povo dos seus pais. A dura viagem
tornou–se um passeio agradável.
—Mariana,
os pássaros enfeitam o dia como as estrelas enfeitam a noite! O canto deles dá
lugar ao brilho delas.
Mariana
por sua vez a tudo correspondia com largo sorriso, enfeitado com dentes
alvíssimos contrastando com a pele cor de Jambo. Eram apenas os dois.
Descuidados, não tomavam conhecimento dos que vinham ao seu encontro e nem de
olhos furtivos que os seguiam atrás. As compridas sombras que iam à frente de
manhã, desapareciam com o sol a pino, mais tarde cresciam seguindo–os.
Resolveram
acampar perto de outro remanso de águas cristalinas. O ritual de desarrear a
tropa, cada muar de carga, os burros
sugigando–se, vira não vira, apostava com Mariana, quem fazia a
cambalhota inteira sobre o espinhaço.
Foram se banhar juntos, fizeram amor dentro da água. Todo acanhamento da primeira
vez agora se transformava em prazer intenso.
—Mariana,
a vida vale a pena, não quero mais tirar vidas dos outros! Vou mudar a minha
existência de rumo, eu mais você e um monte de bacuris.
Mariana
sorriu e o abraçou feliz, chamando-o mais uma vez para o amor.
Estavam
casados, ambos tinham visto casamentos de amigos. O deles era diferente. Tinham
por testemunha os animais da tropa, o cachorro amarelo, os bugios e papagaios
nas árvores. A promessa verbalizada pelo padre e repetida pelos noivos dava
lugar aos olhares encantados, vontade de não mais se separarem. A aliança
selando o pacto, aqui era desnecessária. Amor infinito enquanto tivessem um ao
outro.
A
fome bateu, resolveram fazer uma refeição especial para comemorar a nova vida
junta decidida por eles, nada mais interessava, eram donos um do outro, só isso
que importava.
—Mariana,
ouvi um Jaó cantar lá para trás, vou buscá-lo, vai fazendo um arroz caprichado,
hoje a boia tem que ser especial. – Afastou-se assobiando o canto do Jaó.
—Mariana,
feliz e concentrada nos afazeres, não percebeu o cachorro amarelo que se
levantou e foi receber alguém que se aproximava, furtivamente, do acampamento.
—Mariana!
Vim te buscar. – Voz conhecida, mas que não era a de João.
Mariana
assustou-se, mas acalmou logo em seguida ao ver uma pessoa sua conhecida, era
José Cigano, o vaqueiro de Dona Luzia.
—Oi
seu Zé, o que faz por aqui? Tão longe dos seus afazeres!
—Vim
te buscar Mariana, quero você para mim, não importa que não seja mais moça por
causa daquele bandido, senti muito sua partida, não posso viver sem você.
—Desculpe
seu Zé, mas o meu coração já tá ocupado, sou agora de João Belizário. Não vou voltar
com o senhor não!
Zé
Cigano desesperou-se com estas palavras de Mariana, que atingiram diretamente
seu coração, perdeu a cabeça e se aproximou da moça agarrando-a. Mariana lutou
desesperadamente com unhas e dentes, lanhando o rosto do vaqueiro que não
desistia da luta. Por fim, vendo que não conseguiria seu intento, tirou sua
faca e esfaqueou várias vezes a moça.
—Se
você não pode ser minha, não vai ser de mais ninguém. — As forças de Mariana
desvairam-se e ela parou de lutar.
Ao
ver o que fizera e lembrando–se de quem era João Belizário, Zé resolveu se
evadir rapidamente do local.
Ao
escutar o as últimas palavras de Mariana, que só confirmaram suas suspeitas, o
assassino só poderia ser alguém conhecido, pois o cachorro não assinalara a
presença e nem evitara a aproximação até sua dona.
Ao
longe, ainda podia ouvir o galope em retirada de José Cigano.
Não
tinha pressa, uma vida inteira dali para frente, para vingar a morte da razão
da sua vida.
Primeiro
tinha que providenciar a morada eterna para sua amada. Não sabia dos rituais dos brancos, dos negros
e nem dos Kadwel. Não queria que o corpo
dela fosse consumido pelos bichos da floresta ou pelos vermes. Resolveu
queimá-lo. Ajuntou lenha, capim seco e colocou as poucas coisas da moça junto
ao corpo na fogueira. Ateou fogo e ficou a distância até que tudo virasse
cinzas, depois as recolheu e espalhou pela floresta, jogou um tanto no ribeirão
onde se amaram pela última vez. Pensou consigo, “tudo não passa de Cinzas.”
Coração empedernido.
Resolveu
voltar para Montes Claros, por duas razões: devolver as montarias que tinha
recebido por pagamento da proteção de Mariana na condução dela ao Coronel, pois
tinha falhado, e acertar as contas com o vaqueiro José Cigano. Tinha todo o
tempo do mundo, o resto de sua vida.
Seguiu
sem pressa, mas os animais sentindo que estavam voltando para casa aceleraram a
marcha, João não se importou. Ao cair da noite, sem ânimo para providenciar seu
acampamento, avistou ao longe um fogo de alguém que já estava acampado à margem
do caminho. Aproximou-se para pedir uma beirada no acampamento. Sob a luz
difusa da fogueira, não se reconheceram de imediato. José Cigano tinha atrasado
a viagem, aguou a montaria, na viagem desesperada de ida e volta.
Ao
se reconhecerem, José Cigano puxou o revólver e de imediato João disparou a cartucheira
carregada com chumbo grosso. O braço que tinha a arma virou um cotó e ainda
esparramou chumbo pela barriga, mas José Cigano sobreviveu.
—Moço,
você ainda tem outro cartucho aí, use-o atirando na minha cabeça, pelo Amor de
Deus.
João,
impávido sem nenhuma emoção, com a voz fria falou:
—Não
vai ser do jeito que você quer – retalhou a camisa do vaqueiro em tiras e
estancou o sangue do braço e da barriga de José Cigano, e o arrastou para longe
do acampamento amarrando-o em uma árvore, a outra parte do castigo teria que
ser feita à luz do dia.
—No
crepúsculo matinal entrou para dentro do mato. Teve sorte, pouco depois estava
de volta. Foi até onde estava José Cigano, que se encontrava quase desmaiado,
jogou-o sobre os ombros e o carregou para longe do caminho utilizado pelos
viajantes. Tinha experiência nisto, o povo do seu pai usava as formigas para
limpar ossos utilizados no artesanato. Amarrou–o próximo do formigueiro das "Correição",
cortou a orelha em que o vaqueiro tinha um brinco, razão do apelido “Cigano”.
Fez um caminho de sangue do formigueiro ao assassino. Esperou o corpo ser
coberto de formigas. De quase desmaiado, ficou bem acordado dando urros e
gritos horrendos. João ficou alí até se fazer silêncio, não queria que algum
viajante viesse salvá–lo.
Depois
seguiu o caminho de volta à pensão da Dona Luzia. Não ouvia mais os cantos dos
pássaros, e não via o por ou o raiar do sol. Só sombras. Em lento movimento,
observava os passos dos muares, as patas traseiras pisavam certinho no rastro
deixado pelas patas dianteiras, ficou assim como se nada mais interessasse. Não
precisava escolher as pernas das encruzilhadas, pois os animais estavam
voltando para casa e eles ditavam a toada da jornada.
Chegou
à pensão, não apeou, ficou alí mal equilibrando sobre a montaria. Os animais
aflitos para entrar nos campos de sua querência. Dona Luzia viu aquilo e
estranhou, mandou que fossem recebê-lo, tiveram que carregá-lo para dentro.
Ao
ver Dona Luzia, tirou a orelha com brinco do Cigano do bolso e nada falou. Dona
Luzia deduziu o ocorrido. Depois de dois dias de recuperação contou o
ocontecido, e disse:
—Estou
aqui à disposição, se tiver alguém disposto a vingar a morte do seu vaqueiro,
Dona Luzia, estar vivo ou morto é melhor do que estar morto-vivo.
Ficou por ali a espera de
alguém que o tirasse desta vida, ou melhor, desta falta dela. Até juntar forças
e um pouco de querência para retornar aos seus.
3 comentários:
Uma historia trágica, triste e deventurada. Conceição Gomes.
Uma ótima trama, num conto muito bem descrito. Personagens fortes e bem construídos, intimidade com o cenário e movimentação dos protagonistas. Parabéns!
Excelente texto com figuras literárias e imagens bem construídas. Parabéns a quem o produziu.
Alberto Vasconcelos
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