Cinquenta anos. Passaram-se cinquenta
anos desde que nos vimos pela ultima vez. Era um dia qualquer da semana.
Estávamos saindo do cemitério, onde havíamos assistido ao funeral de militar de
alta patente com toda aquela pantomima insossa. Salva de vinte e um tiros em
funeral... Recolhimento da bandeira que cobrira o ataúde...
Mesclado com o crepúsculo, o toque de
silêncio executado pelo jovem corneteiro com o rosto banhado em lágrimas. Era o
som da alma do afilhado a se despedir, para sempre, do padrinho e protetor...
Depois disso, apenas o som monótono do
pedreiro ajustando a tampa da sepultura.
Abraçados, viemos lentamente até ao
portão de entrada. Um beijo rápido no rosto, como despedida, e ela entrou no
carro do pai que, impaciente, gesticulava e dizia algo ininteligível.
O peso da emoção proporcionada pela
cerimônia nos guiou para casa. Nada a fazer...
II
Dentro do envelope de papel linho, o
convite dourado para a cerimônia de premiação dos melhores da propaganda e do
jornalismo me foi entregue pelo porteiro do prédio. O velho Anselmo, porteiro
desde sempre, conhecia a todos moradores. Sabia da vida de cada um, com os
mínimos detalhes.
—Nesse ano eles capricharam no convite,
doutor. Nos anos anteriores não havia tanto luxo assim...
—Acho que vou mandar você me
representar...
—Quem sou eu doutor? Quem sou eu para participar de evento como esse? E mesmo que pudesse ir, quem é que vai tomar conta de tudo isso aqui?
—Quem sou eu doutor? Quem sou eu para participar de evento como esse? E mesmo que pudesse ir, quem é que vai tomar conta de tudo isso aqui?
—Eu lhe empresto meu smoking e fico no
seu lugar... (risos)
—Eu magro do jeito que sou doutor, dentro da sua roupa iam perguntar se o defunto era maior. (risos) E tem mais, se o senhor ficar sozinho no meu lugar, dona Genoveva vai trancar a portaria e lhe dar um amasso que só vai restar o bagaço...
—Eu magro do jeito que sou doutor, dentro da sua roupa iam perguntar se o defunto era maior. (risos) E tem mais, se o senhor ficar sozinho no meu lugar, dona Genoveva vai trancar a portaria e lhe dar um amasso que só vai restar o bagaço...
—Rapaz acabe com isso. Dona Genoveva é
uma mulher séria.
—E o senhor quer seriedade maior do que um amor velho e recolhido sem coragem para se mostrar?
—E o senhor quer seriedade maior do que um amor velho e recolhido sem coragem para se mostrar?
Abriu-se a porta do elevador e quatro
garotos saíram de dentro como que catapultados.
—Esses meninos não têm jeito. (comentou
o porteiro entre dentes)
—Quem não tem jeito são os pais deles.
—Quem não tem jeito são os pais deles.
A fechadura meio que emperrou outra
vez. Amaldiçoei o esquecimento, pela enésima vez, de pedir ao síndico que
mandasse um chaveiro decente e de confiança arrumar aquela merda velha. Não era
de se estranhar que uma fechadura com mais de trinta anos de uso desse algum
problema. Na cozinha, tirei uma lasanha do freezer e coloquei no micro ondas
para descongelar. Abri um Chiante Rufino e enchi a última taça de cristal que
restava.
As outras, irmãzinhas dela, haviam
suicidado, pulando da mesa depois de terem enchido a cara de vinho sujando o
tapete e espalhando os cacos de cristal para todo lado.
Bebi um gole generoso e fui tomar banho
largando a roupa pelo chão da cozinha, corredor, quarto e banheiro. A água
estava gelada.
Eu havia esquecido, outra vez, de
mandar arrumar o chuveiro elétrico, comparsa da fechadura na arte de me
aborrecer... Mas um banho frio até que é revigorante, depois de passar o dia
todo às voltas com montanhas de papel empoeirado. (pensei assim como forma de
consolo)
Voltei para a cozinha enrolado na
toalha. Para que vestir roupa se daqui a pouco iria tirá-la para dormir? Comi a
lasanha com o vinho e fui para o sofá examinar dois processos que trouxera para
dar a sentença.
No inicio do ano passado, quando assumi
a quarta vara da capital, havia um acúmulo de processos que nenhum juiz do
mundo seria capaz de vencer sozinho. Depois de me inteirar do absurdo que me
aguardava, fui à Universidade Federal falar com o diretor do curso de Ciências
Jurídicas. Eu estava precisando formar uma equipe com dez estagiários. Deveriam
ser quintanistas e teriam bolsa de meio salário mínimo. (foi só o que consegui
com o miserável presidente do tribunal). Inscreveram-se trinta candidatos. A
prova que elaborei, eliminou mais da metade. Inaptos. Pensar que no final do
ano essas bestas vão entrar no mercado de trabalho. E o pior, serão meus
colegas de profissão...
Ainda bem que existe a prova da OAB.
A segunda prova foi a analise de um
processo. Dei uma cópia do mesmo processo a todos. Teriam quatro horas para
analisar e dar seu voto. Escolhi os dez melhores, dos quais, seis foram
brilhantes. Concisos. Incisivos. Irrefutáveis.
Na primeira semana, analisamos em grupo
as peças dos processos. Depois isoladamente e hoje tenho uma boa equipe. Nosso
recorde foi prolatar a sentença em duzentos processos numa semana.
Os dois que eu trouxe para casa, me
foram entregues por uma estagiária que fatalmente chegará à ministra num
tribunal superior, tal a retidão e o embasamento jurídico de seus pareceres.
Nesses dois casos, faremos uma representação junto à OAB contra os advogados,
por ocupar a justiça com causas banais, que qualquer conciliador de quinta
categoria daria um bom final e por acumular erros crassos de ortografia e
gramática num linguajar chulo e repleto de vícios.
III
Chegado o dia da festa, voltei cedo
para casa. Tinha que me preparar como um príncipe. O interfone tocou. Era
Anselmo para avisar que o taxi chegara. Eu não poderia dirigir naquela noite.
Geralmente volto embriagado desses encontros. Depois da premiação tem o
coquetel, o jantar, a boate... o motel. Não. Definitivamente dirigir estava
fora de cogitação. Fui recebido pelo mestre de cerimônia que anunciou a todos,
pelo microfone de lapela, que o meritíssimo senhor doutor juiz de direito da
comarca da capital estava prestigiando o evento. Entrei sob aplausos e apertos
de mãos e tapinhas nas costas dos muitos amigos que tenho na mídia.
Ser amigo de jornalista é uma boa
estratégia para se viver bem em sociedade. Ai de quem eles não gostam.
Propagandistas e jornalistas que ao
longo dos anos, pelo exercício da profissão, haviam se metido em enrascadas e
eu, de certa forma, havia ajudado nos confrontos com a lei.
Envelopes abertos e os vencedores de
cada modalidade sendo apresentados aos presentes, sob intensa salva de palmas.
O destaque da noite foi um jovem rapaz que conseguiu o primeiro lugar com duas
reportagens sobre drogas entre adolescentes masculinos e prostituição como meio
de vida entre adolescentes femininas. Alto, louro, vestido com o rigor que a
ocasião exigia, chorou ao dedicar os prêmios à sua mãe, aquela senhora vestida
de negro, cabelo cinza azulado, ostentando um colar de pérolas, sentada numa
mesa de pista.
Inicialmente pensei conhecê-la de algum
lugar. Talvez numa audiência. Talvez num júri. Não. Devia ser uma dessas
mulheres que aparecem, vez em quando, nas colunas sociais desses jornalecos com
os comentários imbecis de colunistas, geralmente, pederastas no fim da carreira
homossexual.
Mas não. Esse rosto, essa lembrança, é
algo mais marcante. Tem sabor de algo duradouro. Cheira à antiguidade. Remete a
algum lugar ou momento muito intenso num passado distante.
Aquele rosto tirou minha atenção do
resto da cerimônia. O pensamento dando voltas, revirando os arquivos adormecidos
por longos anos.
Olavo Brás, decano dos jornalistas e
presidente da associação da mídia estadual, estava em minha frente com o rapaz
laureado naquela noite.
—Doutor, quero lhe apresentar nosso
mais novo sócio. Com pouquíssimo tempo na profissão, revelou enorme talento e
preparo para o sucesso.
—É um enorme prazer conhecer o senhor,
doutor. O senhor é muito bem quisto em nosso meio. Tem ajudado aos colegas...
—Não se iluda meu jovem, nem leve em
conta o que lhe dizem. Eu apenas aplico a lei. A vantagem fica sempre com a
razão mais forte, que por pura coincidência, está com quem eu gostaria que
ficasse... (risos)
—Se o senhor permitir, eu gostaria de
apresenta-lo à minha mãe...
—Com o máximo prazer, vamos até ela.
Chegados à mesa, enquanto o rapaz
esperava que uma jornalista acabasse de entrevistar a elegante senhora, pude
observa-la melhor. Sim. Agora eu tinha certeza. Conhecia e muito bem aquela
mulher. Ninguém no mundo tinha os olhos daquela cor. Num ímpeto, segurei-a
pelos ombros colocando-a de frente para mim e chamei-a pelo nome, Helena de
Arrabal...
Surpresa com meu gesto, Helena me
encarou e eu vi em seu rosto aflorarem todos os momentos maravilhosos que
vivemos na infância e adolescência.
O primeiro beijo... Os dois cachinhos
de pelos pubianos amarrados com linha vermelha e azul colocados numa caixa de
brincos... O primeiro saco de pipoca manchado de manteiga derretida que comemos
juntos, e que ficara guardado com o canudo de papel do caldo de cana tomado no
mesmo copo... O comprovante da passagem do ônibus elétrico que nos trouxe para
o centro da cidade, quando nossos pais nos deixaram vir sós ao cinema para
assistirmos ao filme “Suplício de Uma Saudade”, impresso em papel verde, cuja
cor esmaeceu com o tempo, mas que não foi jogado fora. O botão de rosa, roubado
do jardim do colégio das freiras, no dia dos namorados, seco e sem cor,
guardado no missal...
Não sei quanto tempo permanecemos assim,
parados, embevecidos na contemplação mútua. O amor nascido na infância
compartilhada, despertado quando os hormônios nos levaram à adolescência
pontilhada de carícias proibidas e de beijos ardentes, que fora embotado pela
separação e pela obediência cega aos cânones sociais de uma época,
diametralmente, oposto aos atuais, ressurgiu vigoroso deixando-nos estáticos
pela descarga de adrenalina.
Com os corações batendo acelerados,
sentamos.
Toquei levemente seu cabelo, sua
orelha, seu rosto. Com a mão trêmula, ela ajeitou um cabelo em minha
sobrancelha e correu o indicador pelo contorno do meu lábio superior, como
sempre fizera. Por um momento, fomos sugados de volta aos anos 50... e quando
conseguimos falar, nossas vozes embargadas pela emoção, foi para dizer em
uníssono...
—Meu amor, por que nos separamos?
Autor: Alberto Vasconcelos - Santo André/SP
Autor: Alberto Vasconcelos - Santo André/SP
3 comentários:
Gosto dos textos com final feliz. Não importa o tempo, a idade, bom esse mo0mento, muito bom. Conceição Gomes.
Sensacional! Muito bem escrito, muito bem costurado, com um intenso poder de convencimento. Parabéns ao autor!
Boa tarde. Gostei muito do seu texto, uma linda estória de amor que o tempo não apagou.Abraços
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