Autora: Anajara Lopes
Hoje lembrei-me de um licor de nozes que ganhamos
de presente. Era um produto artesanal, feito numa pequena cidade da Alemanha
que não me recordo mais qual. A garrafa ficou anos guardada. Eu não havia
despertado o interesse de experimentar porque não sou muito fã de nozes e
acabei esquecendo da bebida.
As crianças já estavam dormindo. Uma música suave
tocava no velho toca-fitas. (Ainda existem?) Ah! Sim. As músicas foram
selecionadas com cuidado. E eu, gostaria muito de enxergar naquele ambiente um
clima romântico. Embora com esforço. Porque, intimamente, não mais conseguia
disfarçar a minha total indiferença por ele, mas não podia deixar de aceitar o
clima inspirador naquele dia que comemorávamos vinte anos de casamento.
Conversamos muito, meia voz e meio tom.
Via no rosto daquele homem uma pessoa mais jovem,
mais magra, mais baixa. O cabelo crespo. O rosto era bem mais delicado, com
traços mais finos, outros olhos, outra boca, outra voz. Enfim, outra pessoa.
Uma espécie de delírio que durou horas. Eu não me recordo do som da minha voz,
porque devorei o licor tão depressa que destoou do tempo que ficara guardado
esperando por mim.
Esperando por mim. Eu disse isso? É. Porque depois
daquele dia eu nunca mais fui a mesma pessoa. Como se uma zona desconhecida da
minha memória tivesse sido despertada. Eu cheguei até a pensar que todos os
casais apaixonados deveriam ter uma garrafa de licor de nozes em casa esperando
pelo momento exato de degustá-lo juntos.
As crianças não acordaram nem saíram andando
sonâmbulas pela casa. A lua era cheia, clara e bela. O dia amanheceu como todos
os outros.
Autora: Anajara Lopes - Itapecerica/MG
Autora: Anajara Lopes - Itapecerica/MG
4 comentários:
Muito, muito interessante o que diz sobre depois de 20anos. Não somos os . Será que licores façam tudo retornar ao principio? Amei o texto. Conceição Gomes.
Muito bom texto, perfeitamente dentro dos parâmetros do concurso.
Parabéns a quem o produziu.
Alberto Vasconcelos
Tenho certeza de que nada nunca mais foi o mesmo depois desta garrafa de licor. Uma delícia de leitura, lindo conto. Parabéns ao autor.
Com o passar dos anos em convívio creio que buscamos a nós mesmos no outro. Talvez os 20 anos passados sejam diluídos em algum licor do presente, para onde nos transportamos inevitavelmente, uns com o mesmo amor, outros sem aquele arrebatamento do "sim" primeiro. Esperando a nós mesmos seria em último caso a perda de um passado. Amei de morte morrida! Amei. Abraços, Michele C.Marchese
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