Um
cavaleiro solitário segue viagem comprida na estrada poeirenta. O vento
sussurra na copa das árvores enquanto o casco do cavalo faz barulho nas folhas
secas do jequitibá. À margem de suas saudades, os ramos pendem e as águas
refletem a luz da primeira estrela. No instante em que ouve o trinado de um
canarinho, recorda-se da voz de Maria Piedade.
Abatido
e vazio por dentro, Zé Justino baqueia, segura a rédea e o barulho da porteira
o joga de novo no colo da saudade e um vento frio vindo das furnas arrepia sua
pele. A Lua cochila com um brilho apagado, enfumaçado pelas queimadas do mês de
agosto. Os curiangos piam tristes, um boi perdido berra cortando a escuridão. O
homem olha o céu, sabendo do prolongar da seca até os meados de setembro.
Tenta
recobrar os pensamentos ausentes, enquanto sua vida escorre devagar pelo antigo
caminho. Busca na memória o dia em que Maria Piedade voltou à fazenda do pai. A
menina se fizera mulher durantes os anos que passara no colégio das freiras.
Pele clara, cabelos louros, braços roliços, belas curvas sob o vestido branco,
uma fala doce e andar ligeiro de bicho assustado.
Desde
o primeiro dia, o jovem Zé Justino sentiu a presença dela entrando sorrateira
pela sua vida afora. Confuso, estranhava a si mesmo. Nunca fora de falar muito,
agora a presença da filha do patrão lhe provocava aquela enxurrada dos mais
variados assuntos. Enquanto falava via na mocinha um olhar úmido e azulado de
interesse e gosto. Seus pensamentos buscavam o sorriso de Maria Piedade, queria
sentir de perto o perfume de rosas, queria aquele olhar de céu sem nuvem só
para ele. Nunca tinha visto uma moça tão bonita, tão amável, tão tudo!
Os
dois não sabiam ainda, mas já estavam unidos. Um pulsar de corações, mãos e pés
frios, andar descompassado. Gostavam dos esbarros das mãos, quando ele vinha do
curral lhe trazer o caneco de leite. A mando do patrão a acompanhava nos
passeios pela propriedade. Sentiu o calor de seu corpo quando a amparou nos
braços. Ao tropeçar no caminho ela veio lhe cair de encontro ao peito.
Naquele
momento, Piedade viu o peão da fazenda de seu pai entrar de uma vez na sua
vida. Ele tinha jeito simples, fala de sertanejo, chapéu de couro, camisa
aberta no peito, um cheiro de mato no corpo moreno, um sorriso tímido ao mesmo
tempo malicioso... Vivia apanhando flores nos pastos para enfeitar sua janela,
colhendo os frutos do cerrado que ela mais gostava. Suspiros, um prazer ao
lembrar, um sofrer na ausência. Zé Justino enchia sua vida de esperança.
Quando
ela caminhava em sua direção, ele só enxergava os cabelos anelados,
imaginava-os se emaranhando em seu peito enquanto ela lhe abraçava o pescoço
falando-lhe ao ouvido. Sentia uma alegria aquecendo seu coração, também uma
urgência, uma loucura...
Léguas
os separavam da sonhada liberdade. Então ele fugiu pelo Chapadão levando-a na
garupa. O capim gordura florido punha uma mancha arroxeada na pastagem. No
espigão pelos morros umas florezinhas miúdas amarelavam o chão pedregoso por
onde passavam os dois fugitivos.
Sabiam
que um filho de escrava e uma moça branca, seriam perseguidos até o fim do mundo...
Tinham um longo caminho pela frente. Juntos enfrentariam chuva, sol, vento e
tempestade, até ninguém mais ouvir falar deles. Sertão afora os dois iriam
desaparecer sem deixar sinal, como se fossem assombração a vagar pelo mundo
cercados de sombra e mistério.
Sob
a luz da lua pararam à beira de um rio... Cheiro de capim, frescor de água
escorrendo mansa sobre as pedras. Apearam do cavalo respirando fundo todos os
cheiros e perfumes da noite. O orvalho da manhã ainda não viera apagá-los,
quando tudo voltaria a inebriar abelhas, pássaros e bichos...
Juntos
só viam alegria e felicidade, começo de vida. Pés que não sentiam o chão,
porque ainda não era dia e só as estrelas seriam testemunhas, dois corações
disparados, olhares inquietos de iniciantes, mãos entrelaçadas, bocas coladas
em meio a suor e febre. Ali ao som da natureza se jogaram nos braços um do
outro, se esquecendo dos perigos. O fogo por dentro só se abrandaria após uma
batalha sem tempo e espaço...
A
vida lhes parecia leve, o peito estava cheio de ar e de ilusão. Adormeceram
quando o barrado no horizonte prenunciava o dia. Não viram cavaleiros
apressados descendo a serra... Na vida nem sempre se vive conforme os sonhos de
uma noite de amor...
De
volta ao presente, Zé Justino saúda o dia com uma pequena oração. Dirige o
olhar para o céu, o dia azul e o sol muito claro. A saudade de Maria Piedade
ainda dói, seu coração está como uma árvore que ainda balança as folhas muito
tempo depois de o vento ter passado...
2 comentários:
Muito boa essa forma que o autor usou para deixar que o leitor faça o desenrolar da história, quem eram os cavaleiros, que atitudes tomaram etc.
A história está perfeitamente dentro dos parâmetros do concurso.
Parabéns a quem o produziu.
Alberto Vasconcelos
Maravilhoso! Muito bem escrito, fiel ao estilo. Amei e dou parabéns, de coração, a quem o escreveu.
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