Autora: Bárbara Sanco
Bárbara Sanco nasceu em 1973, em
Porto Alegre/RS. Filha mais velha de três irmãos, aos nove anos de idade
escreveu seu primeiro poema. Desde então, em suas horas vagas, dedicou-se a
compor prosa e poesia. Hoje estuda Letras. Adora ler, mas gosta mais ainda de
escrever. Saiba mais em www.barbarasanco.com.br
Ponto de Vista
Ligia olha para o relógio. São quinze para as três. Faz mais de uma hora que ela está na sala de espera. Já folheou todas as revistas velhas e resistiu a sua mania de organização e não as colocou em ordem cronológica ou separou em pilhas de Mire e Faces. Deixou que a bagunça olhasse pra ela provocativa e não fez nada.
O ventilador de teto fazia um som cadenciado ao balançar aquela cordinha metálica, resultado da união de pequenas contas, mas não conseguia espantar o calor.
A TV ligada sem som não entretinha ninguém e a poltrona parecia mais desconfortável a cada cinco minutos.
Ligia pensa em tudo que poderia estar fazendo. Quanto tempo perdido esperando, cansando de esperar, enquanto a roupa em casa aguardava para ser passada e a lista do supermercado que jazia sufocada na bolsa teria que ser ressuscitada mais tarde.
Que bom seria ter a capacidade de dormir sentada como as duas senhoras do sofá em frente. Mas, no momento, nem isso.
De repente lhe visitam pensamentos inúteis; daqueles que a gente não sabe o que fazer com eles e dos quais queremos nos livrar logo, mas que grudam feito chiclete.
Ideias como as do tipo e se...
E se eu não tivesse escolhido esse emprego?
E se eu tivesse feito aquela viagem?
E se eu tivesse me casado com outro namorado?
Enfim uma tortura viciante.
Ligia olha pela janela, tentando fugir antes de encontrar o Minotauro deste labirinto. Do décimo quinto andar e sem muitas barreiras ela vê boa parte do bairro e alguns dos prédios do centro. Construções conhecidas, frequentadas, a igreja de Santo Expedito, o supermercado, a padaria, duas farmácias e a ponta do posto de combustíveis, carros e pessoas apressadas, certamente fazendo ou indo fazer alguma coisa e ela ali parada.
Que tédio!
Na verdade, Ligia sente até certa culpa pelo ócio. Desde que tem consciência de si mesma ela sempre buscou ocupar-se de alguma coisa. Um hábito familiar assimilado junto com valores que ela só passou a questionar depois do divórcio.
Ah o divórcio! Vinte e sete anos de casamento e agora o fantasma do divórcio materializou-se e senta com ela para jantar.
E o "e se" ressurge vestido de "se ao menos".
E se ao menos eu tivesse tido filhos?!
O sino de vento da porta da rua soa e entra mais uma mulher de peruca, seu perfume chega antes e dá náuseas de tão doce.
Ligia vai ao banheiro, molha o rosto, olha o relógio de novo e pensa e ir embora, mas terá que remarcar o horário e voltar outro dia e então passar por um segundo calvário de espera. Melhor ficar e fazer que este não seja em vão.
Bons pensamentos, bons pensamentos, coisas alegres. Droga, onde vocês estão??? Ligia tenta lembrar alguma piada. Bom, tem aquela do papagaio, a do corno, a do advogado... Não advogado não, advogado lembra divórcio. Como é difícil esquivar-se da própria mente.
Para mudar o foco Ligia olha para os sapatos. Eles estão apertando um pouco. Ela tenta lembrar porque insiste em comprar sapatos um número a menos. Será um castigo inconsciente? Nossa, essa espera está me enlouquecendo!
Ela mexe na bolsa, olha os exames novamente e resolve rezar para ter boas novas, afinal já se passou bastante tempo desde a última quimioterapia.
A secretária chama seu nome. Ligia pega a bolsa e levanta entre aliviada e apreensiva afinal dependendo da notícia esperar pode não ter sido tão ruim.
Segundo conto:
Olhar Corretor
Eu sempre vivi à sombra daquele olhar, daquelas mãos consertadoras de gravatas desalinhadas, salvadora de quadros tortos e pescadora de fiapos em lapelas.
Nenhuma naturalidade inadequada conseguia escapar.
Ela sempre foi implacável.
Ao passear pela casa, passos firmes e elegantes em saltos anabela minha mãe ia, braços polvo a organizar tudo, limpando pós invisíveis, lustrando móveis e panelas reluzentes, aplicando doses diárias, contínuas, ininterruptas, insuportáveis de perfeição ao nosso caos, ao que víamos meu irmão e eu, na rua, enfiados em alvas camisas de uniforme colegial.
Nossas golas engomadas e nossas calças bem frisadas testemunharam o verde-oliva e os tanques esmagando a terra e as consciências.
Existiam palavras proibidas, comportamentos que mesmo não havendo exígua lei que os impedisse eram severamente condenados.
As punições não ensaiavam proporções e a morte ou o desaparecimento de alguém era o tipo de notícia que não vendia jornal.
Mas tudo muda o tempo todo como diz a música do Lulu.
Meu irmão mora no estrangeiro e eu já tenho netos, que como eu só veem tanques nas ruas apenas uma vez por ano.
É proibido proibir.
As leis pegam ou não.
E os jornais estão cheios de mortos e desaparecidos.
Não uso colarinho, gravata ou lapela, a casa em que cresci foi vendida e minha mãe que agora gosta apenas de pantufas, veio morar comigo.
Em meu apartamento de viúvo nós sentamos lado a lado no sofá e damos as mãos para olhar a novela das seis, e enquanto ela vibra com a mocinha ou xinga o vilão eu tento não me incomodar com o pó sobre minhas desordenadas pilhas de livros.
Finjo não ver o amarelo das cortinas e disfarçar a imensa saudade do paraíso que ela criava com seu olhar corretor.
Ligia olha para o relógio. São quinze para as três. Faz mais de uma hora que ela está na sala de espera. Já folheou todas as revistas velhas e resistiu a sua mania de organização e não as colocou em ordem cronológica ou separou em pilhas de Mire e Faces. Deixou que a bagunça olhasse pra ela provocativa e não fez nada.
O ventilador de teto fazia um som cadenciado ao balançar aquela cordinha metálica, resultado da união de pequenas contas, mas não conseguia espantar o calor.
A TV ligada sem som não entretinha ninguém e a poltrona parecia mais desconfortável a cada cinco minutos.
Ligia pensa em tudo que poderia estar fazendo. Quanto tempo perdido esperando, cansando de esperar, enquanto a roupa em casa aguardava para ser passada e a lista do supermercado que jazia sufocada na bolsa teria que ser ressuscitada mais tarde.
Que bom seria ter a capacidade de dormir sentada como as duas senhoras do sofá em frente. Mas, no momento, nem isso.
De repente lhe visitam pensamentos inúteis; daqueles que a gente não sabe o que fazer com eles e dos quais queremos nos livrar logo, mas que grudam feito chiclete.
Ideias como as do tipo e se...
E se eu não tivesse escolhido esse emprego?
E se eu tivesse feito aquela viagem?
E se eu tivesse me casado com outro namorado?
Enfim uma tortura viciante.
Ligia olha pela janela, tentando fugir antes de encontrar o Minotauro deste labirinto. Do décimo quinto andar e sem muitas barreiras ela vê boa parte do bairro e alguns dos prédios do centro. Construções conhecidas, frequentadas, a igreja de Santo Expedito, o supermercado, a padaria, duas farmácias e a ponta do posto de combustíveis, carros e pessoas apressadas, certamente fazendo ou indo fazer alguma coisa e ela ali parada.
Que tédio!
Na verdade, Ligia sente até certa culpa pelo ócio. Desde que tem consciência de si mesma ela sempre buscou ocupar-se de alguma coisa. Um hábito familiar assimilado junto com valores que ela só passou a questionar depois do divórcio.
Ah o divórcio! Vinte e sete anos de casamento e agora o fantasma do divórcio materializou-se e senta com ela para jantar.
E o "e se" ressurge vestido de "se ao menos".
E se ao menos eu tivesse tido filhos?!
O sino de vento da porta da rua soa e entra mais uma mulher de peruca, seu perfume chega antes e dá náuseas de tão doce.
Ligia vai ao banheiro, molha o rosto, olha o relógio de novo e pensa e ir embora, mas terá que remarcar o horário e voltar outro dia e então passar por um segundo calvário de espera. Melhor ficar e fazer que este não seja em vão.
Bons pensamentos, bons pensamentos, coisas alegres. Droga, onde vocês estão??? Ligia tenta lembrar alguma piada. Bom, tem aquela do papagaio, a do corno, a do advogado... Não advogado não, advogado lembra divórcio. Como é difícil esquivar-se da própria mente.
Para mudar o foco Ligia olha para os sapatos. Eles estão apertando um pouco. Ela tenta lembrar porque insiste em comprar sapatos um número a menos. Será um castigo inconsciente? Nossa, essa espera está me enlouquecendo!
Ela mexe na bolsa, olha os exames novamente e resolve rezar para ter boas novas, afinal já se passou bastante tempo desde a última quimioterapia.
A secretária chama seu nome. Ligia pega a bolsa e levanta entre aliviada e apreensiva afinal dependendo da notícia esperar pode não ter sido tão ruim.
Segundo conto:
Olhar Corretor
Eu sempre vivi à sombra daquele olhar, daquelas mãos consertadoras de gravatas desalinhadas, salvadora de quadros tortos e pescadora de fiapos em lapelas.
Nenhuma naturalidade inadequada conseguia escapar.
Ela sempre foi implacável.
Ao passear pela casa, passos firmes e elegantes em saltos anabela minha mãe ia, braços polvo a organizar tudo, limpando pós invisíveis, lustrando móveis e panelas reluzentes, aplicando doses diárias, contínuas, ininterruptas, insuportáveis de perfeição ao nosso caos, ao que víamos meu irmão e eu, na rua, enfiados em alvas camisas de uniforme colegial.
Nossas golas engomadas e nossas calças bem frisadas testemunharam o verde-oliva e os tanques esmagando a terra e as consciências.
Existiam palavras proibidas, comportamentos que mesmo não havendo exígua lei que os impedisse eram severamente condenados.
As punições não ensaiavam proporções e a morte ou o desaparecimento de alguém era o tipo de notícia que não vendia jornal.
Mas tudo muda o tempo todo como diz a música do Lulu.
Meu irmão mora no estrangeiro e eu já tenho netos, que como eu só veem tanques nas ruas apenas uma vez por ano.
É proibido proibir.
As leis pegam ou não.
E os jornais estão cheios de mortos e desaparecidos.
Não uso colarinho, gravata ou lapela, a casa em que cresci foi vendida e minha mãe que agora gosta apenas de pantufas, veio morar comigo.
Em meu apartamento de viúvo nós sentamos lado a lado no sofá e damos as mãos para olhar a novela das seis, e enquanto ela vibra com a mocinha ou xinga o vilão eu tento não me incomodar com o pó sobre minhas desordenadas pilhas de livros.
Finjo não ver o amarelo das cortinas e disfarçar a imensa saudade do paraíso que ela criava com seu olhar corretor.
Acrisolando
Eu os vejo caminhando
Passos largos ou curtos
Mas sempre caminhantes
E eu aqui
Teclando a mesma nota solitária
É uma nota que poderia ser tudo
Qualquer música
Ela sonha ser uma trilha sonora
Mas é uma notinha boba
Que eu teclo com um único dedo que se mexe
Ela e os silêncios que a cercam
Formam um concerto
Quem disse que um só som
Não pode contar uma história
Meu único dedo, minha única nota
São perseverança
Todos os meus silêncios
São as reticências
São as entrelinhas
E minha imaginação confusa
Que às vezes prefere ficar muda
Na última maré
De repente surge uma imensa vontade de dançar
e o papel não aceita tudo
permanece mudo aos meus convites
e enquanto a música me move em gestos coordenados
tento soltar e gravar o que sinto
para que as palavras possam esboçar
o quê do quanto
O corpo persegue as notas
como se fosse pulmões em busca de ar
A dança mergulha na música
O corpo responde
e fico em sentindo as ondas
da energia
se propaga de mim para o papel
até que um poema nasce
na última maré.
Minicontos:
Sede
No deserto ela pensava.
Esse é o castigo por meus banhos demorados.
Sede
No deserto ela pensava.
Esse é o castigo por meus banhos demorados.
Homônimas
Na lista de chamada uma só pessoa,
mas eram duas as Biancas de mesmo sobrenome.
Sentaram lado a lado inconscientes de suas partes gêmeas.
Foi na apresentação pessoal que se deu a revelação da coincidência.
Vinte e cinco anos, sem que uma soubesse da outra,
fez de uma economista e de outra artista plástica.
As encarnações de duas versões humanas de um mesmo nome
estavam a um ombro de distância buscando naqueles bancos
o aprendizado sobre os mesmos mistérios.
Parece mais uma de minhas histórias inventadas,
mas a vida real gosta de competir no critério criatividade.
Hoje ela ganhou.
Eu estava lá.
Eu vi o assombro clonado dos olhares repletos de interrogações.
Abraços cordiais,
Bárbara Sanco
Escritora
9 comentários:
Tão curtinho assim? Tava bom. rsrsr Bárbara, prazer em conhecê-la.
- - Alice - -
De manhã ainda,uma boa leitura transforma a mente e o dia .Parabéns Bárbara...Autora do Brasil e do mundo . João Batista Silva, Bom Despacho-M.G.
Parabéns Bárbara Sanco, pela criatividade, leveza e correção dos seus textos.
Assim como Alice, achei pouco, gostaria de ler muito mais. Você foi muito econômica na apresentação dos seus trabalhos.
Abraço fraterno.
Alberto Vasconcelos
Santo André/SP, 06/12/2015
Obrigada Alice!
Obrigada pelas palavras incentivadoras. A saúde está me atrapalhando as tarefas. Mas pretendo mandar mais material.
Obrigada pelas palavras incentivadoras. A saúde está me atrapalhando as tarefas. Mas pretendo mandar mais material.
Parabéns, Bárbara! Excelentes textos!
Muito obrigada!
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