Texto de: Samanta Geraldini
Lá estava eu a
torcer e afrouxar parafusos no setor maquinário mais uma vez. Era um trabalho
extremamente monótono, desgastante e humilhante, mas era o melhor que
conseguira para sobreviver nesses últimos anos de muito perrengue.
A esteira
passava com os objetos de aço e eu, com uma pequena chave, rosqueava o parafuso
o mais rápido possível, apertava o botão vermelho à frente e fazia a esteira
rolar, até que o próximo objeto chegasse. E isso se repetia durante todo o
expediente. Eram oito horas seguidas nesse trabalho que qualquer robô faria
mais rápido e melhor que eu.
Não darei muitos
detalhes da firma onde trabalhava. Era um lugar pequeno, sujo e malcheiroso, e tenho
pouca empolgação para dizer algo mais a respeito.
Os setores eram
separados em “maquinário” e “elétrico”. No entanto, apenas poucos passos e uma
parede separavam os trabalhadores de cada lado.
Luzia trabalhava
na caldeira, no mesmo setor que eu. Ela era tudo pra mim! A mulher que me fazia
ter ânimo para continuar trabalhando como apertador de parafusos, que me fazia
esquecer o que é “sentido horário” e “sentido anti-horário” e me perder todo na
função mais fácil do mundo, que me fazia querer ser alguém na vida e levá-la
comigo para viver no meu mundo ideal. Mas Luzia era uma mulher muito independente
e mal me notava naquela oficina.
Para fugir do
tédio, meus colegas e eu sempre conversávamos. Falávamos de coisas bastante
banais, mas que eram um alívio para nossas mentes enferrujadas que iam, cada
vez mais, perdendo o senso crítico e a capacidade de pensar. Nesse dia em
questão, conversava com meu velho amigo Barret, uma francês-zinho que veio ao
Brasil não sei para quê, instalou-se na minha casa e decidiu, como um espelho,
fazer tudo o que faço da vida.
- Barret, faz um
favor para mim? Larga essa chave suja de óleo e vai na caldeira ver o que a
Luzia está fazendo. Eu faço trabalho dobrado enquanto você não chega.
- Por que eu
tenho que ir? Vá você! É você que gosta dessa mulher! – retrucou ele, com um ar
de revolta raríssimo de sua parte.
- Oras, não é
você quem gosta de tudo o que gosto?! – estava revoltado também.
- O quê? Cher
ami, preste atenção no que está falando! Tudo bem, eu vou, mas porque sou uma
pessoa de bom coração.
Trabalhando,
trabalhando e trabalhando, sem nunca me sentir orgulhoso de nada, eu via os
minutos passando. Sentia fome e um roncar vergonhoso no estômago que, por
vezes, chamava atenção dos meus companheiros de cargo. Sentia sono, porque
quando chegava em casa e tentava dormir, eu continuava apertando parafusos
mentalmente e não descansava de jeito nenhum. Sentia raiva de Barret que não
voltava mais, deixando seu trabalho em minhas mãos. E também sentia uma
estranha coragem para falar cara a cara com Luzia, qualquer coisa que fosse, só
para poder ouvir sua voz e alegrar meu dia inútil.
E como Barret
havia desaparecido, virei-me para o mais novo companheiro de função e lhe
disse:
- Muito bem, é
hora de ver se você realmente está preparado para isso. Cubra meu serviço por
um instante. Ah, e o de meu amigo também, já que eu estava cobrindo-o.
Antes que ele
abrisse a boca para resmungar, eu havia virado as costas e seguido em direção à
caldeira. Usava uma flanela amarela para retirar o óleo das mãos, no entanto parecia
que usá-la para secar o suor que surgia em minha testa seria mais favorável.
Mas quando
avistei Barret e Luzia conversando amistosamente em um canto daquele cubículo
onde ficava o forno de centenas de graus, meu sangue ferveu e não havia toalha
que secasse o suor escaldante em meu rosto. Meus punhos se fecharam enrijecidos
e eu parti para cima do francês de sangue quente e cabeça vazia, sem pensar na
cena esdrúxula que iniciava.
Contudo, antes
que meu soco atingisse a cara barbada daquele baixinho, Luzia se interpôs e me
fez parar.
- Não! Porque
faz assim com seu amigo, que só quer te ajudar?!
- E me ajuda
cortejando a mulher que amo? Ora essa, não é assim que funciona uma amizade...
- Cher ami, eu
estava apenas contando a ela o quão talentoso você é. Umas mentirinhas às vezes
ajudam, você deveria saber.
Depois desse
insulto, não me contive e avancei uma segunda vez, desviando de Luzia e
acertando em cheio o estômago de Barret. A mulher, atrás de mim, deu um grito
rouco, e eu, pensando que fosse apenas frescura de mulher, ignorei e desferi
novo golpe no meu falso amigo.
Luzia, porém,
continuava gritando, e era um grito agudo e cheio de medo. Olhei para ela e vi
algo estranho surgir atrás de sua silhueta. Uma chama ardente de fogo consumia
sua roupa e queimava sua adorável pele. Tentei socorrê-la, mas fui agarrado por
Barret e levei um chute atrás do joelho, caindo no chão.
O homem correu e
pegou-a no colo, no ato mais estúpido de todos. O fogo, que antes invadia o
tecido branco do avental de Luzia, passou a percorrer as malhas da roupa de
Barret também. E os dois pulavam e gritavam numa dança bizarra que me fazia rir
e enfurecer num só instante.
Por sorte
consegui pará-lo. Retirei minha dama das mãos dele e, nesse tempo, alguma
pessoa mais pensante que eu e meu amigo já vinha com um balde d’água para
apagar o fogo.
Envergonhado,
voltei para minha esteira e continuei apertando os parafusos até o horário de
ir embora. Pela rua, Barret e suas manchas roxas pela face me seguiam, como
sempre fizeram e sempre fariam. E como esperava, Luzia nunca mais olhou para
mim, dando um fim a nossa história de amor que ao menos teve um começo.
E sofrendo de
amor, com meus parafusos soltos e perdidos em algum lugar dentro de mim, cá
estou eu, a torcer e afrouxar parafusos de ferro, pois esta é a única coisa que
sei fazer.
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