Mulher Triste na Janela,
este foi o título que dei aquele quadro. Seu autor, o professor Guimarães,
nunca lhe atribuiu nome algum. Esta figura absolutamente singular é que me
motivou a escrever. Ele e seus quadros.
O professor Guimarães não era pintor profissional. Era microbiologista, professor titular de uma importante universidade federal. Foi meu orientador de tese, até que desisti de concluir o mestrado e viver a vida de maneira mais simples. Mas, esta é outra história, a qual não é objetivo deste escrito.
Voltando ao ilustre professor, tornou-se meu amigo por acaso. Certa vez, passou mal na universidade e o acompanhei ao hospital e depois à sua casa. Passei a visitá-lo regularmente até o completo restabelecimento de sua saúde. Mostrou-me alguns de seus quadros. Dizia-se pintor amador. Gostei de dois quadros em particular e perguntei-lhe sobre eles.
O primeiro retratava dois sapatos colocados em uma janela de casa antiga, voltados para a rua. Segundo ele a inspiração foi um poema de Mario Quintana, do qual leu um trecho:
...
Pus meus sapatos na janela alta,
Sobre o rebordo...Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!
E eles sonham, imóveis, deslumbrados,
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranquila de um açude...
O professor também se achava um velho barco, encalhado, esperando a morte. Aos quase oitenta anos, ainda trabalhava, segundo ele, para não morrer. Cansou-se e parou.
- Agora somente vou pintar, ouvir Astor Piazzola e tentar esquecer a Aninha.
Quem era Aninha? Tive de esperar bastante tempo para descobrir. Enquanto isso, nas minhas visitas semanais, ouvi muito Piazzolla. Uma de suas preferidas era Balada para Un Loco, recitada e cantada por Amelita Baltar:
Quereme así, piantao, piantao, piantao
Abrite los amores que vamos a intentar
La mágica locura total de revivir
¡Vení, volá, vení! ¡trai-lai-la-larará!
¡Viva! ¡viva! ¡viva!
Loca el y loca yo
¡Locos! ¡locos! ¡locos!
¡Loca el y loca yo
Esta era a parte que ele fazia voltar várias vezes. Era a preferida da Aninha. Demorou, mas o meu professor e agora amigo contou-me sobre esta sua grande paixão.
Aninha, era Anna Beatriz Carneiro e Souza, sua ex-orientanda e a perene paixão. Muitos anos mais nova do que ele. Viveram uma paixão alucinante, clandestina, principalmente devido aos preconceitos da sociedade.
- Eu era casado, disse-me ele. Ela noiva. Nos apaixonamos e vivemos um amor belíssimo, apesar de clandestino.
Os olhos do professor lacrimejavam e mostravam uma dor que não tinha nada de passado. Ela era absolutamente presente. Continuou:
- Inventávamos participações em congressos que nunca existiram. Era lindo, avassalador. Loucura absoluta. Portanto, breve!
Havia grandes pausas. A história era retomada, muitas vezes, semanas depois, sempre com grande emoção.
- Tudo começou a ruir depois da defesa de tese da Aninha e o surgimento de uma bolsa de estudos na Alemanha. Viajaram ela e o noivo, também bolsista. Escreveu-me algumas cartas, as quais foram escasseando, assim como seu amor. Restaram as cicatrizes e a dor. Meu casamento, que era apenas de aparências, também acabou. Foi a partir daí passei a me dedicar mais à pintura.
Nesta altura da narrativa, eu já estava com dificuldades para acompanhar. Meu amigo falava desarvoradamente, sem pausas.
- Aninha casou-se com o noivo. Minha mulher foi embora e o trabalho na universidade deixou de ser importante. No dia em que passei mal, tive um leve infarto, era o meu último naquele lugar. A partir daí, restou-me pintar.
Semanas depois, dei uma pausa nas visitas, eu estava ficando confuso. Ao retornar, meu amigo agora mais calmo, resolveu falar sobre o outro quadro.
- Você sabe que não dou nome aos meus quadros. Aquele ali retrata uma mulher triste, esperando o seu amado, permanecendo na janela, triste por saber que ele não voltará. Gostaria que fosse a Aninha...
Viajei um tempo e fiquei sabendo pela internet que meu ilustre amigo havia falecido. Infarto. Tentei voltar para o funeral não foi possível. Prestei minhas homenagens diante de seu túmulo.
Deixou-me de herança os dois quadros que mencionei...
Autor: Gerson de Carvalho Silva - Santo André/SP
O professor Guimarães não era pintor profissional. Era microbiologista, professor titular de uma importante universidade federal. Foi meu orientador de tese, até que desisti de concluir o mestrado e viver a vida de maneira mais simples. Mas, esta é outra história, a qual não é objetivo deste escrito.
Voltando ao ilustre professor, tornou-se meu amigo por acaso. Certa vez, passou mal na universidade e o acompanhei ao hospital e depois à sua casa. Passei a visitá-lo regularmente até o completo restabelecimento de sua saúde. Mostrou-me alguns de seus quadros. Dizia-se pintor amador. Gostei de dois quadros em particular e perguntei-lhe sobre eles.
O primeiro retratava dois sapatos colocados em uma janela de casa antiga, voltados para a rua. Segundo ele a inspiração foi um poema de Mario Quintana, do qual leu um trecho:
...
Pus meus sapatos na janela alta,
Sobre o rebordo...Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!
E eles sonham, imóveis, deslumbrados,
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranquila de um açude...
O professor também se achava um velho barco, encalhado, esperando a morte. Aos quase oitenta anos, ainda trabalhava, segundo ele, para não morrer. Cansou-se e parou.
- Agora somente vou pintar, ouvir Astor Piazzola e tentar esquecer a Aninha.
Quem era Aninha? Tive de esperar bastante tempo para descobrir. Enquanto isso, nas minhas visitas semanais, ouvi muito Piazzolla. Uma de suas preferidas era Balada para Un Loco, recitada e cantada por Amelita Baltar:
Quereme así, piantao, piantao, piantao
Abrite los amores que vamos a intentar
La mágica locura total de revivir
¡Vení, volá, vení! ¡trai-lai-la-larará!
¡Viva! ¡viva! ¡viva!
Loca el y loca yo
¡Locos! ¡locos! ¡locos!
¡Loca el y loca yo
Esta era a parte que ele fazia voltar várias vezes. Era a preferida da Aninha. Demorou, mas o meu professor e agora amigo contou-me sobre esta sua grande paixão.
Aninha, era Anna Beatriz Carneiro e Souza, sua ex-orientanda e a perene paixão. Muitos anos mais nova do que ele. Viveram uma paixão alucinante, clandestina, principalmente devido aos preconceitos da sociedade.
- Eu era casado, disse-me ele. Ela noiva. Nos apaixonamos e vivemos um amor belíssimo, apesar de clandestino.
Os olhos do professor lacrimejavam e mostravam uma dor que não tinha nada de passado. Ela era absolutamente presente. Continuou:
- Inventávamos participações em congressos que nunca existiram. Era lindo, avassalador. Loucura absoluta. Portanto, breve!
Havia grandes pausas. A história era retomada, muitas vezes, semanas depois, sempre com grande emoção.
- Tudo começou a ruir depois da defesa de tese da Aninha e o surgimento de uma bolsa de estudos na Alemanha. Viajaram ela e o noivo, também bolsista. Escreveu-me algumas cartas, as quais foram escasseando, assim como seu amor. Restaram as cicatrizes e a dor. Meu casamento, que era apenas de aparências, também acabou. Foi a partir daí passei a me dedicar mais à pintura.
Nesta altura da narrativa, eu já estava com dificuldades para acompanhar. Meu amigo falava desarvoradamente, sem pausas.
- Aninha casou-se com o noivo. Minha mulher foi embora e o trabalho na universidade deixou de ser importante. No dia em que passei mal, tive um leve infarto, era o meu último naquele lugar. A partir daí, restou-me pintar.
Semanas depois, dei uma pausa nas visitas, eu estava ficando confuso. Ao retornar, meu amigo agora mais calmo, resolveu falar sobre o outro quadro.
- Você sabe que não dou nome aos meus quadros. Aquele ali retrata uma mulher triste, esperando o seu amado, permanecendo na janela, triste por saber que ele não voltará. Gostaria que fosse a Aninha...
Viajei um tempo e fiquei sabendo pela internet que meu ilustre amigo havia falecido. Infarto. Tentei voltar para o funeral não foi possível. Prestei minhas homenagens diante de seu túmulo.
Deixou-me de herança os dois quadros que mencionei...
Autor: Gerson de Carvalho Silva - Santo André/SP
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