Autor: Fernando José Carneiro de Sousa
Corria
o ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1974 quando da origem de Os Gândavos, que
se deu no final do referido ano com a peça
“Loucuras em um São João”. Uma obra adaptada pelos alunos da 4ª
série do Ginásio Municipal Padre Leão, tendo como finalidade coroar com êxito
o término do curso ginasial. Conclusão obtida com muito esforço, pois naquela época, ensino era coisa séria.
Essa peça veio do cordel “Coco verde e melancia” que sofreu sérias
modificações feitas por nós. Cada um dava uma ideia, transmudando-a em uma nova
engraçada comédia. A peça foi um retumbante sucesso, leve-se em conta que na
época inexistia em Custódia a máquina de fazer doido ( televisão).
Naquele
tempo os meios de comunicação eram limitados, entretenimento mais ainda. Qualquer
atração artística fazia enorme sucesso (circo, cinema de 16 mm de Zé das
Máquinas, shows de auditório de Zé Melo no C.L.R.C). Tudo isso atraía
muitos expectadores.
Insuflados
por esse êxito momentâneo, resolvemos dar continuidade a atividade teatral. Aí
surgindo como por acaso e de formação espontânea “Os gândavos”, termo
descoberto por Domingos em uma
de suas muitas
viagens psicodélicas pelas páginas do “pai dos burros”, como se dizia na
época ( dicionário). As pequenas letras
do dicionário fez Domingos ler gângavos em vez de gândavos, na
realidade gandavos. Prevalecendo
a palavra gândavos por sua eufonia em relação ao hino do grupo teatral,
como acertadamente relata Celêdian em seu texto.
No
lusco-fusco de um fim de tarde, inspirado pelo ocaso, Domingos compôs em
parceria com Tonho Remígio o
hino de Os gândavos, cantado
antes das apresentações por todo elenco do grupo teatral. Em seguida, o pano se
abria e começava o primeiro ato.
Entre
os muitos talentos que compunham a trupe, o que mais admirava era Domingos por sua capacidade criativa e de improvisação, como se
tivesse vivido uma formação circense. Fraco nos ensaios e um gigante nas
apresentações (que Deus o tenha!). Lembro-me de um fato surreal na cidade de
Iguaraci: teatro completamente lotado, o ator principal tem um coma alcoólico
devido a um pileque homérico, chega carregado nos braços dos colegas minutos
antes da apresentação causando pânico geral em todos. Domingos salvou a
situação substituindo-o em atos divinos de improviso (até hoje não sei onde ele
foi buscar tanta criatividade) Com essa façanha cai o pano.
Fim
do primeiro ato.
Tudo
começou como uma simples brincadeira. Tínhamos como referência primeira o
teatro dos circos mambembes que em suas peregrinações quase messiânicas, naqueles
tempos, percorriam as vilas, povoados e pequenas cidades deixando uma forte impressão
em suas apresentações. Mesmo depois de ter ido embora os bordões usados pelos
palhaços no coroamento das piadas eram repetidos pela população como hoje se
repetem os bordões deixados pelas novelas.
Os
pequenos circos que povoavam nosso imaginário dividiam o espetáculo em duas
partes: palco e picadeiro. Começava no picadeiro com apresentação de
equilibristas, malabaristas, contorcionistas, mágicos, números de trapézio (sem rede de
proteção), palhaços engraçados que destilavam piadas picantes fazendo enrubescer
o mais sisudo dos expectadores. A máxima conhecida era: quanto menor o circo
mais “escrotos” eram os palhaços.
A
segunda parte era a peça teatral. Geralmente comédias escrachadas ou românticos
dramalhões. As comédias humorísticas protagonizadas pelo palhaço principal
tinham começo, mas às vezes não tinham fim. Então eles usavam um artifício bem
conhecido da plateia que era terminar a peça com fogo. Consistia num artista correr
atrás dos atores com um archote aceso. Todos saíam em debandada enquanto o pano caía.
Existiam
números que se repetiam em quase todas as trupes que chegavam. O “piano” era um
caso clássico. Quando começava o quadro, a plateia, pressentindo o que vinha,
gritava em uníssono: “o piano, o piano, o piano” e eles às vezes pegos de
surpresa, embaralhados, encaixavam um novo tema em cima. Algumas companhias sem
essa habilidade simplesmente concluíam o quadro do piano, que era engraçado,
porém muito repetido.
Anos depois, conversando com o palhaço Chumbrega
indaguei sobre a repetição dos números em todos os circos. Disse ele: “Os
números são iguais, a diferença é a fascinante habilidade de cada palhaço.”
A
arte primária que representava o circo do palhaço Pinicolino foi uma grande
síntese dessa atmosfera mágica que não existe mais. Essa foi uma das nossas
inspirações.
Apesar
de ter nascido de forma ingênua e espontânea, Os gândavos posteriormente foi influenciado pelo grupo
teatral "Disparada" da vizinha cidade de Sertânia (que era um grupo
mais cabeça). Além do teatro, do qual meus dois primos fizeram parte, o "Disparada"
possuía um jornal próprio, crítico e irônico nos moldes de "O
pasquim". Afinal, era época da ditadura.
Os
alunos da quarta série ginasial constituíam o grupo central da formação
original de Os gândavos. Além de alunos de outras séries e de professores como
Jussara, que fez parte da direção e do núcleo criativo do grupo, que eu lembre,
faziam parte meus primos- os irmãos Tonho e Jorge, Paulo de Zezinho Batista,
Jéfferson, Gílson Pereira, Pedro de Dona Pura, Carlos Lopes, Janete, Fátima,
Soneide, Evanúzia, figurantes das demais séries e outros dos quais não me vêm à
memória..
Depois de quase quatro décadas, para meu
espanto, quem sabe o destino
proporcionou um inusitado encontro. Nós que fizemos parte do grupo original! Esse
momento parece mágico, tão emocionante quanto estar em atuação num palco
iluminado. Além das pessoas do grupo original (tão distantes), autores desse
imenso país (distantes também) se unem
sob o nome Gândavos, um encontro para mim antes
impensável.
Lembro-me
de uma apresentação no colégio de Dr. Pedro. Que belas recordações!
Enquanto a peça rolava, tinha-se o fundo
musical “Rosamund” de Franz Schubert , que dava um ar de atemporalidade
ao momento. Vieram outras peças: Rua do lixo, 24, de Vital Santos; Morre um
gato na China ou Uma janela para o céu (Pedro Bloch) e outras que adaptamos
de sketches e de outras obras, dentre
as quais, o drama familiar que começava com a frase de Leon Tolstoi “Todas as
famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma a sua
maneira” cujo título não consigo lembrar, pois parte dessas recordações se
perdeu nas noites do tempo, nos recônditos mais sombrios das sinapses
cerebrais. Porém algo ficou para sempre. Uma lembrança doce daqueles tempos
ingênuos que jamais poderei esquecer.
Enquanto
o pano cai.
Autor: Fernando José Carneiro de Sousa - Custódia PE