Autora: Michele Calliari Marchese
Fechou os olhos a
imaginar-se tecendo carreira por carreira e colocando uma cor diferente aqui e
ali para dar um toque mais feliz naquela blusa encomendada. Com todo o suor que
escorria do seu rosto era-lhe impossível lembrar quem havia feito aquele pedido
inóspito. Fosse feito no início do frio e não no meio quando acontecem as intempéries
e o clima muda constantemente, tudo bem. Decerto esfriaria no dia seguinte e
então trabalharia com as agulhas ao lado do fogão a lenha esquentando-se com o
resultado do tricô que cairia pelos joelhos num claro sinal de que avançava
rapidamente em seu trabalho.
Tirou os chinelos que
grudaram em seus pés e jogou-os longe para nunca mais vê-los; amanhã estaria
com meias de lã que teceria em algumas horas. Colocaria pompons nos tornozelos.
Pompons cor de rosa. Sempre gostara dessa cor e achava-se bonita nela. Pensou
estar com a pele vermelha de tanto calor e o vento que antes refrescava agora
sumira para ventar em outras paragens e levantou-se para beber água. Um dia
teria também uma geladeira e conseguiria água gelada como a vizinha lhe contou
e a fez experimentar. Sensação nunca esquecida e que era bem vinda naquele
tormento.
“E o tricô?” Resmungou
baixinho como se fosse um pedido ao além. Não podia tecer nada naquele calor e
o colete encomendado teria que esperar, ou era uma blusa? Não soube precisar e
tampouco fez questão disso. Espalhou-se um pouco mais na cadeira da varanda e
viu as árvores balançando ao sabor do vento que soprava lá, mas não onde ela
estava. Faria o tricô na cor verde, um verde de folhas, de árvores, quem sabe
colocaria uma linha marrom no começo para dar a sensação da pessoa estar
vestindo uma árvore. Sim, ficaria lindo. Terminaria assim que começasse o frio.
Apesar de que as primeiras carreiras não aquecem muito as mãos, então poderia
fazer as meias com pompons cor de rosa para realçar a pele da menina. Menina
bonita aquela. Pena que a encomenda tinha sido em época tão energúmena.
Molhou um lenço para amainar
o calor do rosto e àquela hora já eram horas do marido voltar da lida e
estranhou a ausência dele com um cair de braços preguiçosos. Poderia dormir ali
não fosse a rudeza da cadeira. Não poderia esquecer jamais do tricô. Usaria
agulhas número 6 para que ficasse com os pontos maiores e terminar
imediatamente, antes do verão dar as caras e ela não conseguir mais tecer coisa
alguma. Um casaco leva tempo. Faria cachecol e toca para o marido, nas cores do
vento. “Será que a vendinha do Seu Egídio tem a cor que eu quero? Duvido.
Duvido que ele saiba a cor do vento.”
Usaria um ponto inventado
nunca visto antes por ninguém e sairia com o marido todo vestido por ela,
explicando e ensinando às outras mulheres como fazer aquela maravilha de tricô.
Ele teria que esperar, era-lhe impraticável tal feito naquele calor dos diabos.
Não poderia esquecer-se das meias. E dos pompons. E do resto também. Correu
para dentro de casa a preparar a janta que o marido não tardaria em chegar. Arrumou
um cesto onde depositaria todas as lãs para aquela encomenda inusitada. Pensou
no despropósito daquele pedido e no dia seguinte iria ter com a pessoa que ela
nem lembrava mais quem era para cancelar tamanha vestimenta. Não era capaz – e
isso ela fez as contas – em aprontar casacos, blusas, coletes, meias e outras
coisas mais em tempo tão curto. Quando fosse dormir lembrar-se-ia do
solicitador.
Fez as contas também do
quanto gastaria naquela montoeira de lãs e parafernálias que exigiam apuro e
deixou o arroz queimar. Pegou a panela e jogou no quintal. Não teria dinheiro
suficiente para a empreitada e o que fazia o marido que não chegava? Pediria a
ele um adiantamento e lhe pagaria depois quando recebesse de seus clientes
pelos trabalhos feitos com tricô.
Procurou os chinelos em vão.
Não gostava de andar descalça pelo soalho lustroso e resolveu tomar banho.
Debaixo do chuveiro de água fria, sentiu falta daquele mormaço inebriante de
horas atrás e mais um dia se passou sem que ela conseguisse iniciar seus
inúmeros trabalhos como tricoteira. Era a melhor da cidade e por causa da fama,
pedidos e mais pedidos chegavam sem ela se dar conta que de algum não tinha
tirado nem as medidas e aquela pequena que queria as meias com pompons? Como
faria sem saber o número que ela calçava? Ao pegar o sabão lembrou que era uma
recém-nascida, filhinha da Margarete, aquela da geladeira.
Um dia teria uma geladeira,
pediria ao marido quando encontrasse um e casasse. Por hora tricotaria em seus
sonhos impossíveis de mulher.
Saiu do banho em dúvidas
quanto as cores de uma luva que tinha por fazer.
Autora: Michele Callian Marchese - Xanxerê/SC
2 comentários:
Tricotar durante tempo quente não deve ser mole... mas acho que é isso que a gente faz a vida toda.
Belo conto!
Parabéns pelo belo conto que retrata fielmente a imaginação de uma pessoa só.
Alberto Vasconcelos
Santo André/SP, 09/04/2016
Postar um comentário