Meu pai muito católico mariano, desde jovem era rezador de terços (como diziam puxar o terço) nas fazendas
onde morou. Ele contava algumas histórias acontecidas em tempos idos.
Contou-nos que uma vez foi chamado para rezar um terço numa fazenda
vizinha, chegando viu a casa estava cheia de convidados, famílias vizinhas e
muitas moças solteiras e ficou com vergonha, então chamou o dono da casa de um
lado sozinho e disse, : “a casa está
cheia de moças, estou um pouco
envergonhado, o senhor não tem ai
uma pinguinha para eu tomar um trago pra dar coragem?”. E o homem respondeu:
“sim
tenho, vamos lá no quarto”. Foram os dois discretamente, ele tomou uma boa
dose de cachaça, esperou um pouco e veio para sala começar o terço.
Dizia ele que o terço foi uma beleza, puxava muito animado e o povo
respondia, inclusive as moças participavam bastante, vendo o seu desembaraço
foram também contagiadas e todos deixaram de lado a timidez, rezando e
cantando.
Essa aconteceu já na fazenda que fomos criados, mas quando era solteiro,
depois que sua mãe morreu ele ficou morando sozinho, tinha como companhia um
cachorro chamado piloto que não o deixava por nada. Uma noite sendo chamado
para rezar em outra colônia que ficava bem afastada, chamada de porteira azul,
devido a cor de uma porteira de madeira que tinha à sua entrada.
Quando saía para cidade ou ia para longe o cachorro ficava apenas
olhando deitado no quintal da casa. Mas aquela noite o piloto quis
acompanha-lo, não houve meio de evitar que fosse, então deixou-o mas ficou preocupado
pois naquela colônia havia muitos cachorros e certamente haveria brigas.
Chegando à porteira meu pai teve uma ideia, havia do lado do mourão um
pequeno arbusto, então pegando seu chapéu colocou em cima, mostrou ao cachorro
e disse, piloto deita aí, o cachorro obedeceu ficou ali esperando.
Rezou o terço, conversou com os amigos depois foi embora, chegando ao
local, estava lá deitado o cachorro esperando-o, pegou o chapéu, agradou o
piloto que o seguiu alegremente para casa.
Meu pai conheceu minha mãe também moradora da fazenda, casaram-se e
viveram lá por trinta anos, todo esse tempo continuou sendo ele o rezador de
terços.
Lembro-me quando era criança que muitas vezes ele saía à noite, dizendo
que ia rezar um terço na casa de fulano, quando era longe porque a fazenda era
grande ele ia a cavalo.
Naquela época tinha muitos terços durante o ano, fora aqueles em dias de
festa, muitos a minha mãe e nós também íamos, depois de uma idade íamos mesmo
que ela não fosse.
Chegando lá sempre já tinha alguns vizinhos que ficavam conversando com
os donos da casa e nós brincando com as crianças até chegar todos os convidados
ou pelo menos, dava o tempo para que todos chegassem.
No horário marcado chamavam as crianças para dentro reuniam todos na
sala, meu pai colocava um óculos pegava um livrinho velho e lia com alguma
dificuldade porque a luz era fraca e ele não tinha pratica de leitura.
Quando era segunda ou quinta feira rezavam-se os mistérios gozosos,
terça ou sexta feira mistérios dolorosos, quarta, sábado ou domingo mistérios
gloriosos.
Ele puxava o terço e o povo respondia, cantava um
hino e todos cantavam juntos, no final era a ladainha eram tantos rogai por
nós, que nós crianças achávamos que não acabaria nunca.
Terminado o terço era sempre servido um café ou
chocolate, vinha uma pessoa da casa carregando uma bandeja com um bule e
algumas xícaras, vez ou outra até serviam um pedaço de bolo.
Tinha uma época que o povo fazia novenas, eram
terços todas as noites, por noves dias, e nós crianças durante o dia ficávamos
comentando sobre isso e discutíamos o que seria servido.
Antigamente parece que as pessoas eram mais
religiosas e o catolicismo prevalecia, dificilmente encontrava-se uma família
protestante.
Onde morávamos havia apenas uma, nós crianças não
entendíamos aquela diferença e víamos algo de misterioso naquela família, tanto
é que quando íamos nas casas das colônias a mando das mães para convidar para o
terço, passávamos distante e bem rápido em frente à casa deles, quase com medo
que nos visse.
Esta passagem não tem nada a ver com terços, mas meu pai contou-nos que
ainda no seu tempo de solteiro, aos sábados à noite quando não tinha terço nem
baile, iam à cidade passear encontrar com os amigos e aos
domingos alguns iam a missa. Numa dessas idas a cidade, na volta aconteceu um
fato, no mínimo curioso.
Tinha três caminhos para a cidade, a estrada que saía da sede da
fazenda, um trilho no meio do pasto que chegava a duas colônias e uma outra
estrada que saía por uma colônia, chamada colônia nova e ia direto até a
cidade.
Vindo da cidade para a fazenda, antes de chegar a tal colônia nova,
havia um pau d’alho que todos diziam que era mal assombrado e em seguida uma
pesada porteira de madeira.
Foi por essa estrada que ele voltava da cidade numa
noite de sábado já de madrugada. Noite enluarada sem nenhum vento, ar parado,
não se via mover nenhuma folha das árvores ou moitas de capim nas margens da
estrada. Quando ele passava em frente ao pau d’alho a porteira abriu lentamente,
ele arrepiado, tremendo passou e ela fechou da mesma forma sem bater, encostou
suavemente ao mourão.
Mas meu pai não era só rezador, também tinha outras
funções que ele executava eventualmente como voluntário, tosava e cortava
cascos de cavalos e ainda uma que é inimaginável nos dias de hoje, aplicava
injeções.
Geralmente o pessoal quando precisava iam à
farmácia, dificilmente procuravam o médico só quando não tinha mesmo jeito.
Havia na pequena cidade um farmacêutico que muitos costumavam dizer, (sabe mais que alguns médicos), assim
recorriam a ele, dependendo do caso vinham com injeções.
Quem precisasse ia em casa à noite, se o doente não
pudesse andar ou fosse pessoa muito idosa, meu pai ia até sua casa.
Lembro-me ainda pequeno de ver muitas vezes ele
preparando injeções, pegava um estojo inox que tinha dentro umas duas seringas
e algumas agulhas, pegava as que ia usar, virava a tampa do estojo e enchia com
álcool, em cima colocava um suprtezinho de aproximadamente dois centímetros de
altura e nele o estojo com água, seringa e agulha dentro, colocava fogo no
álcool que até queimar todo fervia água para esterilizar o material.
Nunca aconteceu nenhum caso de alguém passar mal
por causa da injeção, reação ou alergia, apenas passavam medo vendo sua mão
grande, grossa e pesada pelo trabalho na roça.
Este texto eu contei um pouco da vida do meu pai,
um homem simples que nunca foi um dia numa escola, o que aprendeu foi com o seu
pai que tinha algum estudo na Itália, quando veio para o Brasil aprendeu nossa
língua e dava aulas para as crianças nas fazendas onde morou, à noite com a luz
de lampião.
Ele aprendeu a ler, escrever e fazer as quatro
operações, o suficiente para se virar numa época em que o povo das fazendas
eram na sua maioria analfabetos.
Autor: João Batista Stabile - Marília/SP
Nenhum comentário:
Postar um comentário