Autor: Geraldinho do Engenho
A
mãe submissa mal podia tocar o nome da filha. Aos amigos o pai dizia que a
filha decidira pôr em prática sua vocação religiosa com seu voto de pobreza.
Do
jovem que misteriosamente desapareceu, os pais esperavam pelo milagre de sua
volta. A pobre mãe perdera em lágrimas toda alegria de viver.
Toda
a hipótese seria válida, mas a mais viável seria a grande cheia tê-lo sugado
impiedosamente, naquela ultima tempestade que desabou como um dilúvio.
A
reputação do pai com a patente de coronel, e com seu poder, eram mais
importante e acima de qualquer bem material, o imaterial não fazia parte de sua
trajetória. Obviamente o que contava era apenas sua conotação social onde o
poder do vil metal era o magistral juiz
Naquele
cubículo quase sem claridade, a esperança era a única luz. Somente a bondosa Bá
que a viu nascer e preparara com tamanhos mimos e carinho sua festa de 15 anos,
tinha acesso a ela. Despojada
de suas jóias, restara apenas sua correntinha de ouro cujo pingente era uma
medalhinha da Virgem Maria contendo as iniciais A.C. de Ana Cristina, nome
escolhido pela mãe, o único desejo satisfeito pelo marido naquele matrimônio
marcado por um angustiante machismo.
Já
no sexto mês de cativeiro e angústia, seu único contato era quando sua BA e sua
mãe furtivamente burlavam as ordens do pai, levavam-lhe um pouco de afeto.
Enfim
chegara o momento. Fortes dores e contrações repetidas anunciaram o que deveria
ser o fim de um martírio. O choro de
anjo, num bebê robusto de olhos azuis, quebrou a monotonia daquele quadrilátero
sem ventilação. A alegria da mãe ao recebê-lo no seu aconchego cortou o coração
de sua Bá, sabedora do destino incerto daquele indefeso inocente.
À
exata zero hora, nascia o fruto daquele amor proibido. Duas horas após, uma
carruagem desaprecia na curva da estrada deixando para trás os rastros da
crueldade e, na sombra da noite, uma pobre mãe que mal teve tempo de colocar
seu único bem, um pingente da mãe de Jesus, no pescocinho de seu bebê. As horas
passaram moderadamente. Os apelos da nova avó só aumentaram o ódio do pai cujo
objetivo era apenas lavar o que ele afirmava ser sua honra.
Mais
duas semanas já não havia mais lágrima na fonte resignada daqueles olhos quase
sem cor, tentando suportar a claridade de um novo presídio, desta vez liberta
da escuridão, mas longe do único bem que lhe restou.
Aos
poucos, a dor da alma petrificava. No coração, uma cicatriz profunda emoldurada
por aquele rostinho que fora brutalmente arrebatado dos teus braços.
Penalizada
com tamanha tristeza a madre superiora do convento onde fora aprisionada,
compadecida, estendeu-lhe a mão num gesto de ternura maternal. E assim pouco
tempo após, as chagas da solidão já sinalizaram um abertura para a alegria,
embora a saudade obstruísse aquele sorriso que ficou tão distante, perdido na
penumbra sombria da alcova. Mas os estudos e as orações preencheram aquele
vazio. E a bondosa madre já conhecia todos os detalhes do seu martírio.
Agora
seria possível, autorizada pela madre, arbitrar sua própria decisão na escolha
do caminho a seguir. Pela primeira vez, sentiu-se aliviada sob o manto protetor
da superiora que lhe delegou o poder de escolha. Sonhar sim, mas sorrir ainda
era cedo, talvez impossível.
Estava
decidida a obedecer a sua vocação e cursar enfermagem. Cinco anos de dedicação
e o sonho realizado. Estava com o tempo dividido entre o primeiro emprego no
hospital público mais as horas dedicadas ao convento que adotara como filha.
Ocupações que preenchiam todo aquele espaço que um dia alimentou o sonho de um
grande amor. E assim mais vinte anos de portas fechadas para o amor, sem uma
única noticia de pai e mãe.
Conserva-se
o caráter sombrio e profundo pela convivência com aquele filme engavetado na
mente que vinha à tona quase sempre. Os anos de experiência, cursos e
congressos a colocaram num patamar de capacidade e conhecimento indispensável
para aquela instituição que se tornara como seu verdadeiro lar.
Era
uma quarentona, agora, que jamais pensaria em amor, bastando-lhe seu círculo de
amizade enriquecido no trabalho coroado pelo êxito profissional.
Isso
até aparecer Júlio César, aquele médico dedicado de olhos azuis que reprisava
um rostinho inocente que estivera em seus braços, por poucos momentos, há
exatos vinte cinco anos. Seria amor à primeira vista ou ironia que viera mudar
seu destino?
O
fato é que ambos estavam perdidamente apaixonados. Há poucas semanas se
conheceram, mas ambos tinham histórias a ser desvendadas e a perda de tempo
poderia atrapalhar aquele amor que surgiu quase num estalar de dedos. Os
colegas de trabalho e a velha madre do convento ficaram eufóricos quando
anunciaram o noivado.
Travou-se
uma disputa acirrada entre hospital e colégio pelo local na realização do
enlace. Venceu a madre que ofereceu a capela do convento, alegando ser o lar de
Ana Cristina e se dizendo em condições de providenciar um padre do orfanato
vizinho para a celebração.
Tudo
preparado, a capela superlotada, a noiva deslumbrante, o noivo, idem, e o
padre, um jovem de vinte e cinco anos, rosto modelado, olhos azuis. Ana Cristina encantada com aquele rosto
jovial, que lhe parecia familiar, estava quase sem voz para responder o ritual
da cerimônia.
Terminando,
o jovem padre abraçou os noivos e num gesto de carinho começou a discursar
fundamentado no tema bíblico sobre a paternidade. Dizendo lamentar-se não ter
conhecido os pais. Fora entregue ao orfanato pelo avô juntamente com uma alta
cifra em dinheiro, um valor suficiente para custear seus estudos. Embora
tivesse pesquisado a respeito de sua origem, nada havia conseguido. Apenas
possuía uma pequena medalha que segundo afirmaram, levaram com ele.
Admirado,
Julio César retrucou:
—Curiosamente
temos história parecida. Eu me chamava Antônio Carlos. De repente cai num
profundo sono e fui seqüestrado não sei por quem. Quando acordei, estava preso
num colégio interno e com uma certidão de nascimento com o nome de Júlio César
e afirmando ser filho de pais desconhecidos cuja herança fora depositada em um
banco. Esta herança seria liberada somente para o reitor do colégio custear
meus estudos. E assim eu cursei medicina
e aqui estou, mas pretendo em breve procurar minha origem. O sonífero que me
aplicaram apagou completamente meu passado, a minha memória tem registro
obscuro. Lembro-me vagamente em sonhos, de ser chamado pelo nome Antônio
Carlos.
Ana
Cristina que até então só ouvia entra em cena.
—E
tu padre responda-me... Tua medalha tem as iniciais A N.?
—Sim...
Ei-la aqui!
—Me
abrace, filho querido... Sou tua mãe e aqui está teu pai! Dr. Julio César é teu pai! Somos vitimas da
ganância e do preconceito do teu avô, um coronel tirano sem coração, que
acredito deve estar ardendo nas chamas do inferno!
E
sob os aplausos da platéia, os três se abraçam agradecendo a Deus o feliz
encontro.
Autor: Geraldinho do Engenho - Bom Despacho/MG
Autor: Geraldinho do Engenho - Bom Despacho/MG
3 comentários:
Uma historia bem narrada,prende atenção do principio ao fim e com um final feliz e com certeza, muitos casos mparecidos, ouvimos contar.
Um belo conto de amor em histórias de vidas entrelaçadas pelo destino. Ótimo! Parabéns!
Muito bom texto para uma história bem conduzida. Parabéns a quem o produziu.
Alberto vasconcelos
Postar um comentário