sábado, 24 de fevereiro de 2018

Os últimos


Escritor: Augusto Sampaio Angelim

Somente os dois moravam naquele lugarejo abandonado.
A pequena vila que, há trinta anos atrás era ponto de parada para viajantes que se dirigiam a São Paulo, e chegara a ter mais de cem almas, hoje era um lugar fantasma. Outrora, além das casas, havia até um posto de gasolina e uma pousada que abrigava uns poucos viajantes. À beira daquela enorme estrada reta de terra batida, de quase cem quilômetros sem curvas, o que restou de seu casario sequer dava para ser avistado de longe.
Desde os tempos de Juscelino que se falava no asfaltamento da rodagem. Pavimentaram outras rodovias e aquela foi ficando na poeira. O asfalto não veio e nem as outras coisas do progresso. Então, o povo se foi. Os poucos moradores, foram embora. Primeiro os mais novos. Depois, os mais velhos. Ao final, todos.
Sina de quem nasce na beira da estrada é ir embora.
As casas, a maioria umas taperas, não resistiram ao tempo e foram ruindo. Da capela, onde se rezava uma missa por ano, nem mais um sinal. Escola, nunca teve. O casario abandonado serve de abrigo aos bodes e algumas ovelhas. Alguns forasteiros, vendo esse cenário de abandono, se benzem. Outros param e fotografam a calmaria, como se, por um instante, quisessem adivinhar seus mistérios e, depois, continuam seus destinos ignorados. Os que são das redondezas, se consternam com a desolação, quando passam a caminho das cidades da vizinhança.

Mas eles ficaram.
Restaram apenas os dois.
Eram os últimos.
O casal tinha umas vaquinhas e outras criações. Um pasto até grande, onde podiam soltar os bichos à vontade. Tiravam o sustento das criações e do plantio de milho e feijão. Não podiam ir embora. Até planejaram isso no passado, mas os dias foram passando e não conseguiram arredar os pés dali.
Possuíam cavalo, mas, agora, quando iam à feira, montavam uma motocicleta. Novos tempos. Uma moto velha, com cinco ou seis anos de matrícula atrasada. Tinha uma placa apenas por enfeite, mas ninguém se importava de abordar os dois.
A mulher ainda guardava traços da beleza de antigamente.
Rosa.
Rosa Maria da Felicidade de Jesus. Este era o seu piedoso nome. Promessa da mãe dela.
Ele, João Ferreira, ainda era aparentado de Lampião, pois sua família vinha das bandas de Serra Talhada.
Chegara ali moleque novo, com os pais.
Os velhos morreram, os irmãos se mandaram.
Até o início dos anos oitenta ainda teve notícias de Tonho e de Miro, que foram para São Paulo.
Vandinho morreu menino, assim como Maria Aparecida.
Das Dores, fugiu com um malabarista de um circo. Essa entrou cedo, na “lata do mundo”.
Nunciada arrumou marido para as bandas do Pajeú, até virou professora. Tirou a sorte grande.
Um caminhoneiro de Ibimirim disse que tinha encontrado Tonho, em São Paulo, numa feira nordestina, há uns dois anos.
Ele e Rosa se conheceram na festa da padroeira do Moxotó. Morena bonita de sorriso desconfiado, mas que, logo, caiu nas suas graças. Além disso, era mulher direita. Nem precisa dizer que era virgem. Até sabia ler e escrever, coisa que ele nunca aprendeu, por falta de oportunidade.
A desgraça é que nunca tiveram filhos.
Um menino sequer.
Poderia até ser uma menina, mas Deus não quis, como costumava dizer a mulher. Fizeram várias tentativas para ela engravidar.
Foram aos médicos de Arcoverde, Garanhuns, Paulo Afonso e até Recife, quando eram um casal ainda jovem. Tomaram chás receitados pelos mais velhos, mas nada. Entraram e passaram os anos e nenhum menino para trazer alegria para casa e depois ajudar na lida do campo. Nos últimos anos Rosa se queixava dos incômodos no estômago, todos os dias. Na “boca do estômago”. Também todas as noites. “Nada não, passa logo”, dizia ela. Não passou. Numa dessas noites, teve febre muita alta. Delirou, chamando meninos que ela nunca pariu. Chamava por Joãozinho, Maria, Verônica, Gregório. Nomes que haviam planejado para os filhos que nunca tiveram.
“Joãozinho, você vai cair dessa cerca, minino!”;
“Grigório, vá pegar o leite!”;
“Maria, mexe o feijão!”
“Verônica, arruma os cabelos, muié!”. 
 

A mulher não dizia coisa-com-coisa. Ficou preocupado e, quando amanheceu o dia, foi até a casa de Seu Domingos e fez trato para levarem a mulher para o hospital de Arcoverde. Não teve jeito, morreu dois dias depois, sem dizer mais nada. O doutor disse que tinha sido aquela doença miserável, cujo nome cristão humilde tem medo de pronunciar. O enterro foi na cidade, pouca gente. Os parentes quase todos tinham se mudado para outros lugares e o casal vivia recluso.

Agora era ele o único morador do lugar.
Não tinha mais ninguém além dele.
Acocorado debaixo de uma baraúna velha, às margens da estrada, de alpercatas, calças dobradas no meio da perna, chapéu e um pedaço de pau na boca, como se fosse um palito de dentes, riscava o chão com um graveto. Não fazia planos. Não tinha plano nenhum. Apenas pensava nessas coisas e em Rosa.

Olhou para o céu e viu que a noite ia chegando de mansinho. Duas lágrimas escorreram de seus olhos. Limpou o rosto com a mão rude, deu um pigarro e levantou-se decidido: já era hora de recolher o gadinho para o curral e cuidar dos outros bichos.
A noite já tinha tomado conta do mundo.

Autor: Augusto Sampaio Angelim - São Bento do Una/PE
Publicação autorizada pelo autor através de e-mail de 19/10/2011.

2 comentários:

Carlos Costa disse...

Lindo, lindo seu conto, companheiro. Quando comecei a lê-lo, lembrou-me o texto A ESPERANÇA que escrevi. Ao terminá-lo, lembrei-me da novela MEU TESTAMENTO, ambos textos publicados em meu blog pessoal. Não que seja igual...mas sua forma de relatar os fatos, com parágrafos curtos, nos conduzindo pela mão como se fôssemos uma criança, cheguei ao final de seu conto relembrando que meu pai, quando criava algumas vaquinhas também, em Varre-Vento, no Amazonas (que não sei nem onde fica hoje sua exata localização pois a 41 anos não retornei à comunidade)que sempre ficava de cócoras, com chapéu de palha preso ao braço e um espeto do modo que o companheiro o descreveu...Trouxe-me muitas lembranças esse seu conto, amigo. Mais uma vez parabéns pela mais perfeita realidade que é descrita. Obrigado por tê-lo disponibilizado aqui para leitura de pessoas ávidas como eu de um excepcional texto. Um abraço,

Augusto Sampaio disse...

Carlos agradeço pela bondade de seu comentário. Um grande abraço. Augusto Sampaio Angelim