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domingo, 11 de novembro de 2018

Cráudia


Autora: Helena Frenzel
Um dia, assim do nada, chegou lá em casa oferecendo-se para trabalhar. Foi uma sorte danada, pois a minha irmã estava mesmo precisando de uma pessoa que tomasse conta das crianças. Bendita a hora que decidimos aceitá-la. Muito boa a menina. Trabalhadora, limpinha, bem humorada, uma paciência só com as crianças... Dava gosto ver. Eu achava interessante o fato dela pronunciar errado o próprio nome.
Na verdade, chamava-se Cláudia, mas não tinha quem a fizesse dizer “cla” em lugar de “cra”. Tinha, acho, um defeito na boca. Não sei. No começo eu me controlava para não rir, para não ofendê-la, e me esforçava para falar seu nome corretamente. Com o passar do tempo, aumentando a intimidade e certo de que ela não se ofendia, passei a chamá-la como ela mesma. Foi bom porque eu não precisei mais prender meu instinto palhaço. Ligava lá pra casa e quando ela atendia, perguntava quem era, só pra tirar onda. "Aqui é a Cráudia, seu Amarildo. O que é que o senhor quer?" ela respondia e caia na gargalhada, pois sabia que do outro lado da linha eu devia estar rolando de rir. Aí ela entrava no meu jogo. Até que nos divertíamos...
Certa vez estava eu no quarto estudando e ela entrou para arrumar e limpar. Percebendo seu interesse na estante, perguntei se gostava de ler.
— Ah, seu Amarildo, eu adoro! — contou toda prosa e, para meu espanto, acrescentou: — Esse livro do senhor aí, O Perfume, é muito bom! A descrição da época em que o Grenouille ficou lá na caverna é surreal, fiquei agoniada com aquilo.
─  Sério, Cráudia?! Você já leu O Perfume, de Patrick Suskind?
─ Li, Seu Amarildo, assim como O Príncipe, de Maquiavel, Crime e Castigo de Dostoievski, A Metamorfose, O Processo e O Castelo de Kafka. Desse autor, gostei muito de Um Artista da Fome.
Quase caí da cadeira. Aí começamos a trocar figurinhas. Ela conhecia muito não só sobre Literatura, bem como Cinema e Teatro também. Incrível! Eu, que na época estava na graduação, fiquei besta com a desenvoltura com que aquela criaturinha miúda, que a princípio parecia nem saber falar Português direito, falava sobre esses assuntos. Aquilo me intrigou.Ela contou: — É que eu não gosto de ficar vendo TV. Aí, seu Amarildo, numa casa que eu trabalhei tinha esses livro bom. Aí peguei um. Li, gostei e quis ler outro e mais outro e hoje não consigo mais parar de ler. Como não posso comprar, peço emprestado. Queria até pedir pro senhor, se o senhor deixasse... se eu podia pegar uns livro desses seus aqui pra mim ler nas horas de folga. Eu cuido direitinho, não deixo amassar nem uma folha.
Eu disse: — Claro! Pode ler tudo o que você quiser. — Ela ficou toda contente. Trocamos umas idéias mais e ela me deixou, tinha ainda o resto da casa para limpar e o almoço para preparar.
Contei isso para Rose, minha irmã, que reagiu da mesma forma que eu: — Sério? Eu que só tenho o segundo grau, tenho uma empregada que já leu — e entendeu — O Príncipe?
— Pois é minha irmã, — disse-lhe eu, brincando — crie vergonha na cara e pare de ficar lendo só essas Sabrina, Bianca e Júlia que você gosta aí.
A Cráudia era uma figura. Uma pessoa com cultura e conhecimento literário assim, por quê não conseguia falar corretamente? Isso me deixava perplexo.
— Ah, seu Amarildo, é porque eu sou assim mesmo. O senhor não me entende quando eu falo, assim mesmo desse meu jeito? — ela replicava quando eu lhe indagava sobre essa particularidade.E continuou com a gente. Com o tempo, foi se tornado quase um membro da família. Tanto que, numa época bem difícil, em que a Rose chegou a cogitar dispensar seus serviços pois não tínhamos como pagá-la, Cráudia disse que queria ficar assim mesmo, sem pagamento, até que a situação melhorasse um pouco. Alegou que poderia continuar lá, em troca de casa e comida, tomando conta das crianças e fazendo o serviço que vinha fazendo até então.Eu e Rose ficamos um pouco desconfiados, pois esse negócio de ter empregada sem carteira assinada em casa podia dar uma boa duma complicação. Mas a Cráudia, com seu jeitinho, acabou nos convencendo de que não tinha “pobrema”. — Quero ficar por gosto, por amizade — disse.
Cráudia ficou e acabou participando de muitos momentos importantes, altos e baixos da nossa família. Ria e chorava junto. Um dia, quando eu nem mais vivia com minha irmã, tinha mudado de cidade e conversava com a Cráudia pelo telefone, ela me conta que tinha sido escolhida para participar de um júri, num festival de cinema local.
— Pois é, seu Amarildo, mandaram uma carta aqui pra casa me convidando. É um festival de curtas. — Meu queixo caiu do outro lado.
— É mesmo, Cráudia? — Eu não havia perdido a velha mania de chamá-la assim. — Puxa, que legal! E como foi isso? — eu quis saber.
— Ah, seu Amarildo, o senhor lembra daquele cinema universitário, pequeninho, que só tem uma sala só, lá na Rua do Ouvidor? Pois é, como é bem baratinho e só passa filme artístico, eu sempre vou. Sempre deixava um comentário lá na urna e foi assim que me descobriram eu aqui.
Eu e minha namorada especulávamos muito a respeito dessa exótica criatura. Seria ela uma estudante ou pesquisadora, quem sabe socióloga ou psicóloga, infiltrada no seio de uma família de classe media baixa para algum experimento? Cheguei mesmo a lhe perguntar isso, ao que ela replicou: — Ah, Seu Amarildo, o senhor tem cada uma! Eu, socióloga!? — e ria.
Mentir ela não mentia, pois podia se perguntar qualquer detalhe dos livros que dizia ter lido e ela saberia discutir. O mesmo ocorria com os filmes. Continuava falando errado, mas o que dizia tinha fundamento. O que contribuiu para o seu mito foi o fato dela, assim como chegou, um dia ter ido embora, e sem deixar pistas. Disse que iria para outra cidade, que havia encontrado novo emprego. Afeiçoara-se à família mas agora era hora de partir. E assim foi. Parece que o chão a engoliu, pois notícia não se teve mais.Eu já me perdi em meio a tantas especulações. Até mesmo as possibilidades dela ser anjo ou extra-terrestre cheguei a cogitar. Seria mesmo isso?
— Cráudia, criatura, se estiver lendo esta história, dê notícias. Acabe de uma vez com esse mistério. Tenha pena de um pobre curioso como eu!

***

Não tenho muitas esperanças de ser lido por ela. Afinal, se ela não mudou, deve continuar gostando só de boa literatura.

Este conto faz parte da coletânea de contos Perfis Interessantes, originalmente  publicado no Recanto das Letras em 21/03/2009 sob o código: T1498594.

Autora: Helena Frenzel - Alemanha

Página da autora no Recanto das Letras:

http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=47164

Publicação autorizada pela autora


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Dagoberto

Autora: Helena Frenzel

SÃO da fazenda as primeiras lembranças que tenho. Acho que foi lá que nasci. Éramos muitos e de várias procedências. Minha mãe e meu pai também perambulavam por lá, mas não havia fortes laços entre nós, algo que nos unisse além da luta pela vida. Era cada um por si e os donos da fazenda por todos.
A vida por lá até que não era má. Os donos eram bons para conosco. Nos acolhiam. Deixavam-nos ficar, davam-nos abrigo e comida, tudo isso em troca de pequenos trabalhos. Roedores e outros pequenos animais eram para os fazendeiros uma peste e nós os ajudávamos a espantá-los, além de vigiar as vacas, pois no curral, junto a elas, era onde dormíamos. Ah, aquele cheiro de esterco fresco nunca me saiu da cabeça... Gosto de cheiros de fazenda.
Ainda pequeno apareceu uma família para me adotar. Os fazendeiros não se opuseram. Até mesmo porque éramos numerosos e, por mais que fossem bons, éramos também muito custosos para eles. Nos acolhiam porque eram gente de bom coração.
Se bem que por aqui, outros iguais a nós, que nascem sem um lar, não perambulam muito tempo pelas ruas sem eira nem beira. Se não houvéssemos encontrado guarida nos celeiros e currais desta fazenda, por certo estaríamos em algum abrigo desses espalhados pela cidade. Ouvi dizer que a vida nos abrigos era muito mais triste do que a que levávamos na fazenda.
Bem, isso ouvi da família que me adotou. Estava feliz com a chance de um novo lar, porém minha alegria durou pouco. Os filhos naturais, pequenos todavia malvados, tornaram minha vida um inferno. Usavam das brincadeiras para judiar de mim. Vivia tão assustado que só a proximidade dos pequenos fazia-me urinar as próprias pernas. Retraí-me cada vez mais.
Pouco tempo depois a família arrependeu-se e devolveu-me à fazenda. Essa rejeição fez-me amargo e arisco. Seus resquícios marcaram minha alma para sempre e inda hoje dão o tom do meu jeito de ser. Vai ver é por isso que sinto-me como pisando em ovos quando crianças estão por perto.
De volta à fazenda — ainda bem que os donos me aceitaram — tratei de readaptar-me. Não foi tão difícil. A vida por lá era dura, mas eu era feliz. Não passava bem, mas também não passava mal. Era livre, podia correr solto pela campina sempre que me desse vontade. E não há maior bem do que a liberdade. Sentia-me aceito pelos fazendeiros e feliz entre meus iguais.
Uma bela tarde ficamos muito ouriçados ao ouvir rumores de uma conversa entre os fazendeiros e um homem, um tal que sempre os visitava. Falaram em “vontade de adotar”. Combinaram com os fazendeiros voltar no dia seguinte para dar uma olhada na gente. A mulher do fazendeiro parecia estar feliz. O homem era amigo deles e de sua aura emanavam coisas boas. No entanto, a princípio, mantive a desconfiança. "Gato escaldado tem medo de água fria."
No dia seguinte não apareceu ninguém. Meus pares pareciam excitados, ansiosos. Eu esforçava-me para “não estar nem aí”. Os mais velhos, esses eram indiferentes pois sabiam que o interesse sempre se voltava para os mais jovenzinhos.
No final da semana, quando não mais esperávamos, o casal apareceu. Eu os observava de longe. Ficaram por ali, fazendo gracinhas, tentando fazer contato. Ouvi a esposa do homem dizer que era só uma visita e que éramos todos “muito bonitinhos”. Conversaram muito com os fazendeiros, andaram por toda a fazenda, visitaram o celeiro e o curral, conversaram com as vacas, fizeram-lhes carinho...
Da esposa do homem emanava também um sentimento bom, o mesmo tipo de bondade que vinha da mulher do fazendeiro. Por isso, na hora da distribuição da comida, que a mulher do fazendeiro fazia ao final de cada dia, senti diminuir meu receio e aproximei-me da estranha.
Nossos olhares se cruzaram. A mulher tinha uns olhos doces, através dos quais se podia ver. E no brilho negro de suas pupilas espelhei-me. Seria possível que nos entendêssemos, que buscássemos as mesmas coisas? Na escuridão do fundo daquele olhar vira eu muitas possibilidades.
Ela aproximou-se, tentou tocar-me. Não me esquivei. Perguntou-me: “Queres vir com a gente?” Encabulado, assenti com a cabeça. Ouvi a mulher do fazendeiro dizendo que a adoção viria a calhar, já que o casal não tinha filhos. Isso encheu-me ainda mais de esperança. No mesmo dia levaram-me com eles para sua casa.
As primeiras semanas não foram fáceis, como o são períodos de adaptação; embora a energia da casa fosse muito boa e todos me recebessem com muito carinho. Além do casal, havia também os pais do homem. Ouvi a mulher comentando que temia a reação do sogro. Mas tendo ele também me recebido muito bem, o clima desanuviou-se, tornando-se mais uma vez puro e límpido.
O tempo foi passando, laços se criando e apertando. A família me respeita. Amam-me e querem-me do jeito que sou.
Não sei exatamente o dia do meu aniversário. Sei que nasci num dia qualquer num mês de agosto. Mas isso não me importa. Conto meus anos a partir do dia em que essa família me adotou, 7 de novembro de um ano iluminado.
Conservo meu sentimento de liberdade, podendo ir e vir como e quando bem entender. Não dou trabalho. Se bem que no início de nosso relacionamento — numa reação natural de quem já sofreu muitas rejeições na vida — tentei mostrar-lhes logo o que tinha de pior, uma forma de testar se me queriam mesmo, exatamente do jeito que eu vinha.
Para minha surpresa, foram muito pacientes e compreensivos. Deram-me tempo para que em minha alminha ferida brotasse a confiança em seu amor por mim. Por vezes até me agradeceram por eu os ter escolhido como família. Fiquei comovido.
Com o tempo e a segurança, não houve mais em mim alimento para o mal, e o bem floriu. O amor que me dão, recebo alegremente e retribuo com prazer. Sou parte da família. Todos gostam de mim e muitos me elogiam. Dizem que demonstro saber muito bem o que quero, que sou independente e esperto como nenhum outro.
Quando me meto em confusão, desde que não tenha sido eu o culpado, há quem me defenda. O sogro — que um dia temeram vir a não gostar de mim — hoje é o primeiro a se levantar para me defender quando os gatos da vizinhança, maiores do que eu, se metem a besta e vêem aqui me bater. Sim, sou um gato. Mas isso não desvirtua nem diminui a minha história. Sou um gato amado, sortudo e feliz.


Autora: Helena Frenzel - Alemanha


Página da autora no Recanto das Letras:




Publicação autorizada pela autora


Publicado originalmente no Recanto das Letras sob o Titulo Uma Família Para Mim em 02/06/2009. Código: T1628086. Também é parte da coletânea de narrativas Perfis Interessantes.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Mensagem aos participantes do Concurso do Blog

Autora: Helena Frenzel

Não participei do concurso, mas li e comentei quase todos os textos. Acho que só faltaram os dois últimos, pois não tive como dedicar mais tempo à leitura online. Todos temos uma vida muito corrida e poucos são os que podem se dedicar integralmente a atividades como essa. Eu tenho ainda que trabalhar muito antes de poder me aposentar e dedicar-me mais à Literatura como gostaria. A iniciativa do concurso e do blog é digna de louvor e quem já se propôs a organizar qualquer coisa na vida sabe que há muito trabalho por trás, sem falar que o trato com seres humanos requer de quem organiza MUITO tato, paciência e vontade de fazer as coisas acontecerem, conduzindo-as de um jeito que todos saiam ganhando em interação e conhecimento, que ninguém seja ou se sinta privilegiado, preterido ou prejudicado. Enfim: é um trabalho colossal e muito delicado. Exatamente por isso registro aqui minha concordância com as palavras da Celêdian parabenizando a todos os responsáveis pelo sucesso do blog Gândavos: Carlos Lopes e todos os autores/colaboradores. Parabéns pela iniciativa e empenho. Saudações letripulistas, até!

Helena Frenzel - Alemanha