terça-feira, 31 de julho de 2012

Coisa nova - Dias Índios (I) - Autor: Prof. Wanderley Dantas

Assim que cheguei à aldeia, fui à casa do cacique que está cuidando de mim. Ajeitei as minhas coisas, prendi minha rede e, antes que saísse para o moitará (sistema de trocas de mercadorias), um pensamento excitado ocorreu-me: “Ai, Deus, cheguei aqui! Estou tão agitado! É aqui mesmo que o Senhor quer que eu esteja? Todo mundo falando comigo nessa língua bela, mas ainda tão estranha para mim... Fala o Senhor comigo, de uma maneira que eu entenda, por favor!”. Virei e saí para o moitará que já acontecia bem atrás de mim. Eles riam e conversavam alegres entre si. Eu não entendia nada e ficava só olhando. Foi quando um índio entrou na casa do cacique e entregou para ele um calendário daquele ano com uma lindíssima arara vermelha na capa. O cacique pendurou o calendário bem à frente da porta de modo que é a primeira coisa que alguém vê ao entrar na casa. Aproximei-me para ver aquela linda arara, quando, em letras pequenas, naquela foto inesperada, vi escrito no calendário: “Eis que faço coisa nova, que está saindo à luz; porventura, não o percebeis? Eis que porei um caminho no deserto e rios, no ermo” Is 43:19. Depois disso, todos esses dias na aldeia, logo de manhã já olhava aquele calendário, não para ver a exuberante arara, mas para estremecer de perplexidade diante daquele a quem eu sirvo: o Deus vivo, que fala comigo.













Publicação autorizada pelo autor em 29/05/2012

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Algo mais que um colar - Dias Índios (II) - Autor: Prof. Wanderley Dantas

No primeiro dia, a aldeia já me esperava alvoroçada para realizar o“moitará”, que é um sistema de trocas de mercadorias entre as pessoas da comunidade e que acontece principalmente quando alguém vem da cidade ou vai embora da aldeia. Durante o moitará, a comunidade sai de casa em casa e coloca suas mercadorias no chão de cada casa visitada e cada dono de mercadoria anuncia o que desejaria receber em troca.

Em cada casa, pude acompanhar o alvoroço das trocas e a balbúrdia deles falando e rindo em sua língua. Às vezes, paravam e olhavam para mim e riam, riam muito. Participei do moitará colocando meus“presentes” (é assim que são chamadas essas mercadorias de troca) e, então, eu anunciava quais presentes gostaria de receber: colar, pulseira, artesanato, etc. Quais os presentes que eu colocava? Pilhas, sabonetes, sabão em barra, anzol, linha, roupas e outras coisas semelhantes.

Lá pela terceira ou quarta casa, coloquei dois sabonetes no chão e disse que gostaria de receber “qualquer coisa”. Foi quando uma índia pegou os sabonetes e colocou no meu pescoço um lindo colar feito de sementes de tiririca. Com o meu novo colar no pescoço, vi que os índios riam e falavam entre si e, novamente, riam olhando para mim. Disse a eles que havia achado lindo aquele colar que sustentava um lindo animal feito com aquelas pequenas sementes: um jacaré. Mas, a cada casa que eu ia, o colar causava uma certa excitação e as índias riam e os índios diziam: “jacaré, jacaré”. Esta cena foi-se repetindo de casa em casa e, claro, comecei a ficar incomodado com os risos de índios e índias por causa do colar. Até que um jovem chegou perto de mim e também reparou no colar. Como já suspeitava de que havia caído numa armadilha cultural, fui logo me explicando: “É, ganhei esse jacaré no moitará. Alguém me deu”. Então, esse jovem olhou para sua irmã e apontando o dedo para ela me disse: “Minha irmã te interessa?” Fiquei perplexo com a pergunta: “O que você disse?”Ele repetiu: “Minha irmã te interessa?” O que podia fazer? Eu olhei para ele e falei: “Não, muito obrigado, já sou casado e sou homem de uma mulher só”. Claro que disse isso entre sorrisos amarelos e tapinhas nas costas dele para tentar ser o mais simpático possível.

Voltei para a casa do cacique onde estavam minhas coisas e rapidamente tirei o colar e o guardei para nunca mais colocá-lo. É, realmente havia caído numa armadilha cultural: eles não comem carne de jacaré, pois o jacaré é um animal que, quando chamado pelas índias, sai das águas em forma de homem para se deitar com elas escondido de seus maridos. Este foi meu primeiro dia na aldeia e exemplifica bem os cuidados que preciso ter, pois, numa cultura diferente, até um belo e exótico colar pode significar muito mais do que um simples enfeite.






Publicação autorizada pelo autor em 04/06/2012

domingo, 29 de julho de 2012

A casa do meio - Dias Índios (III) - Autor: Professor Wanderley Dantas

Há uma criança enterrada bem no centro da minha aldeia. Mas não tem nada a ver com algum caso de infanticídio indígena. Ela faleceu ano passado e dizem que foi morta por um “bandido”, o que em outras palavras quer dizer feiticeiro. Isto significa também que ela provavelmente foienvenenada, mas pouco se fala sobre os detalhes. Ela está enterrada bem no meio da aldeia e fizeram um cercadinho com tocos curtos de troncos de árvore. Era uma criança especial na vida do povo: era um caciquezinho (neto de um dos caciques da aldeia). Por isso, eles vão fazer este ano uma festa muito interessante e emblemática entre os povos em que me encontro. Uma festa famosa no mundo inteiro. Já fizeram até filme sobre esta festa-ritual. Assim, penso que escrever aqui o nome dessa festa é falar demais.
A festa é uma homenagem aos mortos, mas somente aos que foram importantes em vida. Sei que vim parar aqui num momento interessantíssimo, tanto espiritual, como antropologicamente. Portanto, meus olhos estão abertos e atentos para tudo o que haverá de singular por aqui neste ano. Vários povos indígenas da região são convidados para essa festa. Eles trazem os seus lutadores e há um grande campeonato entre eles... Mas não é sobre a festa que quero falar agora. Quero falar sobre a casa que fica no meio da aldeia, bem em frente ao lugar em que está enterrado o caciquezinho: a Casa dos Homens.

Na Casa dos Homens, as mulheres não podem entrar. Ali, esconde-se uma flauta, que só os homens podem tocar e ver. Eu entrei ali numa noite. Senti a opressão espiritual do lugar: esta é concreta e pesada. As flautas estavam cobertas com panos. Perguntei ao índio o que aconteceria se uma mulher entrasse e olhasse a flauta. Ele demorou muito para falar e, embora eu já soubesse a resposta, insisti: “Alguma mulher aqui na aldeia já viu a flauta?” Ele me disse que sim. “E o que aconteceu com ela?” perguntei. “Os índios fizeram mal pra ela”,ele me disse abaixando a cabeça. “Os índios fazem mal mesmo se a mulher for uma criança?” continuei para ver como ele reagiria.“Sim”, respondeu-me.

Eu já sabia. Já havia lido sobre isso. É mais um daqueles fatos que muitos antropólogos querem justificar alegando ser “cultural”, todavia, entrar naquela casa, ver a flauta e saber que ali na minha aldeia mulheres e crianças já haviam sofrido por causa dela... Quando uma mulher, mesmo que seja uma criança, olha a flauta, então ela é violentada por todos os homens da aldeia e, muitas vezes, morre-se por causa disso. Esta é a casa do meio. Esta é Casa dos Homens.


“ Não há justo, nem um sequer...”

Rm 3: 10a

Publicação autorizada pelo autor em 12/06/2012

sábado, 28 de julho de 2012

Essas minhas missionariazinhas... - Dias índios (IV) - Autor: Professor Wanderley Dantas


Desde que cheguei da aldeia, vários dos nossos índios vieram nos visitar. Minha esposa fez um delicioso almoço na sexta-feira para um grupo de 14 indígenas. Um dos caciques estava aqui com uma das suas esposas, vários filhos e seus netos. Foi uma tarde muito gostosa. Mas o que vou contar, sei que não poderia ter sido diferente. Afinal, já são mais de dois anos que estamos diariamente orando e falando sobre o nosso povo-alvo para nossas filhinhas. Elas foram à aldeia conosco em 2007 e a mais velha guarda maravilhosas lembranças daquela visita. Sei que foi neste contexto que ocorreu a historinha que vou narrar agora.
Aqui na cidade, minha esposa já tem começado a estudar a língua com uma das filhas do cacique. Ela é a única mulher na aldeia que entende um pouquinho de português. Foi num desses encontros que o inesperado aconteceu: minha filha mais nova olhou para nossa visitante indígena e disparou: “Vou ler uma página da Bíblia para você” (minha filhinha tem três aninhos de idade e nem sabe ler)! Ela correu às nossas coisas e trouxe nas suas mãozinhas uma Bíblia, abriu-a na frente da nossa visitante e começou a “ler”, cantando: “Leia a Bíblia e faça oração, faça oração, faça oração, se você quiser crescer”. E repetiu esta canção umas quatro ou cinco vezes.
Ficamos estatelados! Tanto cuidado para não passar o carro na frente dos bois e agora nos encontrávamos ali emoldurados pelos nossos sorrisos amarelos e perplexidade. A minha filha mais velha (cinco aninhos) estava totalmente consciente que algo “fora dos planos” ocorria e ficou nos olhando com uma cara inenarrável, esperando a nossa reação. Mas qual reação eu poderia ter? Minha filhinha estava linda pregando pela primeira vez ao primeiro índio do povo sobre o qual há mais de dois anos ela nos ouve falar. Assim, simplesmente descansamos na Soberania de Deus e ficamos toda a família rindo daquela maravilhosa e inesperada manifestação do Espírito Santo na vida de nossa inocente missionariazinha.
Nossa visitante? Bem, nossa visitante ouviu pela primeira vez na vida dela o que é um perfeito louvor. Glórias a Deus pela Sua maravilhosa Graça.




“Da boca dos pequeninos
e crianças de peito tiraste perfeito louvor”
Mt 21:16b






Publicação autorizada pelo autor em 18/06/2012



sexta-feira, 27 de julho de 2012

O cheiro do pequi - Dias Índios (V) - Autor: Professor Wanderey Dantas

Os povos daqui contam uma interessante história sobre a origem do cheiro do pequi... E eu acho essa fruta deliciosa, mas confesso que, depois dessa história, passei a apreciá-la ainda mais...

Há muito tempo, quando um índio saía para caçar, suas duas esposas iam para a beira do rio e chamavam o jacaré. Este vinha das águas em forma de homem e deitava-se primeiro com a mais velha e depois com a mais nova. Era sempre assim toda vez que esse índio saía para caçar.

Entretanto, numa de suas caçadas, esse índio viu uma cotia e, então, preparou seu arco e sua flecha para acertá-la. Já mirava para matar a cotia, quando esta lhe falou: “Calma, meu neto, não me mate, não! Você sabe o que suas esposas estão fazendo agora? Se você não me matar, eu te mostrarei”.

Assim saíram os dois, a cotia e o índio até próximo do rio. Ao chegarem, a cotia disse ao índio: Olhe lá, é o jacaré deitando-se com suas esposas. O índio ficou furioso, mas a cotia disse ao índio que não matasse o jacaré ainda. Após se deitar com a mais velha, o jacaré foi se deitar com a mais nova. Foi aí que a cotia deu ao índio uma de suas flechas invisíveis. A cotia disse para o índio apontar, mas esperar um pouco mais antes de matar o jacaré. Quando este já estava quase ejaculando, a cotia mandou que o índio atirasse sua flecha invisível. O jacaré caiu morto na hora, mas as índias não viram o que aconteceu por ser a flecha invisível. Após chorarem muito, elas resolveram enterrá-lo e voltaram para casa.

Quando o índio chegou em casa, deu uma surra em suas esposas. Então elas pegaram as coisas do seu marido e jogaram para fora da casa e ele foi morar na casa dos homens. Elas estavam com muita saudade do jacaré e não quiseram mais o marido que matara o jacaré. Cinco dias passaram e elas resolveram ver o lugar onde o enterraram. Chegaram e havia um lindo pé de pequi nascido no lugar onde elas haviam enterrado o jacaré.

O Sol desceu do céu e foi ver o índio na casa dos homens. E perguntou ao índio: “Por que você está aqui?” Aí, o índio contou a história ao Sol e disse que suas esposas não o queriam mais. O Sol disse que sabia uma oração que faria com que suas esposas o quisessem de volta. O Sol fez com galhos e argila uma figura da vagina e disse assim: “Segure esta vagina e você vai mostrar para suas esposas e vai dizer: Olhe para a sua vagina, olhe para a sua vagina. E elas vão achar graça e vão querer você de volta”.Assim, o Sol e o índio, cada um segurando uma vagina feita de galhos e argila, saíram para a casa onde estavam as esposas. O Sol também pintou todo o corpo do índio com desenhos de vaginas. Chegaram lá, eles ficaram cantando para elas: “Olhe sua vagina, olhe sua vagina”. As esposas acharam graça e começaram a brincar de jogar terra no Sol e no marido. Elas acharam tanta graça que esqueceram o jacaré (e, até hoje, quando uma esposa não gosta mais de seu marido, este realiza esse ritual chamado “a oração do Sol”,para que a esposa volte a aceitá-lo).

Mas e o cheiro do pequi? Bem, a origem do pequi vem do jacaré. Assim, toda vez que o pé do pequi está novinho ainda, o dono do pé tem que ir lá e desenhar com um facão um jacaré no tronco da árvore, para que ela cresça forte. Mas e o cheiro do pequi?! Quando nasceram os primeiros pequis, as esposas que haviam enterrado o jacaré foram lá para ver aquela fruta diferente. A esposa mais velha pegou um pequi, mas ele não tinha cheiro. Ela achou a fruta sem graça e jogou fora. Mas a esposa mais nova ouviu o beija-flor dizer: “Pegue o pequi e passe na sua vagina”. Ela fez. E foi assim que todo pequi ficou com esse cheiro bem peculiar desde então.

Prof. Wanderley Dantas

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Publicação autorizada pelo autor em 25/06/2012

quinta-feira, 26 de julho de 2012

"Deus realizou um grande milagre” - Dias Índios (VI) - Autor: Professor Wanderley Dantas

-Mamãe, será que foi Deus quem mandou os besouros para proteger papai? – perguntou maravilhada minha pequena Ana de apenas seis anos de idade.
-Claro, minha filha! Você não tem orado para que Deus proteja seu pai lá na aldeia? – disse Lú, minha esposa.
-...agora sei que Deus existe... – confessa Aninha.
-Como assim, filha? Você não acreditava em Deus?
-Sim, mas eu pensava que Ele poderia ser só uma história que gente grande contava... Mas agora eu sei que Ele existe mesmo, porque Ele realizou um grande milagre! – professou minha filhinha. Este diálogo entre minha esposa e minha filha se deu assim que pude contar a elas o que ocorrera comigo na aldeia alguns dias antes.
Distraído, olhando o céu azul, seguia para o banho por uma picada aberta que leva da casa do cacique à beira do rio. De repente, apareceram dois besouros enormes vindo bem em cima de mim. Imediatamente parei de andar e comecei a afugentá-los com as mãos, o que me obrigou a olhar para aquilo que estava no chão a apenas dois passos de mim: uma enorme jararaca atravessada no meio do caminho!
Mais dois passos e certamente teria pisado nela. O corpo marrom da cobra era da grossura do meu braço e afinava até a cabeça triangular que se balançava de um lado para o outro. Quis sair correndo para avisar alguém, entretanto ocorreu-me que nunca havia visto uma cobra de tão perto (gaiato urbano, só havia visto cobra “ao vivo” em zoológico). Eu teria pisado nela e sabe-se lá como seria prestado o socorro já que não há soro antiofídico na minha aldeia e a cidade mais próxima fica a quase seis horas de onde estou.
Dois passos...”, fiquei pensando, enquanto olhava a cobra ali à minha frente. Isto tudo acontecendo apenas uns quarenta minutos depois da ligação em que a Lú tinha me contado que, espontaneamente, Aninha vinha naqueles dias orando a Deus para que Ele me protegesse de qualquer perigo na aldeia. Assim, restou desse meu encontro algo muito mais assombroso que o risco que passei: há muitos quilômetros dali de onde eu estava, Aninha estava para se deparar com o Deus que já estava respondendo suas orações, o Deus vivo que realiza grandes milagres!
Prof. Wanderley Dantas

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Publicação autorizada pelo autor em 02/07/2012

quarta-feira, 25 de julho de 2012

“Konguinhe”1 Dias Índios (VII) - Autor: Professor Wanderley Dantas

Da porta da casa em que estou, vejo a casa dos homens no centro da aldeia. Sentado na minha cadeira, observo todos os movimentos do povo e anoto cada passo, gesto e ritual. É óbvio que compreendo pouquíssimo do que acontece, mas quase sempre tenho ao meu lado o dono da casa em que estou, o cacique que vai interpretando para mim a vida na aldeia.
-O que está acontecendo lá fora? – perguntei.
-Eles estão chamando ao centro da aldeia a família do outro cacique para banhar.
-É só a família dele?
-O irmão dele morreu lá na outra aldeia e a família ficou triste. –disse-me o cacique. Lembrei-me desse falecimento, fora umas duas semanas antes.
Quando um parente morre, entra-se num período de luto. Os parentes não dançam, não se pintam, quase não saem de casa, não trabalham e não vão para a escola. Na outra aldeia, onde o índio morreu, os parentes estão fazendo a mesma coisa. Lá, o mesmo ritual está ocorrendo. Eles também se banharão.
-O banho é para tirar a tristeza da morte – diz o cacique.
-Como vocês chamam esse banho?
-Konguinhe. É um banho para tirar a tristeza. A família está muito triste, mas hoje, depois do banho, eles vão se pintar e festejar. A tristeza da morte vai ser lavada e não vai mais ter tristeza...
Enquanto ele narrava os detalhes do ritual, fiquei olhando para o centro da aldeia. Homens, mulheres e crianças da família vêm todos nus para o centro. Eles vêm de cabeça baixa, enquanto outros índios trazem as panelas cheias de água. Então, vejo alguns homens derramarem efusivamente a água sobre a cabeça daquelas pessoas, que saíam dali imediatamente para festejar: pintarão seus corpos e dançarão o dia inteiro.
Konguinhe: a tristeza da morte fora retirada – eis que a alegria da vida se celebra!... Palavras são alçapões que a cultura utiliza para que sejam guardadas memórias de tempos imemoriais. Deus usará a língua para que o bem e o mal, ocultados nos subterrâneos daquilo que nossos olhos vêem, nos sejam revelados e possamos conhecer bem profundamente a cultura do povo


 
 
Autor: Professor Wanderley Dantas

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Publicação autorizada pelo autor em 09/07/2012

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Bom tempo aquele - Autor: Zélia Maria Freire

Bom tempo aquele em que o médico da família era o farmacêutico da esquina, não indo as suas prescrições além de maná com sena, elixir paregórico, Biotônico Fontoura e Emulsão de Scott, ficando o resto por conta da mamãe de cada um, na condição de guardiã da saúde dos seus, sem nenhuma suspeita gastronômica , acreditava que o segredo de uma vida longa e saudável, estava ligado a uma alimentação adequada, composta de carboidratos, proteínas e gorduras.

Por isso mesmo, a mamãe de cada um, empanturrava o senhor seu marido e os seus rebentos, que caíam sem culpa nem medo no repasto. E assim o dia começava doce: café com açúcar; leite com nata, pão com manteiga; cuscuz, tapioca; ovos e queijo.

Se no café da manhã a caldeira das calorias era efervescente, imagine o quanto borbulhava no almoço, que variava entre um cozido de peito ou costela servido com pirão; galinha à cabidela e feijão verde; mocotó acompanhado de rapadura, feijão branco e farinha; rabada com agrião; buchada de carneiro; costeleta de porco com batata doce corada; carne vermelha; feijoada completa, arroz, farofa e vez por outra, macarrão. De sobremesa um docinho de jaca ou goiabada guarnecido com queijo do sertão. Tudo rebatido com um suquinho de manga.

Para fechar o dia, servia-se no jantar, uma carne de sol com arroz de leite; macaxeira; batata doce e queijo de coalho assado. E antes de dormir um prato de coalhada com bastante açúcar.

De barriga cheia, ignorando colesterol e triglicéride, muitos desse tempo morreram depois dos oitenta, outros cresceram e se multiplicaram e vivem até hoje.

E agora? Bom, agora, estou eu aqui almoçando uma folha de alface sem sal , algumas gotas de limão, um filé de peito de frango grelhado e meio copo de suco de cenoura sem açúcar, já que hoje tudo faz mal e engorda e o doutor do coração, que cuida deu proíbe gorduras, carne vermelha, sal, açúcar, massas e os outros doutores que cuidam disso e daquilo proibiram o resto.

Não existe mais prazer em saborear sequer um doce, um salgadinho, os que se aventuram, forçosamente irão parar no divã do analista, tamanho será o seu sentimento de culpa. E haja SPA e academias de ginástica para acomodar a legião de atormentados.

E como se não bastasse a tortura física, via barriga, vem mais uma novidade das cabeças-pensantes de Harvard, precisamente um tal de Dr. Herbert Benson, que depois de anos de pesquisas, solta os seus números e estatísticas, alertando que, ai daqueles de espírito macambúzio, pessimista, depressivo e ansioso. A sentença é de que um indivíduo de mente tão pra baixo, gera no cérebro uma reação química que se espalha pelo corpo, atingindo o coração ou gerando câncer.

Pois me diga: de barriga vazia, lendo, ouvindo e vendo o noticiário terrivelmente violento e deparando-se com um governo feito cobra mordendo o seu próprio rabo; relatos e mais relatos de falcatruas pra tudo quanto é lado. Como é que você se sente? Macambúzio e pessimista, né não?

Mas não se avexe não, viu? Lembre-se que João Batista – o que batizou Jesus- alimentava-se de gafanhoto e o filósofo Schopenhauer, o maior pessimista e depressivo que se tem noticia, viveu mais de oitenta anos.

Autora: Zélia Maria Freire - Natal/RN

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Publicação autorizada através pela autora

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Sem tempero - Autor: Iratiense Joel Gomes Teixeira

Edmundo, o "Mundico", era  esposo  de  Cândida, a "Nhá  Candoca", que  de  candura  tinha  muito  pouco. Pelo  contrário, era  tinhosa, caboclinha do  sangue  quente e  "adubava  o lombo" de  Mundico  na  maioria das vezes em  que  êste  chegava  de  porre  em casa.
Magrinha, olhar  enferuscado,sempre  de  lençinho  à cabeça, costumava postar-se  defronte  ao  casebre onde moravam espiando pra  ver  se  o  Mundico vinha  "tocando os  gansos" como  dizia. Quando  isso  acontecia, e  era  frequente, o pau  comia sempre  com  larga vantagem  para  a  tinhosinha da  pá virada.
Atributos não  faltavam  à  Nhá  Candoca. Cozinhava  muito  bem. O  trivial, é  claro, mas  com  capricho e  um  tempero  especial. Cuidava  bem  do  ranchinho  e  dispensava um  cuidado todo  especial quando  da  lavagem  das  roupas.
Num  certo  dia,tendo  cuidado dos  afazeres,tomou  os  panos  de  prato, lavou-os  e  os  colocou num  balde  a  ferver com  água  e  sabão. Após  um  longo  dia de  trabalho, já  muito  cansada, deitou-se e  caiu  num  sono profundo.
Mundico, que  passara  a  tarde  "bebendo tôdas", adormeceu  num  barranco e  ao  acordar  deparou-se  com  uma  lua  cheia  belíssima iluminando  a  campina. Levantou-se e, errando  passadas, acabou  chegando em  seu  rancho. Era  noite  alta,tudo  estava  muito  quieto e, então, pensou:
-Se  eu  não  fizer  barulho, a  Candoquinha não  me    chegar  e consequentemente  não  me  senta  o  braço.
  ante  pé, ainda  meio  tonto, adentrou  e, faminto, sem  acender a  luz dirigiu-se  até o  fogão.
Candoca roncava  no  quartinho  ao  lado. O  bêbado tateando  com  as  mãos se  deu  conta  do  caldeirãozinho  de  feijão, do  qual serviu-se e percebendo  ao  lado dêste  um  grande  panelão, meteu o  garfo  e  sentiu  o  peso de  algo  que  vinha  fisgado. Passou  a  mão e  levou  aquela  coisa  à boca. Mastigou, puxou  com  os  dentes e... Nada. Apenas  uma  coisa  sem  sabor, rija  e insossa.
Que  comida  mal  feita!... Candoca está  ficando  desmazelada, pensou  com  seus  botões. Tentou outra  mordida, e... Nada. Acabou por  comer    o  feijão.
Manhã do  dia  seguinte:
Candoca, enfurnada, empurra-lhe  com  grosseria  o  prato de  polenta  frita que  acompanha  o café da manhã. Mundico   serve-se e  com  ar  pensativo dirige-se  à  mulher:
Candoca, não  me  leve  a  mal, mas  daqui pra  frente quando  fizer courinho de  porco com  feijão cozinhe-o  melhor e  jogue  sal  e  uns  temperinhos  por  cima. Aquêles  que  você  me  deixou  ontem  à  noite, estavam  em  pedaços  muito  grandes, rijos  e  sem  sal. Tinham  um  gosto  de  sabão e  desculpe-me, mas  não  consegui  come-los.
Um  ar vingativo desenha-se  no  sorrisinho  diabólico de  Candoca antes  de  responder-lhe:
_"Vô  pensá  no  teu  caso!... Vô  pensá!

Autor: Iratiense Joel Gomes Teixeira - Irati/PR

http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=57640
Publicação autorizada através de e-mail de 19/07/2012

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Sobre o livro: A saga de um Pedro - Amor e luta traçando destinos




Comentário do dia 08/07/2012
Tirei o início desta noite de domingo para ler "A Saga de um Pedro", e o fiz num estirão rápido e prazeroso. O livro é uma biografia do pai do autor, revelando sua vida inquieta e difícil, desde os tempos de menino, mas repleta de aventuras e causos. Sendo, como o autor e seu pai, também pernambucano, os lugares (Tabira, Afogados da Ingazeira, Iguaraci, Sertânia e Custódia) me são familiares, aliás, fui juiz de Sertânia e conheço bem Custódia). Acompanhei apreensivo os tempos atribulados do Pedro enquanto soldado e me diverti com sua viagem para se apresenar no Quartel do Derby. Antes, me impressionou sua coragem de se mandar para trabalhar nas terras da Usina Serra Grande, na divisa de Pernambuco e Alagoas, aonde fica o município de Ibateguara, lugar que, no tempo em que estive morando em Maceió, passava todas as semanas. Soldado reformado, segue o Pedro dando o rumo a sua vida turbulenta, conseguindo, a duras custas, se casar. Sua viagem a Brasília e os tempos em São Paulo, os começos e recomeços de suas atividades comerciais, até acertar a sintonia como revedendor de rádio, que leva ao nascedouro da Casa Campeão e o seu auge enquanto comerciante cheio de posses e respeitado. Mas, vem a derrocada comercial e o Pedro, desolado, se muda para Custódia, onde à frente do Cine Custódia (cujo nome comercial é Cinema Santa Maria), consegue sobreviver com relativa folga até a massificação da televisão. Endividado, vê na tentativa de obter um empréstimo na sua antiga corporação a solução para seus problemas. O empréstimo não veio, ao invés dele algo bem melhor: a milhar 9690. Com o dinheiro, compra um chevette novinho em folha e ainda sobra cobre suficiente para quitar suas dívidas e comprar a casa própria para D. Celeste e encanto de seus meninos. Na difícil história dos homens comuns, essa desse Pedro valeu de fato ser retratada e imortalizada em páginas de livro. Valeu, Carlos. Meus parabéns.
Comentário do dia 09/07/2012
Apenas continuando o comentário acima, a respeito da trepidante e engenhosa vida de "Zé das Máquinas", que vem a ser o pai do escritor Carlos Lopes, de fato fiquei impressionado com sua trajetória de homem inquieto, fiel às suas convicções e, principalmente às suas teimosias, o que, às vezes, lhe custou muito caro. Me diverti muito com sua estadia inicial no Quartel do Derby e sua aversão aos banhos, assim como sua última viagem de caminhão com a família toda para o Estado de São Paulo e o seu jeito para arranjar as coisas, bem típico do nordestino sabido. Assim, Carlos, retratando a vida de seu pai, você propiciou aos seus leitores com uma leitura interessante, dessas boas de se fazer a qualquer tempo e qualquer lugar.
Autor: Augusto Sampaio Angelim - São Bento do Una/PE

http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=29657
Publicação autorizada pelo autor

domingo, 15 de julho de 2012

Mão-no-bolso! A bricadeira! - Autor: Chagoso

Essa era uma bricadeira entre meninos da minha cidade, considerada muito violenta. Consistia num contrato entre dois moleques onde aquele que flagrasse o outro sem pelo menos uma das mãos no bolso tinha o direito de desferir-lhe um murro nas costas. Podia ser qualquer bolso, desde que de uma roupa que estivéssemos usando. E caso a roupa (calção, camisa...) não tivesse um, valia meter a mão por dentro do calção. A execução era sumaríssima e acompanhada de um grito: "Mão no bolso!". Geralmente quem sofria mais eram os iniciantes na brincadeira, pois os mais experientes estavam sempre com uma mão no bolso, quando não as duas. E ainda assim, quando viam alguém se aproximar, ato reflexo, punham-se em guarda. Os impasses ocorriam justamente quando a pena era aplicada no momento em que o infrator colocava o mão no bolso e instalava-se o conflito: o infrator dizia-se injustiçado e o executante afirmava legalidade no ato. Quando havia um terceiro moleque, amigo dos dois, recoriam a ele para julguar a legítimidade. Caso fosse considerado injusto, o injustiçado tinha o direito de desferir semelhante soco, como forma de reparo. Obviamente a brincadeira era de total desconhecimento de nossos pais pois tamanha brutalidade era incompatível com o padrão de amizade que reinava naqueles idos.
Hoje fico me perguntando: Como não seria melhor o mundo se nossos jovens ainda brincassem de mão-no-bolso e abominassem outras formas de violência...
 
Autor: Chagoso – Porto Velho/RO

sábado, 14 de julho de 2012

Depressão do Pinguim de Geladeira - Autora: Adriane Morais


Valores. Não, não vou repetir essa coisa de que alguns valores de hoje são divergentes daqueles de tempos idos, e por tal motivo vários aspectos de nossas vidas estão em desencaixe. Não! Simplesmente acredito na evolução das ideias e num repensar de diversos dogmas, e alguns argumentos que se contrapõem a essa crença, numa espécie de devaneio, associo a um eufemismo: depressão do pingüim de geladeira. Minhas avaliações são estranhas até para mim, mas...sigamos.

Viver na condição de não alterarmos o status quo por estarmos conformados ou simplesmente por que desconfiamos do novo, faz parte da inércia de vários. E tal inércia, como já está consolidada em vários aspectos e há anos...não! Décadas...não! Séculos...ah! é melhor não tentar limitar...perpetua-se em maciços e fortes defensores que atuam em indefinidos segmentos, e o know how em anular o indesejável se torna cada vez mais proporcional à praticidade de permanecermos quietos, na moita do não querermos envolvimento, do não querermos dar força a algo que renasça e contradiga o que aí está acatado.

Assim, fico feliz ao enxergar algumas sensíveis mudanças concorrerem com a descrença. Refiro-me ao fazer diferente de algumas pessoas, contra-argumentando o antes e evoluindo no possível e adequado, independentemente de holofotes ou do auto-marketing. É apenas um pensamento solto à reflexão.

Sobre a depressão do pinguim de geladeira. Humm! Há um forte argumento de que a colocação do pinguim sobre tal eletrodoméstico tinha um valor comercial agregado. Nos anos de 1950, os modelos dos refrigeradores eram bem arcaicos, lembravam armários de cozinha. Daí, para diferenciá-los de tais móveis, uma marca americana apostou na figura do pinguim para a divulgação e venda da então geladeira troglodita. Sabem como é: pinguim...geleiras. A idéia deu tão certa e cativou tanto os compradores, que havia gente que se tornava cliente da então empresa e adquiria o gelado armário, digo refrigerador, só por causa da figura de cerâmica em forma de pingüim. Pode?!

Os anos se passaram. A forma dos tais refrigeradores evoluiu. A marca americana que desenvolveu a idéia com a ave nadadora foi adquirida por outra empresa. O pinguim de cerâmica se transformou numa coisa démodé, ultrapassada. Sua utilização representava cafonice. Enterra-se o tal artigo de impulsão de vendas numa depressão comercial.

Os anos se passaram. Os valores sobre o significado e entendimento do que representa démodé...antigo...ultrapassado, são alterados. A máquina de costura, aquela com base de ferro, centenária, movida a manivela, esquecida e abandonada, torna-se um belo artigo retrô para decoração, e nesse saudoso caminho desfilam: telefones de disco; radiolas, LPs ou bolachões; roupas; sapatos; cortes de cabelos etc. Retrô! Graças a essa palavra e na força dos que acreditaram no enaltecimento do velho numa linha de arte, eis que retorna...quem?...quem? o pinguim de geladeira. Repaginado. Fashion. Vários são os personagens: roqueiro, surfista, intelectual, tímido, clássico, ousado, natalino ou até indecifrável.

Pois é! Esse é o meu devaneio ou um eufemismo para a radicalização do que deve ser permanente e, portanto, consolidado como inalterável. Valores, nós os criamos, nós os viabilizamos, nós os conduzimos ou os repensamos. A conveniência, interesse, crença e ações são os pilares do que se quer ou não associado a nós. A propósito, ainda não tenho um pinguim de geladeira, mas tenho uma coruja.


Autora: Adriane Morais – Recife/PE

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Postagem autorizada através de e-mail de 14/07/2012