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sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Exorcismo em escondido

Autor: Jailson Vital 

Quando eu era estudante, ainda no curso ginasial, estudava em outra cidade distante uns 80 quilômetros da minha cidade natal, no sertão pernambucano. Eu ia e vinha nas férias ou nos feriados mais longos, de ônibus, que parava em qualquer lugar onde houvesse um passageiro para subir ou para descer, naquela estrada de terra batida. Apesar da distância relativamente pequena para os veículos de hoje, naquela época enjoava-se de ver estrada de terra na frente, mato dos lados e poeira atrás. Quebrava essa rotina uma parada em frente a um lugarejo chamado Escondido. Dá janela do ônibus, eu ficava olhando e matutando. –Quem moraria naquele lugar de poucas casas dispostas de modo irregular, sem nenhuma simetria? De que viveriam? -Aparentemente alguns poucos mostravam alguma ocupação, pois havia na margem da estrada um posto de combustíveis, um restaurante, e estranhamente uma revendedora de automóveis, talvez usados. Ao longe, entre as casas, uma construção se sobressaía. Era uma igreja, aparentemente de culto católico. Algum tempo depois vim a saber que naquela localidade funcionava uma beneficiadora de caroá que é uma planta cujas folhas tem fibra longa e resistente, que depois de beneficiada serve para a feitura de cordas e tecido rústico. Essa atividade devia empregar parte dos moradores do lugarejo, tanto nos cuidados da planta na roça, quanto na parte industrial. Isso justificava a aparente prosperidade do lugar, que era bem cuidado.
A minha família se mudou para outra cidade e eu mudei de lugar de estudo, deixando de trafegar naquele trecho de estrada. Muitos anos se passaram e quando voltei a passar por aquela estrada, agora asfaltada, ao passar em frente a Escondido, tomei um susto. A minha impressão era que havia explodido no lugarejo, bombas do tipo jogadas por aviões durante a 2ª guerra mundial. Todas as construções estavam arrasadas. Apenas algumas paredes de algumas construções restavam de pé. Distinguiam-se as duas colunas do posto de combustíveis, que ainda sustentavam uma laje e uma parede, dando a impressão de uma cadeira gigante, a parede frontal do Bar e Restaurante Catimbau, com a sua inscrição em letras vermelhas e as paredes da igreja com suas portas altas, onde parte da estória que eu vou lhes contar aconteceu.                           
Novas indagações agora me assaltavam. – O que poderia ter acontecido? Por que o povoado foi arrasado desse jeito? Aquela situação me interessou e procurei saber de antigos moradores e autoridades do município sede, o que aconteceu para que essa desgraça acontecesse e então ouvi os relatos que passo a lhes contar com as tintas com que me foram pintadas. A cultura do caroá começou a declinar, devido à substituição dessa planta por outras mais fáceis de cultivar e mais econômicas, como o agave e a juta, além da entrada no mercado, do nylon, uma fibra derivada do petróleo, que era importada dos Estados Unidos. Com isso, o proprietário das terras onde se cultivava o caroá e da unidade beneficiadora, demitiu os empregados, fechou a beneficiadora, abandonou a casa grande e avarandada onde morava e foi embora para o Rio de Janeiro, segundo relatos. Falam também que ele, nem nenhum parente jamais voltou para Escondido, entrando a casa em degradação contínua. Dos empregados demitidos, parte também foi embora e a outra parte tentou negociar o caroá que ficara na plantação ou aproveitaram a terra abandonada para outras culturas.
Passados alguns anos, o povoado de Escondido ainda resistia ao abandono, quando aconteceu um fato intrigante. Um dia de verão e promissor calor, a casa grande que estava abandonada e completamente desgastada, amanheceu reformada e pintada em cores vivas, sem que ninguém tivesse visto ou ouvido qualquer barulho devido à reforma. E olha que seria necessário um batalhão de trabalhadores para fazer esse serviço em uma única noite. É claro que toda a comunidade acorreu à casa para ver o inusitado, e mil hipóteses povoaram as cabeças daquela gente humilde. No dia seguinte, novo mistério viria a agitar ainda mais a vida daquele povoado. Do ônibus que vinha do Recife, desceu uma figura bizarra. Uma mulher alta, de quadril e peitos avantajados, vestindo uma calça preta colante, blusa colorida, um lenço vermelho amarrado na cabeça, brincos longos descendo das orelhas e metade do antebraço esquerdo coberto por pulseiras circulares de metal. Nos dedos todos, anéis dourados e prateados completavam aquele personagem vindo talvez de algum bando de ciganos. Junto com ela desembarcou a sua bagagem. Um baú preto, medindo aproximadamente 1 metro de comprimento, por 50 centímetros de largura e altura e tinha duas alças nas laterais do comprimento. Era usual bandos de meninos cercarem o ônibus quando este parava, à procura de vender aos passageiros que seguiam viagem, pastéis, tapioca, milho assado, cocadas, e também os garotos maiores que disputavam para levar a bagagem dos passageiros que chegavam. Nesse caso do baú de Dona Zoráide, era esse o nome da figura, os garotos olhavam para o baú e se entreolhavam para ver quem se atrevia a candidatar-se a levar aquele trambolho. Para surpresa de todos, Dona Zoráide segurou em uma das alças, levantou um lado deixando a quina oposta do baú encostada no chão e com facilidade arrastou-o na direção da casa grande recém reformada. A meninada seguia-a admirada, pois o baú não deixava nenhum rastro no chão, nem fazia nenhum barulho ao ser arrastado. Seguia aquela procissão circense povoado à dentro quando de repente, ela parou e voltando-se olhou com os olhos esbugalhados para a meninada, que incontinente debandou para todo lado gritando apavorados, contando em casa, ofegantes, que tinham visto o cão. A chegada de personagem tão diferente agitou a pequena comunidade. -Quem seria ela? Seria parente do dono da casa? O que tinha vindo fazer em Escondido? -Passada uma semana de reclusão e de curiosidade, Zoraide chamou um menino, que a custo, ou melhor, que a bom pagamento concordou em distribuir um panfleto onde estava escrito: Madame Zoraide – Revela o passado o presente e o futuro – traz seu amor de volta – esquenta seu relacionamento – trabalho garantido. -Mas o que quereria uma vidente fazer numa comunidade tão pequena e unida? Mais um mistério. Passam-se duas semanas, e como nada aconteceu, as pessoas começam a acostumar-se com a presença daquela “cigana” na casa grande. Logo, uma primeira candidata resolve experimentar os serviços da dona Zoráide e comparece uma, duas, três e mais sessões na casa dela. Enquanto isso, alguns fenômenos acontecem: choveu abundante em toda a região, menos exatamente sobre o quadrilátero que as residências do povoado formavam. Na frente voltada para a estrada, a chuva caía da metade da estrada para fora. Estranhos redemoinhos rodavam entre as casas e observando-se bem dava a impressão de que tinha uma pessoa girando dentro dele. Em uma sexta feira de sol escaldante, meio dia em ponto, nenhuma nuvem no céu, uma sombra cobre só e exatamente a região de Escondido. Antigamente a calmaria e o silêncio reinavam nas madrugadas. Agora, cachorros latiam em bandos correndo atrás de alguma coisa. A primeira cliente da “cigana”, aparentemente gostou do resultado das sessões e logo trouxe mais outra e mais outra. As três pouco tempo depois levaram seus maridos e passavam as noites por lá. Não se sabia bem quais eram os problemas dos mesmos. O que se sabe é que os seus maridos logo após as primeiras sessões pareceram mais felizes, para em pouco tempo aparentarem desânimo e fraqueza. Os mexericos começaram a andar de boca a ouvido no povoado. As pessoas mais velhas diziam que Zoráide não era cigana coisa nenhuma aquilo era o coisa ruim. Numa dessas madrugadas ouviu-se na casa grande um alarido danado, um chororô, pedido de socorro e valha-me Deus. De repente a porta abriu-se e de lá de dentro apareceram os três casais completamente nús. Correram para o pátio da igreja, esmurrando a porta, pedindo para abrirem. Todos, homens, mulheres e crianças presentes no povoado correram para ver o que estava acontecendo. Alguém lembrou que na cidade vizinha estava um velho frade que pregava as santas missões na região, que era bom ir buscá-lo. Dito e feito. Em pouco tempo, o frade já informado dos acontecimentos, entrou na igreja com toda a população presente. Os casais saídos da casa grande, já vestidos, só sabiam dizer que tinham visto o cão. Fechadas as portas e janelas da igreja, o velho frade começou a rezar orações de exorcismo, acompanhadas por cânticos que todos cantavam com todas as forças para afugentar o medo. Do lado de fora uma zoada se inicia, com uma batida de zabumba e triângulo e um fole de 8 baixos puxado e encolhido sem ritmo definido. Outra barulheira se inicia com sons de matraca, berros de bode e toques de trombone, nas alturas que vocês podem imaginar. Uma algazarra contornava a igreja rodando no sentido horário e a outra no sentido anti-horário. Quando se encontravam atrás e na frente da igreja a barulheira era infernal. Do lado de dentro as crianças se agarravam aos pais, os cânticos aumentavam de intensidade tentando abafar aquela latumia toda. Tome cântico e tome reza, durante uma meia hora, até que a barulheira lá fora serenou. Dentro da igreja, os cânticos continuaram durante toda a madrugada, porém, agora, de maneira harmônica e na altura conveniente. Ninguém se aventurava a abrir a porta da igreja para saber o que estava acontecendo. Quando o dia amanheceu, o velho frade abriu a porta, bem devagar e o que viu foram os instrumentos largados no chão. As pessoas começaram a sair e voltar para suas casas agarradas nas mãos uns dos outros. Alguns arriscavam dar uma olhadela para os lados da casa grande, e o que viam era estarrecedor. Como por encanto a casa tinha voltado ao seu estado anterior de abandono. Desgastada, alpendre destelhado as portas e janelas, todas abertas e a casa aparentemente vazia. Nesse mesmo dia, todas as pessoas de Escondido foram indo embora, muitas deixando seus pertences para trás. No dia seguinte, não havia uma só pessoa morando no povoado.
Algum tempo depois, algumas pessoas se reuniram para fazerem uma vistoria nas casas para recuperar alguma coisa de valor ou valor sentimental. Ao entrarem no Restaurante Catimbau viram que o maldito, travestido de mulher tinha deixado na parede, uma pintura representativa do que acontecia nas sessões e naquela terrível noite na casa grande. Tiraram uma foto que aqui reproduzo, como prova de que tudo que aconteceu foi verdade.



Autor - Jailson Vital - Custódia/PE
Ilustração: Edmar Sales - Custódia/PE

sábado, 18 de maio de 2013

Sinal fechado

Autor: Jailson Vital

Apoiou as mãos no cabeçote da sela, firmou os pés nos estribos e ergueu o corpo, ficando quase em pé. Girou o tórax e contemplou aquela multidão às suas costas. Sentiu o coração bater forte. Ele era o comandante daquela imensa massa humana que, a uma ordem sua se abateria sobre o inimigo.
O corneteiro deu a ordem de atacar e como um rolo compressor os cavalos partiram ferindo o chão com seus cascos, num barulho ensurdecedor. Ele, ali na frente, imponente de espada na mão. O inimigo também respondia ao ataque e vinha ao seu encontro com toda a sua força. Levantou a espada prestes a desferir o primeiro golpe. Nesse instante sentiu-se jogado fora da sela e caiu por terra.
-- Acorda “general”! Não ouviu o toque de alvorada?  -- Foram as primeiras palavras que ouviu, antes de compreender o que tinha acontecido. Ergueu o corpo apoiando-se no antebraço esquerdo, deu uma olhada na cama e esmurrou o chão com raiva. Não sabia porquê acontecia; sempre que assistia a um filme de aventuras, sonhava ser o herói. Desta vez a fantasia fora real demais e chegara até a cair da cama. Deixou-se ficar sentado ainda por alguns instantes esfregando os olhos, antes de ir se lavar.
O barulho dos companheiros no refeitório do quartel não o incomodava. Na verdade, não os via nem os ouvia, por demais absorto em seus pensamentos, tomando o seu café e comendo o seu pão.
-- Merda de vida essa. Ter que acordar a essa hora e ficar o dia inteiro em pé, parado num canto. Ainda mais essa chuva fina que não para nunca. Não sei porque o que tem de chover, não chove logo de uma vez. Garanto como a essa hora o coronel ainda está deitado chupando os peitos da mulher.
-- Acorda “general”!  -- Alguém passara, dando-lhe um tapa nas costas, fazendo com que se engasgasse com um pedaço de pão. Com esforço engoliu o pão e ainda forçando a voz:
--  Por que não vai bater na tabaca da mãe? Qualquer dia eu dou um tiro num “fela” da puta desses.
Carrancudo, tomou seu lugar com os demais companheiros no caminhão que os levaria para a cidade e os distribuiria. Desceu junto à chave do sinal sem se despedir dos companheiros, desligou o automático e pôs–se ele mesmo a manobrar.
Verde, amarelo, vermelho.
-- Já estou farto dessa vida. Três vezes por semana, ter que dormir naquele quartel fedorento e deixar Laura sozinha em casa. Hoje pelo menos, não vou almoçar lá. Laura deve ter preparado a feijoada que eu pedi. Antes de chegar em casa tomo umas duas no boteco do “seu” Manoel que é prá abrir o apetite.
Vermelho, amarelo, verde.
Os carros partem como tigres saltando sobre suas presas. O tráfego é intenso nas duas direções.
-- Aquele idiota ficou ali no meio dos carros! Era bom que viesse um, pegasse ele pela proa e jogasse na baixa da égua. Só assim, a gente ia ter uma diversão aqui, hoje.
Verde, amarelo, vermelho.
Um carro ultrapassa o sinal.  – Vou multar esse “bacana”, que é prá ele aprender. 
– “Seu” guarda, dá pra passar?  -- Dá!  -- A garota de blusa colante e calça Lee atravessa a rua balançando os quadris num movimento harmônico. 
– Eu não sei onde é que vai parar esse mundo. É os homens com cabelo de mulher, as mulheres com calça de homem; depois que inventaram essa moda, nunca mais se viu uma perna de mulher nem pelo amor de Deus. É capaz do cara casar com uma peste dessa e só ver que ela tem uma perna mais fina do que a outra, quando for dormir. Se minha mulher vestir uma desgraça dessas, eu largo ela na mesma hora.
Vermelho, amarelo, verde.
-- “Seu” guarda, pode me dizer onde fica essa rua por favor?
-- Puxa, que garota bonita! Pelo menos isso me aconteceu de bom hoje.
-- Pois não, senhorita: deixe-me ver. Rua do Progresso... bem, deixe-me ver onde é que fica.  -- Vou fazer “cera”, prá ficar olhando mais um pouco prá ela.
-- Rua do Progresso...  Rua do Progresso..., a senhorita tem certeza que fica aqui por perto?
-- Bem... me disseram que eu descesse aqui e me informasse!
O tráfego havia parado na direção do sinal livre e os carros que estavam parados por imposição do sinal vermelho, começaram a buzinar.
-- Ah! Já sei! A senhorita dobra à esquerda, mais adiante, dobra à direita, e vai...
“pibiiiite”...  “pibiiiite”... “pibiiiite”...
-- Vão se fuder!
-- ...e vai em frente. Logo adiante é a rua do Progresso.
-- Obrigada!
-- Às suas ordens!
Verde, amarelo, vermelho.
-- Boa tarde, companheiro. -- Boa noite. Pensei que não vinha mais!
-- A culpa não é minha. A culpa é lá “dusôme”.  -- Eu sei.
Finalmente podia ir para casa almoçar e descansar. Chega em casa fedendo à cachaça, chama por Laura.
-- Benzinho, está com muita fome?
-- Ainda pergunta? Dando duro até essa hora, feito um desgraçado, embaixo duma chuva chata... já estava todo entrevado... tô melhor agora porque tomei “umas” prá me esquentar, ali no barraco do “seu” Manoel.
-- Benzinho, eu quero lhe dizer uma coisa.
-- O que é?
-- é que eu fui aqui na casa de comadre Luiza, um instante, e quando eu voltei, a feijoada tinha queimado.
Levanta o braço na atitude de bater na mulher mas se contém, gira no calcanhar esquerdo e na ponta do pé direito, fazendo uma meia-volta perfeita, como aprendera no quartel, bate a porta e vai embora. Sumiu no ôco do mundo.






Autor: Jailson Vital - Custódia/PE

Ilustração: Edmar Sales - Custódia/PE
Publicação autorizada pelos autores

sexta-feira, 5 de abril de 2013

O anjo de Altamira

Autor: Jailson Vital de Sousa
 
Cheguei à cidade de Altamira, no Pará, no princípio do ano de 1974. Fui trabalhar na manutenção da Rodovia Transamazônica, recém construída, e o contrato do DNER com a empresa em que eu trabalhava, ainda tinha 18 meses para serem cumpridos. Fui morar em uma casa construída em madeira, no acampamento dos engenheiros, que distava 1,5 km da periferia, e ficava à margem da rodovia. As casas eram bem feitas e confortáveis para o padrão das demais construções da cidade. De negativo, tinha a cor escura da madeira que, não refletia a luz natural, tornando o ambiente pouco iluminado, e as telas nas janelas para impedir a entrada dos mosquitos Carapanã que infestavam a selva amazônica e cuja picada deixava o local da pele esbranquiçado e com uma coceira dos diabos. Incomodava também, a solidão. No acampamento, que durante a construção da rodovia devia ser bastante movimentado, restavam eu e a família de outro engenheiro que trabalhava em projeto diferente, e assim tínhamos pouco contato. A distância de Altamira para outras cidades pela rodovia Transamazônica era: para o leste, a cidade de Marabá e para oeste, Itaituba, ambas a 500 km.  Como essa rodovia não era pavimentada, uma viagem de Altamira para qualquer uma delas levava um dia inteiro se não fosse  época de chuvas, quando então tornava-se imprevisível uma viagem dessa. Para Belém, somente de barco a partir do porto de Belomonte pelo rio Xingu, ou de avião. Portanto, a não ser por esses dois meios era impossível sair de Altamira. Para não ter problemas causados pela “clausura”, pelo menos de 3 em 3 meses, eu pegava um avião para Belém e ficava por lá durante uma semana. Eu gostava da Belém daquela época. Apesar do forte calor potencializado pela umidade elevada, o ar me parecia ter um odor agradável, a gente que habitava aquela cidade era simpática e amigável. Enfim, eu gostava de estar em Belém. Aprendi a gostar e também a dançar, ou tentar dançar, o carimbó, ritmo regional apressado que, tem passos próprios para se dançar. Encantava-me também, sendo sertanejo, como sou, a imensidão de água da Baia de Guajará, que cerca Belém.
Não posso dizer que a minha estada em Altamira não foi proveitosa em termos profissionais e pessoais. Fiz grandes amizades com pessoas locais e colegas de profissão, aprendi a trabalhar em ambiente de clima adverso. O Rio Xingu que margeia a cidade, o qual fazia parte das minhas quimeras de adolescente, quando ainda no curso ginasial, no estudo de geografia, estudava os rios afluentes do Rio Amazonas, tornou-se objetivo dos meus sonhos de descobrimentos. Enfim, banhei-me, alimentei-me dele e naveguei no rio dos meus sonhos da adolescência. Mas a paisagem nem sempre é bela como desejamos. A vida tem seus truques.
Certa vez fui ao hospital local, não me lembro do motivo. Na sala de recepção encontrei uma garota que aguardava atendimento. Tinha cerca de 7 a 8 anos de idade, vestia um vestidinho simples que ia pouco abaixo dos joelhos, nos pés uma chinela empoeirada, os cabelos alourados e pouco cuidados desciam sobre os ombros magros. O seu olhar cruzou com o meu e seus olhos azuis me fitaram. Olhei fixamente para aquele rosto sem expressão e fiquei emocionado com o que vi. Pareceu-me que alguém a tinha maquilado fazendo enormes círculos arroxeadas no entorno de seus olhos. Naquele momento eu era só indagação, enquanto aquela garota parecia que pedia-me socorro, sem no entanto fazer qualquer movimento com os lábios ou com os olhos. Talvez, não entendesse porque estava ali, nem da gravidade da sua situação. Então abaixou a cabeça como que resignada com o seu destino. Soube depois que ela tinha leucemia. A imagem daquela menina desde aquele momento, impregnou-se em minha mente. É horrível o sentimento de impotência diante da fatalidade.
Deduzi, pelo tipo físico que, ela era filha de algum das centenas de colonos que teriam vindos do sul do país para morar nas agrovilas, que eram conjuntos de casas pequenas, feitas de madeira, agregadas a um lote de terras doadas pelo governo federal e situadas à margem e ao longo da Rodovia Transamazônica com o objetivo de cultivar o solo e povoar a região. Esse projeto não deu certo e os lotes acabaram sendo abandonados pelos colonos.
A manutenção da rodovia, não exigia diretamente a minha intervenção constante. Havia uma equipe de operários, com um encarregado que comandava a realização dos serviços, usando máquinas e caminhões. Essa equipe adentrava a rodovia, cujo trecho sob nossa responsabilidade media mais de 200 km, toda segunda feira e só retornava aos sábados. Levavam os mantimentos necessários para uma semana e dormiam em barracas armadas por eles ou nas casas abandonadas das agrovilas.
Certa feita, um caminhão retornou em um dia no meio da semana, fato que só acontecia quando alguma máquina quebrava e era necessário vir buscar alguma peça, ou outra emergência séria. Aproximei-me para conversar com o motorista e indaguei o motivo da vinda. Ele apontou para a carroceria e mostrou-me um caixão funerário. Disse que era o corpo de uma menina que havia morrido de leucemia e o pai havia pedido a caridade de trazê-la para ser sepultada em Altamira. Eu não sei por que uma garota de quem eu não sabia o nome, causou-me tanta comoção naquele instante. Era a garota do hospital. Ela havia se tornado anjo.
Finalmente chegou o dia da minha partida de Altamira. Dentro do avião, enquanto eu tirava as últimas fotografias da cidade, através da janela, uma confusão de sentimentos tomava conta de mim. A alegria por sair enfim de uma cidade que me sufocava, a tristeza por deixar pessoas queridas e saber que nunca mais as veria, a satisfação pelo dever cumprido e a impressão que ainda carrego comigo de que um dia eu vi um anjo de olhos azuis e olheiras roxas. O meu anjo de Altamira.

Autor: Jailson Vital de Sousa - Custódia/PE
Publicação autorizada pelo autor
Crédito da ilustração: Edmar Sales (veja o marcador deste artista neste blog)