Autor: Alberto Vasconcelos
Nasci numa festa de aniversário...
Dia de muita chuva...
Cheguei para o almoço...
Virgem no zodíaco, macaco (de madeira) no chinês.
Dentada na língua, coqueluche, sarampo e caxumba na infância, amigdalite operada na adolescência; catapora, circuncisão, lesão do manguito rotador do membro superior direito e vasectomia, já adulto.
Fui menino comportado, obediente, amorfo...
Brinquei de pião, papagaio, badoque (fabricado e destruído por arrependimento diante da agonia do primeiro animal atingido), bola de gude, garrafão, bola queimada, barra bandeira...
Raramente futebol...
Colecionei borboletas (o fungo quase destrói a pele das mãos e braços). Fabriquei gaiolas, criei preás e passarinhos, peguei Beta no riacho Guarulhos (morto pela poluição), roubei frutas em quintais, mel de abelhas do apiário do Padre Estevão (convento da Sagrada Família), aprendi cerâmica de torno, tomei banho no riacho Uchoa (hoje esgoto a céu aberto)...
Morei no Barro até meu casamento em 1970.
Católico, cantei no coro e fiz parte de equipe de liturgia.
Fiz teatro durante onze anos e fui professor de História do Brasil.
Sócio número quatro do Umuarama Tênis Clube do Barro.
Dançadorzinho como um peste estive sempre presente em assustados,
quadrilhas juninas (as autênticas), bailes de formatura.
Fui presidente do Grêmio Literário (a ditadura proibia Diretório de Estudantes) do Colégio Porto Carreiro onde formei-me Contabilista (orador da turma).
Beijei, namorei (ainda não se “ficava”), noivei, casei, duas filhas, duas netas, separei, noivei outra vez, divorciado e hoje casado com Márcia Adriana Barboza, consóror do Recanto.
Desde abril/12, mudei para Santo André/SP.
Fui comerciário, securitário, industriário e aposentado.
Bacharel em Ciências Biológicas pela UFRPE (orador da turma).
Em janeiro 2011, dei fim às minhas plantas, (- quanta pretensão! Elas não eram minhas, apenas moravam comigo) não cultivo mais orquídeas (apesar de me considerar orquidófilo) e desisti de fazer bonsai.
Sou ateu convicto, gosto de viajar, de estudar biologia, de escrever,
de ler, de pintar, de modelar, de poesias, de música erudita, folclórica, regional e ópera, de política, de conversas inteligentes, de ouvir e de contar histórias, de beber cerveja, vinho, cachaça e de cozinhar.
Tenho o mau costume de acreditar nas pessoas...
Amigo é amigo; inimigo é inimigo. (Incondicionalmente).
O atual foco da atenção intelectual é a influência da estrutura antropológica do imaginário no comportamento humano.
Sempre gostei de ler, de conversar, de escrever, de ouvir e de contar histórias...
O que escrevo, são "causos" que ouvi, sonhos ou histórias verídicas vividas por mim ou por conhecidos meus...
Vez por outra, histórias inventadas mesmo, situações forjadas em ambientes onde nunca estive e nem sei se existem. Talvez memórias do DNA, herdada dos milhares de ancestrais, que viveram antes de mim e dos quais carrego os códons que a ciência, ainda, não sabe interpretar.
Agradeço a todos que se dispõem a ler o que publico e gostaria, se possível, de um comentário para poder melhorar, porque sempre há o que corrigir.
O que escrevemos e publicamos são os filhos do nosso intelecto e é bom sabermos como esses filhos estão se comportanto em sociedade...
ARTIGO – classificação: Geral
ENERGIA VITAL
Na total
escuridão da tuba uterina, o espermatozoide “nada” em direção ao óvulo, atraído
pelos sinais químicos, intermitentes, como os de um farol.
O flagelo freneticamente agitado, consome a cada movimento a provisão de
adenosina trifosfato (ATP), que foi acumulada na espermiogênese, para que as
mitocôndrias transformassem a energia química em energia cinética.
A penetração, facilitada pelo cone proteico, desencadeou o estímulo que alterou
a polaridade da membrana celular do óvulo e, em obediência à Teoria da
Evolução, onde apenas o mais apto sobreviverá, os espermatozoides retardatários
serão eliminados pelos fluidos uterinos, depois de mortos pela inanição
decorrente do esgotamento das reservas alimentares.
No microcosmo celular, as cariotecas se desfazem e os cromossomas são
liberados. Os lisossomos digerem os restos do espermatozoide e as fibras de
actina do cito esqueleto do óvulo formam o fuso acromático, onde os cromossomas
alelos formarão as duplas.
Uma vez pareados, realizam o “crossing over”, o maior artifício da natureza,
para que cada ser seja único, genética e psicologicamente.
Nesse fenômeno os genes trocam sequências e a combinação resultante torna o ser
diferente de todos outros que já existiram, existem ou existirão.
Refeita a carioteca, o ovo está pronto.
Lentamente, impelido pelo movimento ciliar da tuba uterina, o ovo recém formado
é guiado para o fundo do útero onde o endométrio, escamoso, aguarda a nidação.
Agora pleno de energia vital esse ser unicelular toma sua primeira decisão.
Multiplicar-se.
Multiplicar-se milhões de vezes para formar um ser humano que, na idade adulta
terá em torno de cem quatrilhões de células, iguais no genoma, mas com quase
duzentas formas diferentes para atender funções específicas.
Imensos grupos de células iguais irão formar os tecidos, os órgãos, os
aparelhos, os sistemas, obedecendo aos modelos e padronagens, definidos por
ensaios, erros e acertos, em sucessivas gerações desde os primatas inferiores.
Todos os passos serão, outra vez, executados nos mínimos detalhes.
Os genes desfazem a forma espiralada e duplicam-se. Seguem-se indefinidamente,
as fases prófase, metáfase, anáfase, telófase e as células filhas vão se
aglomerando para que o embrião adquira a forma de amora.
Da mórula, o passo seguinte é a blástula para daí surgirem os folhetos
embrionários no fenômeno chamado gastrulação.
Realizada a nidação, formam-se o saco amniótico e a placenta, ponte entre a
gestante e o embrião, por onde transitarão os nutrientes, anticorpos,
hormônios, gases O² e CO² e as toxinas resultantes do metabolismo do novo ser.
Desde o momento da fecundação até a morte celular total, o ser humano funciona
como um gerador, transformando as energias que recebe numa energia de padrão
próprio, único, cujas ondas se propagam em todas as direções tal qual a luz de
uma vela.
Consideremos que um ser humano viva por sessenta anos, desde o momento da
fecundação até a morte celular. A energia emanada de seu corpo tem sessenta
anos luz de comprimento e permanecerá vagando no universo por tempo
indeterminado, até que, como a luz das estrelas, seja captada por algo e
transformada noutro tipo de energia, conforme preconiza a Lei de Lavoisier.
Pela teoria de Einstein, energia é matéria em movimento descrita pela fórmula
E=MC², onde “M” é a matéria e “C” é a constante universal da velocidade da luz
(+/- 300.000km/s) elevada ao quadrado. O mesmo Einstein define o universo como
“uma esfera reversa”.
Então essa energia emanada pelo ser humano, quando chegar ao limite do
universo, vai refletir e, no sentido contrário, fatalmente atingirá a Terra.
Os seres vivos, em menor ou maior escala, são suscetíveis às variações das
cargas energéticas, podendo sofrer danos em suas estruturas, conforme pode ser
observado nos casos de “Olhado” ou “Quebranto”.
Esse desequilíbrio energético, que pode levar o organismo à morte, é objeto de
estudo desde a mais remota antiguidade pelos asiáticos, notadamente chineses e
indianos, cujas práticas da medicina popular (não alopática) estão muito bem
documentados nos textos do Do-in, do Feng Shui e da Acupuntura.
O legado mouro, quando do domínio na península Ibérica, foi trazido pela
colonização luso-espanhola e aqui, no Novo Mundo, miscigenada com a cultura dos
nativos e dos africanos trazidos para o trabalho nas lavouras, no fenômeno que
Gaston Bachelard e Gilbert Durand chamam de “Bacia Semântica”.
A troca de energia entre os seres, largamente explorada em rituais religiosos,
em sacrifícios, imposição das mãos, passes, benzeduras, bebidas, unguentos,
banhos, defumações e correntes de orações, muitas vezes surtem o efeito
desejado porque, também pela fé, esses atos liberam os estímulos cerebrais para
a produção de hormônios ou o desencadeamento das ações do sistema imunológico
do indivíduo afetado pelo mal.
Há pessoas que, por treinamento ou espontaneamente, são capazes de identificar
o desequilíbrio energético em seres ou ambientes.
São os conhecidos “médiuns” que, supostamente, fazem a ponte entre os seres
vivos e as diversas frequências energéticas em constante movimento pelo
universo.
Não há prova científica desse poder de decodificação motivo pelo qual, há muito
charlatanismo no campo das “Ciências Ocultas”, mas como disse Miguel Cervantes
Saavedra (in Dom Quixote de La Mancha), “Yo no creo em las brujas, pero que las
hay, las hay.”
CARTA
SOBRE ATEÍSMO
Caríssimo
amigo PAULO MORENO, em atenção ao seu pedido deixado no comentário da crônica
Lembrança XII, acredito que falar sobre ateísmo ou dizer-se ateu é muito fácil,
entretanto tornar-se ateu é um processo lento que demanda muitas horas de
estudo, coragem para “afrontar as verdades” aceitas pela esmagadora maioria e
determinação para permanecer na condição de pária.
Um ateu sempre foi, é e será visto como excluído da sociedade ou portador de
doença infectocontagiosa, ou criminoso capaz de todas as maldades. Um ser que
desconhece o significado do sentimento amor, que é inescrupuloso e prestes a
cometer as mais vis atitudes, incapaz de ter quaisquer gestos de bondade para
com o próximo, vez que, por ser um sociopata egocêntrico, nada nem ninguém tem
o mínimo valor, sendo também, potencialmente, pedófilo, libertino, iconoclasta,
apátrida, homicida, ladrão...
Mas é livre.
E essa liberdade que o conhecimento proporciona é quase sempre invejada pelos
teístas que apesar de cumprir todos os preceitos religiosos, como pagamento de
dízimos, abster-se de alimentos ou diversões, levando uma vida austera e cheia
de renuncias e compromissos para com a religião, têm os mesmíssimos problemas
ou doenças que os infames ateus.
É bom que se diga que não existe nenhum livro explicando o que é o ateísmo (sem
que seja tendencioso) nem um simples manual do tipo, ATEÍSMO SEM MESTRE EM 10
LIÇÕES, portanto as minhas conclusões sobre a crença nas falácias dogmáticas,
estão descritas nos textos já publicados no Recanto das Letras: 1 – Jesus
Imaginário (T1875712 de 19.10.09); 2- Terapia de Vidas Passadas (T1641300 de
10.06.09); 3 – Energia Vital (T2748909 de 24.01.11).
Um dos primeiros argumentos dos teístas para justificar a existência de deuses
é o fato de que em todas as culturas, os mitos e as lendas, “explicam” o
surgimento do homem; falam da grande inundação; do extermínio pelo fogo; pragas
para dizimar plantações e do salvador que resgatará os escolhidos para a glória
da vida eterna.
O ser humano, por ser dotado de raciocínio abstrato, procura entender o porquê
da existência das coisas que o cerca. Nosso cérebro funciona fazendo comparações
e associações entre as coisas novas e tudo aquilo que foi visto desde o
nascimento.
Exemplo: som=> palavra=> conceito
pa- lá- ci- o => palácio=> casa grande;
á- gua=> água=> líquido; etc.
Entretanto existem coisas para as quais não existem referências anteriores e,
para explicá-las, há o recurso abstrato do sobrenatural. Uma entidade
intangível e criadora é a explicação óbvia para o surgimento de tudo aquilo que
é, até então, inexplicável.
Criou-se assim o deus e com ele, todas as artimanhas capazes de manter a
comunidade unida e controlada. Entram nessa dança os fenômenos naturais como os
oceanos e rios, as tempestades, o fogo, os astros, as florestas, etc.
As sociedades atuais são descendentes daquelas que assistiram ao fim da última
glaciação, mais ou menos, dez mil anos antes do presente. As camadas de gelo,
com quilômetros de espessura, foram derretendo e as áreas baixas sendo
invadidas. Esse volume foi de tal magnitude que a zona intertidal brasileira,
ocorria mais ou menos a cem metros da atual.
Não há registro de cidades americanas sendo “engolidas” pelas águas, mas há de
áreas de caça e de povos que ficaram ilhados e destruídos assim como as cidades
da mesopotâmia, do entorno do Mediterrâneo e do sudoeste asiático.
É o dilúvio referido nos textos Vedas, chineses e assírios/caldeus com a figura
de Utnapishtim, metamorfoseado no Noé (bíblico) e em muitas lendas das
tradições orais dos povos do mundo em todos os continentes. Muitas lendas falam
em destruição de povos e cidades pelo fogo, sem ênfase para os movimentos
tectônicos que originaram os vulcões responsáveis por essas extinções, porque
não há interesse religioso nessa simplificação.
Uma das coisas mais comuns para o intelecto humano, é a associação entre
um fenômeno natural e a ira de um deus raivoso, mas quando você faz a
análise desses textos à luz das circunstâncias históricas, é capaz de detectar
as verdadeiras mensagens subliminares neles contidas como fizeram os
evangelistas, que foram obrigados a escrever o que fosse conveniente aos
interesses de Constantino.
Desses textos pseudo religiosos, o mais comum para nós é a bíblia, cujo único
valor é ser o registro da ética e da moral do povo judeu, quando saiu do Egito,
em torno de seis mil anos antes do presente.
Dela há que se destacar, além dos citados na crônica, os versos de Mt. 13:11 a
16 e o Gn. 3:19 que acaba de vez com essa historinha de vida eterna.
E foi assim, lendo e interpretando os textos à luz do contexto histórico que me
livrei dos dogmas, das perseguições, das culpas e barganhas religiosas.
CONTO – Classificação: cotidiano
DOCE DE ARAÇÁ
-
Vicência! ... Oh! Vicência!...
- O que é Sanana?
- Eu tô com vontade de comer doce de araçá...
- Ave Maria Sinhá! Adonde é que eu vô arrrumá doce de araçá prá sinhá cumê?
- Acabou tudo foi?
- E apois! O resto que tinha o coroné mandou botá na lata prô nhô Venâncio
levá.
- E o coronel não sabe que papai não pode comer doce?
- Sabê ele sabe, mas quem é qui pode negá as coisa a nhô Venâncio? Quando ele
cisma...
- Mas eu quero comer doce de araçá. Desde manhãzinha que tô com uma vontade
doida. Estava me segurando porque tô muito gorda, mas eu acho que é o bucho que
tá pedindo.
- Se é desejo tem que fazê logo se não faz má à criança.
- Vai apanhar araçá Vicência... Faz o doce prá mim.
- Já vô fazê Sanana. Sinhá num sabe que eu faço tudo. Desde que vossa mãe foi
pro céu, quem cuida de vosmecê num sô eu?
- Mas eu queria agora, Vicência...
- Eu faço pouquinho. Num instante fica pronto.
- Ah! não. Pouquinho não. Eu quero um tacho cheio pela boca.
- Se Sanana comê muito pode improvocá. Aí em vez de fazê bem vai fazê é má.
- Vai Vicência, vai... Faz meu doce.
- Espere um pouquinho, já já tá pronto.
Sentadas no alpendre da casa grande, Sanana grávida de sete meses, na cadeira
de balanço bordando uma camisinha de cambraia de linho. Vicência no chão com a
almofada de 25 pares de bilros entre as pernas, fazendo as rendas que seriam
aplicadas nas roupinhas do neném. (A linha de algodão ela mesma fiara na roca
mais que centenária) Dalí, as duas podiam ver Antonio Fabrício, primeiro filho
de Sanana, brincando de jogar carrapeta com dois meninos escravos praticamente
da mesma idade que ele. Sem levantar do chão, Vicência gritou;
- Bastião, Gerê!...
Atendendo ao chamado, os meninos interromperam a brincadeira e vieram até a
escadaria.
- Inhora madrinha, disseram em coro.
- Vai os dois caçá araçá. É prá trazê os maduro. Leve a perdoe. Vou cuspir no
chão, é prá vortá antes do cuspe secá.
- Posso ir também, minha mãe? Perguntou nhô Toinho com voz chorosa.
- Vá! Pode ir.
- Sanana, o coroné pode num gostá do sinhozinho tá no meio do mato com esses
moleque.
- Tem nada não. Eles vão voltar logo e Nossa Senhora não vai deixar acontecer
nada com eles não.
Gerê, o mais esperto dos dois escravos correu, por fora da casa grande, até a
cozinha e pegou a cesta de vime que fecha quando se pega nas duas alças ao
mesmo tempo e que era artefato indispensável dos frades pedintes de esmolas.
[O costume nessa época era pedir perdão, ao frade, quando o solicitado nada
tivesse para dar. Daí a frase “rogo que me perdoe por não poder ajudar” foi
aglutinada para “perdoe” e a cesta ficou com o nome]
No rastro de Gerê, nhô Toinho e Bastião também saíram em desabalada carreira.
Logo após o primeiro talhão de cana, havia uma capoeira preservada onde se
encontravam com facilidade, araçás, pitomba, mangaba, gogoia, cambará, ubaia...
Mais para dentro do mato um pé enorme de cajá com seu tronco rugoso era um
convite constante para subir nele e apreciar, lá de cima, a vista de quase todo
engenho com sua chaminé de tijolo vermelho, o rio, a roda e o pilão d’água, a
casa de farinha, a casa de purga, a capelinha caiada no alto da colina com as
cruzes das sepulturas de escravos do lado esquerdo (diziam que de noite tinha
alma penada vagando por ali), mas dessa vez não podiam subir na árvore. Os
araçás estavam grandes e saborosos. Uma jaca madura despencou do pé e causou um
grande susto nos três meninos quando se espatifou no chão. Entre risos se
empanturraram com os bagos amarelos, mais doces que mel. Com a perdoe quase
cheia, voltaram para a casa grande.
- Me dê logo um bocado desses Vicência, pediu Sanana.
- Deixe lavá premeiro sinhá.
- Carece não. Eu quero assim mesmo. E Sanana encheu a boca com as frutinhas de
sabor acridoce.
- Sinhá vai improvocá...
Dizendo isso, Vicência levantou do chão e foi para a cozinha preparar o doce.
Pegou o tacho de cobre na despensa e levou para o lado de fora. Depois de
examinado, viu que precisava ser areiado para tirar a grossa camada de azinhavre
que deixava azulado todo o interior do utensílio.
- Felicidade, cace limão galego e vá areiar esse tacho no rio. Vorte logo prá
me dar adjutóro nos araçá.
Vicência voltou para a cozinha e despejou o conteúdo da perdoe dentro de uma
gamela grande com água. Com faca de bambu, para não empretar, foi limpando as
frutinhas, tirando a casca, abrindo ao meio e raspando as sementes para dentro
de outra gamela. Uma vez limpas e sem sementes, as bandinhas eram colocadas
noutra gamela com água enquanto o tacho de cobre estava sendo lavado.
Felicidade foi correndo até o pomar, pegou dois limões dos grandes e seguiu
para a beira do rio. Colocou um punhado de areia fina molhada no meio do tacho
junto com um limão e pisou com toda força para estourar a fruta que iria servir
de esfregão. Depois de enxaguado, repetiu a operação e o tacho ficou brilhando
como se fosse feito de ouro. O enorme calor da tarde em contraste com a água
fria do rio era um convite ao mergulho que Felicidade não teve forças para
resistir. Com o vestido colado ao corpo e o tacho na cabeça, a moça subiu o
barranco. As formas exuberantes da adolescente vinha de há muito tirando o sono
de Bento, o capataz, que estava no alto do barranco admirando o espetáculo da
pele escura em contraste com o pano branco molhado que deixava à mostra todos
os detalhes.
- Venha cá negrinha.
- Vô não senhor.
Felicidade fez menção de correr, Bento guiou o cavalo para impedir a passagem.
- Vou lhe comer agora...
Enquanto Bento descia do cavalo, Felicidade soltou o tacho e correu para a casa
grande gritando,
- Mãe, me acuda pelo amor de deu!
Bento tornou a montar no intuito de agarrar a negrinha pelos cabelos antes que
alguém pudesse ouvir. Felicidade vinha correndo entre dois talhões de cana já
bastante altos, quase no ponto de corte. Felicidade era ágil e conhecia muito
bem o lugar onde nascera. Apesar do medo que estava sentindo, entrou num talhão
e se escondeu no meio da palha seca do canavial. Bento desesperado entrou no
talhão do lado contrário e estava como louco, fazendo o cavalo pisotear as
canas e gritando...
- Vou lhe pegar, vou lhe pegar...
Só parou quando deu de frente com o cavalo do Coronel.
- Que é isso homem? Você endoidou?
- Foi, foi, foi o guará, Coronel. Foi um guará que eu vi.
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Vicência terminou de limpar todo araçá e nada de Felicidade voltar. Chegou à
porta da cozinha e gritou...
- Bastião, Gerê...
- Inhora madrinha...
- Vá no rio e diga à Felicidade prá trazê o tacho. Já tá bom de tanto lavá.
Os dois meninos foram correndo. Encontraram o tacho largado no barranco, mas
nem sombra de Felicidade. Voltaram com a novidade: Felicidade havia sumido.
- Minha Nossa Senhora, Felicidade deve de ter morrido no rio.
- Pare com isso Vicência. Mande chamar o Coronel. Meu doce já está pronto?
- Ainda não sinhá...
O coronel mandou recado para que o pescador, seu velho fornecedor de carito,
procurasse para ver se encontrava o corpo da negrinha que todos julgavam ter
morrido afogada. Somente Bento, o capataz, insistia em que Felicidade havia
fugido.
Vicência voltou para a cozinha e cumprindo sua sina de escrava, obediente como
cão, colocou no tacho, uma cuia de açúcar e meia de água misturada com as
sementes. O fogo alto rapidamente ferveu a mistura separando as sementes
da parte macia que se desfez na calda que foi despejada na gamela e desta,
através da peneira de volta para o tacho agora com as bandinhas do araçá, outra
cuia de açúcar e um punhado pequeno de cravos da índia. A colher de pau de cabo
longo não parou de mexer até que o doce apresentasse o brilho dourado e a calda
ponto de fio. O tacho foi colocado na tina com água para o choque térmico
finalizar o cozimento. Do tacho para a compoteira de cristal.
Sanana sentada no banco longo da cozinha, comeu toda a raspa do tacho. Comeu
também quatro taças bem cheias do doce com a sofreguidão de um náufrago. De pé,
enchendo a quinta taça, sentiu tontura. Sentou e pediu água. Vicência pegou a
moringa no peitoril da janela e antes que Sanana bebesse o primeiro gole,
vomitou tudo o que havia comido, sujando o chão da cozinha e o vestido.
Segurando o estômago disse com voz sumida...
- Ai!... Que dor Vicência...
- Eu disse prá Sinhá que num comesse nessa danação. Agora tá aí, com dô...
- Mãe!
- Felicidade minha fia, onde vosmecê tava?
- Tava iscondida no mato. Seu Bento queria me pegá-me. Disse que ia me cumê.
- Que história é essa? Perguntou o Coronel que estava comendo uma taça de doce.
- Foi coronel. Quando eu tava areiando o tacho.
- Esse cabra parece um jumento no cio. Vou mandar dar-lhe uma pisa de cipó de
boi agora mesmo... guará, pois sim que era guará...
O coronel saiu da cozinha deixando as três mulheres mudas, sem entender o
porquê da última frase.
Qual a relação do que havia acontecido com o guará que estava comendo as canas
maduras?
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O dote de casamento que o Coronel da Guarda
Nacional Fabrício de Miranda recebeu ao casar com Sanana, incluía o escravo
Ignácio, excelente reprodutor, cujos filhos machos tinham boa compleição física
e podiam, a partir dos dez anos, serem incorporados aos trabalhos na lavoura e
as fêmeas, muito valorizadas pela beleza de corpo, boas parideiras e com
possibilidade de serem alugadas como amas de leite devido à grande produção além
de boa disposição para os trabalhos tanto domésticos quanto no campo.
O Coronel cobrava cem mil réis para que Ignácio emprenhasse escravas de outros
senhores. Era prenhez garantida. A mocinha vinha para o engenho na semana
seguinte depois da regra e ficava na senzala cruzando com Ignácio, uma ou duas
semanas. Se o dono da escrava tivesse sorte poderiam nascer gêmeos, como já
havia acontecido diversas vezes. Ignácio tinha mais de cem filhos espalhados
pela redondeza e na capital da província, nascidos quando ele pertencia ao
Coronel Venâncio, pai de Sanana, e principalmente nesses últimos dez anos que
estava em poder do Coronel.
Por causa disso, Ignácio tinha o privilégio de morar numa parte da senzala
separado dos demais escravos. Dormia numa tarimba com colchão de palha enquanto
os demais dormiam em esteiras.
A convivência, fidelidade e dedicação fizeram de Ignácio a extensão do braço do
Coronel.
Sob as ordens desse, Ignácio com mais dois escravos pegaram o capataz e o
amarraram no mourão de prender bicho brabo. O Coronel mandou tirar a roupa do
capataz e ordenou sessenta chibatadas.
- Isso é para vosmecê aprender a respeitar minha casa. Escrava minha só cruza
quando eu mandar.
E para Ignácio,
- Deixe ele amarrado ai até amanhã no cagar dos pintos. Bote um cabra tomando
de conta. Não ganha nem água de beber.
Bento aguentou calado as primeiras chibatadas, depois gemia e por último
respondia com grito de dor ao assovio do cipó de boi, seco e duro como vara de
bambu.
Depois da última chibatada o Coronel ordenou.
- Sacuda água de sal nas feridas para não arruinar...
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Sanana, depois do doce de araçá havia vomitado diversas vezes e Vicência estava
preocupada quando perguntou ao Coronel que era que iam fazer.
- Dê álcool canforado para ela cheirar e bote minha ceia. Onde estão Toinho e
Suzana. Quero os dois na mesa.
Depois da oração de agradecimento, a ceia transcorreu em silêncio, pois o
Coronel não admitia crianças conversando durante as refeições. A sala estava
fracamente iluminada por uma candeia sobre a mesa.
- Vicência, acenda as outras candeias. Quero essa sala bem iluminada.
Obediente, a escrava foi buscar as outras candeias. Eram duas peças de bronze
com três bicos alimentados por óleo de rícino feito no engenho.
Os caroços de mamona eram triturados no monjolo e espremidos na prensa para
retirar o óleo que iria iluminar a casa grande. Para iluminar a senzala, o
caroço da mamona era batido junto com a fibra de algodão até se transformar
numa massa homogênea que era moldado no formato de velas e colocadas nas
candeias suspensas do travejamento do teto.
Um trovão ribombou por cima da casa grande fazendo tilintar os vidros das
janelas e o conteúdo das duas cristaleiras. Suzana correu e se abraçou com o
pai. O Coronel pegou-a no colo e foi para a janela mostrar à filha o espetáculo
da chuva desabando sobre o lajeado em frente à casa grande.
Vicência entrou na sala com um lençol para cobrir o espelho grande a fim de
evitar que os raios fossem atraídos por ele.
- Leve as crianças para a cama. Sanana melhorou?
- Melhorô Coroné. Graçadeu tá drumino...
O Coronel pegou um charuto no armário e foi para a varanda olhar o tempo. Ia
ser chuva forte a noite toda. Ignácio subiu alguns degraus da escadaria e
perguntou
- Coroné e o sô Bento. Posso sortá o homi?
- Não. Ele vai ficar onde eu mandei até amanhã.
Ignácio desceu de costas os degraus que havia subido e foi para a cocheira de
onde podia ver o sentenciado sem ter que levar a chuva que não deu trégua
durante toda a noite. Se continuasse assim, fatalmente, haveria cheia.
Pela manhã o Coronel mandou soltar o gado, eles sabiam melhor que ninguém as
partes altas do engenho. As vacas leiteiras foram trazidas para o curral que
ficava ligado com a cozinha da casa grande. O capataz foi tirado do mourão e
levado para o casebre onde vivia, aonde ficou entregue à própria sorte.
Havia muito serviço a ser feito para proteger o açúcar já pronto e o que estava
em processo de purga. Tudo teria que ser trazido para a casa grande que ficava
no alto do morro onde a água nunca, nem as maiores cheias, haviam chegado.
- Coroné, o capataz tá se acabano de febre.
- Bote arnica nas feridas, dê um caldo quente prá ele beber, mas deixe ele lá.
Choveu forte durante todo dia. Noite alta se ouviu o som lúgubre do búzio
tocado nessas ocasiões, para anunciar que a cheia estava se aproximando. Os
escravos pegaram seus pertences e vieram para o porão da casa grande.
O som da cabeça da cheia arrasando tudo era assustador. Nada mais havia para
ser feito. Apenas esperar que a chuva parasse e que a água seguisse seu curso
em direção ao distante mar.
O Coronel sentou na cadeira de balanço da sala de visitas e cercado pelos
filhos Antonio Fabrício de sete anos; Maria Suzana de cinco; Maria Laura de
três e João Antonio de um ano, no braço, contou que a chuva era por causa da
festa que ia ter no céu e os anjinhos, lavando tudo, deixavam a água cair. Que
os trovões eram os móveis sendo arrastados e os raios eram as velas sendo
acesas para iluminar tudo. Sanana entrou na sala e perguntou
- O Coronel não vai mandar trazer o capataz para cá?
- Não Sanana. Aqui ele não entra.
- Mas senhor, e a cheia?
- Não é problema meu.
- Mas...
- Chega Sanana! Seu Bento é assunto encerrado.
O Coronel Venâncio chegou à porta com a capa encharcada. Logo atrás dois
escravos carregando o enorme baú com as roupas. As crianças correram para
abraçar e tomar abênção ao avô.
- Bença meu pai... Vicência veja outra roupa para meu pai trocar essa
molhada...
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Dois dias depois, quando o rio havia voltado para sua calha, o Coronel pode
avaliar o estrago. Canavial, roçado, pomar tudo coberto por grossa camada de
lama.
Da senzala só o travejamento de madeira que segura a taipa. Em pontos esparsos
do telhado algumas telhas que não haviam sido arrastadas pelas águas mantinham
equilíbrio precário sobre o travejamento oscilante.
E por toda parte, nem sinal de Bento, o capataz...
(nas falas dos personagens escravos, procurei reproduzir a forma de falar dos
quilombolas, meus conhecidos.)
CAVERNA – Classificação:
aventura
“Nas grutas, só se tiram fotos, só se levam lembranças, só se
deixam rastros” – Princípio espeleólogo.
Eu não tenho a mínima idéia das circunstâncias que fizeram e com que aquele
folheto viesse parar em minhas mãos.
A impressão não tinha grande impacto visual, mas o papel era de boa qualidade e
pessoas sorridentes como em propaganda de margarina ou de creme dental, faziam
o convite para a excursão às famosas grutas da Chapada Diamantina, no centro do
centro do Brasil.
Para pessoas com alma cigana, como eu, aquele era um convite irresistível e,
três dias depois estava eu, sendo sacolejado, a caminho da Chapada, dentro de
um ônibus velho que, por seu aspecto e estado de conservação, devia ter feito
parte da comitiva real, quando Dom João, ainda príncipe regente andara pela
Bahia nos idos de 1808 e, acredito, naquela época ele já devia ter bastante
tempo de uso assim como o seu motorista, seu Fulgêncio que também era cobrador
(recebeu o pagamento das nossas passagens no momento do embarque, com a
recomendação que deveria ser em espécie porque ele não dispunha de dinheiro
miúdo para trôco); mecânico (porque vez por outra o ônibus fumaçava, tossia,
apagavam-se as luzes e o motor morria); borracheiro (porque os pneus não
chegavam a rodar 50km, estouravam e ele, pacientemente fazia o remendo, enchia
com uma bomba manual, montava tudo outra vez e seguíamos em frente) e
cozinheiro (porque nosso ônibus tinha serviço de copa e cozinha, limitada
logicamente, a água tão quente como se tivesse escapado do radiador, bolacha
mais dura que os seixos da beira da estrada, feijão de tropeiro, carne seca
frita e aquele arroz no melhor estilo “santa casa de misericórdia”), mas
aventura que se preza tem que demonstrar as dificuldades logo de início para
ver se o cabra é macho capaz de enfrentar...
E seguíamos nós, lépidos e fagueiros em direção à bela cidade de Lençóis,
cortada pelo riachinho que leva seu nome (ou seria a cidade que herdara o nome
do rio bem mais velho que ela?) e que na época das chuvas se transforma num
dragão capaz de tragar tudo o que encontra em sua frente.
Mais quebrado do que arroz de terceira preenchi a ficha do Hotel Pousada onde
me esperava uma cama macia, recheada de festivos percevejos que me deram as
boas vindas com um banquete onde o prato principal era o meu sangue.
Tentei inutilmente afastá-los usando quase todo o tubo de repelente de insetos.
Mas percevejo não é inseto e todos, absolutamente todos, fizeram questão de
demonstrar a superioridade da espécie em não levar em consideração o princípio
ativo do repelente.
Enfim consegui dormir, afinal foram três dias de viagem entre Salvador e
Lençóis em companhia de seu Fulgêncio e sua incrível máquina exterminadora de
aventureiros metidos à besta.
Lapa Doce é o nome da gruta cuja entrada mais parece a porta de um hangar onde
entrariam facilmente dois aviões Boeing, daqueles grandões, ao mesmo tempo.
É um mundo incrivelmente diferente de tudo aquilo que nossos olhos estão
acostumados a ver.
As avencas levemente embaladas pela brisa matutina se mostram exuberantes, como
cortinas no umbral daquele mundo subterrâneo que aprendemos a temer desde a
primeira infância.
Escuro, misterioso, onde o som constante do gotejamento nos lembra milhares de
relógios marcando, em contagem regressivamente cadenciada, os segundos que nos
restam de vida.
Tudo é lindamente impressionante naquele local de magnas proporções, onde a
cada passo, nos sentimos menor, mais vulneráveis, mais indefesos.
O chão brilha quando a luz da lanterna incide sobre os cristais de calcita. É
como se estivéssemos vendo a via Láctea de cima para baixo, com miríades de
estrelas cintilantes.
Os estalactites e estalagmites se aproximando lentamente, a cada gota da água,
rica em carbonato de cálcio, formam estranhas figuras que nosso cérebro,
acostumado a examinar as coisas por comparação, vai identificando as formas de
cálice, elefante, pizza, torres de catedrais, asas de morcegos, peitos de
mulher, tronos, cajados, velhos curvados pelo peso dos anos...
Numa das colunas havia um bando de grilos das cavernas.
São animais perfeitamente adaptados ao ambiente sem luz tanto que perderam a
cor e substituíram a visão por aumento considerável no tamanho das antenas, que
funcionam como as bengalas dos humanos cegos e através delas pode localizar o
excremento dos milhares de morcegos, onde microrganismos, seu alimento
preferido, executam em perfeita harmonia o processo de reciclagem da matéria.
Embevecido nessa contemplação e acompanhando o movimento dos grilos perturbados
pela luz de minha lanterna, enveredei por galerias fora do circuito onde o
nosso guia tinha deixado parte do grupo enquanto providenciava socorro para uma
mocinha, claustrofóbica, que dera um piripaque.
De repente estava perdido, sem saber como voltar.
O fato é que eu ouvia as vozes, mas não sabia como voltar para a trilha,
naquele labirinto incrivelmente igual.
- O senhor se perdeu do grupo, não foi?
Olhei para todos os lados na intenção de identificar de onde tinha partido
aquela voz, mas não consegui ver nada, além das belas formações cristalinas de
cores variadas.
- Estou ouvindo coisas (pensei em voz alta) aqui não tem ninguém.
- Tem sim, Ninguém é o meu nome.
E surgiu diante de mim um homem bem mais alto do que eu com os cabelos e barba
quase pelos joelhos, segurando um cajado de madeira escura. Sua idade era
impossível de determinar.
A pele que se via, do rosto e membros superiores e inferiores, era branca como
se fosse uma estátua de mármore.
- O senhor mora aqui? Perguntei curioso.
- Desde que era um rapaz. Não sei quanto tempo faz que estou aqui dentro. Me
refugiei para não ser preso por conta do crime que cometi, mas me condenei à
prisão perpétua porque não pertenço mais ao mundo lá de fora.
- E como é que o senhor faz para viver? Como é que come?
- Como grilo e às vezes morcego novinho quando cai dos braços da mãe.
- E o senhor consegue ver com seus olhos brancos assim?
- Não. Fiquei cego há muito tempo. A água me cegou, mas aprendi a viver no
escuro e a interpretar os sons que escuto como o do seu coração, que está
batendo assim com medo de mim. Mas não tenha medo, eu não lhe farei mal. Eu sou
inofensivo como tudo que tem aqui na gruta. Só lhe peço um favor...
Aquele homem, se é que se pode chamar assim, tinha toda razão, eu ainda
permanecia ali porque não sabia como voltar para a trilha e principalmente,
porque desde a sua chegada, eu deixara de sentir minhas pernas, tal o medo que
tomara conta de mim.
- Eu sinto que estou morrendo e quero pedir um favor ao senhor.
- Pode falar. Eu farei o que o senhor pedir.
- Eu quero que o senhor entregue essas alianças a uma moça que mora em
Marimbus. O nome dela é Branca. Diga que foi o noivo dela quem mandou.
- Eu entregarei pode confiar.
E o homem de pedra tirou dos dedos, com muito sacrifício, um par de alianças de
ouro que, por causa do ambiente ácido, estava brilhando como se tivesse acabado
de ser polida por ourives competente.
- Para voltar para a trilha, passe por baixo da perna daquele elefante ali na
sua frente e ante para a direita.
Dizendo isso o homem colocou a mão no peito e desabou no chão de pedra batendo
com a cabeça numa elevação com um ricto de dor no rosto. Abaixei-me junto a ele
e num fio de voz ele disse:
- Não me tire daqui.
Enquanto voltava para a trilha, lembrei do princípio do espeleólogo. Eu não
tinha o direito de tirá-lo dali porque ele era parte da gruta.
Fui para o hotel emocionalmente abalado por ter sido testemunha da morte de um
homem que havia se refugiado na gruta e que não queria sair de lá mesmo depois
de morto, ouvi um sermão do nosso guia, um veadinho que mais parecia uma
libélula saltitante com crise histérica, por conta da minha transgressão às
normas de segurança.
Nessa noite, depois de uma deliciosa sopa de batata da serra, fui registrar
tudo em meu diário e depois dormir para estar inteiro no dia seguinte.
O faxineiro tinha feito o serviço que eu encomendara com querosene e óleo
diesel em todo quarto, chão, móveis, porta e janela e comprado o colchão novo
que eu dera o dinheiro e que seria dele quando eu fosse embora.
Os percevejos não apareceram para o jantar e, vitorioso, dormi até depois das
10h00 da manhã do dia seguinte.
Contratei um jeep da segunda guerra e fui para Marimbus cumprir o prometido.
A estradinha é péssima, mas chegamos ao antigo quilombo e eu fui procurar a
mocinha chamada Branca.
A única pessoa que tinha esse nome era uma senhora que pelos meus cálculos
estava já na casa dos noventa e tantos anos. A pele negra contrastava com o
vestido e os cabelos brancos, ela estava sentada numa esteira de palha no chão
batido da varandinha da casa toda feita de palha de piaçava. Sentei num caixote
de madeira perto dela.
- Quem é o senhor e o que quer comigo?
- Eu trouxe um recado para a senhora.
E tirando as alianças do bolso algibeira, entreguei repetindo as palavras do
homem da caverna.
- Essas alianças foi seu noivo quem mandou.
A dona Branca olhou as jóias brilhando na palma da minha mão e num gesto
vacilante, pegou, observou longamente, como se naquele momento toda uma
história antiga houvesse se liberado do mais recôndito espaço do seu cérebro.
A sequência de alterações faciais devia ter sido filmada porque nem Leonardo da
Vinci seria capaz de reproduzi-las e eu me amaldiçoei mil vezes por não ter
ligado a câmera antes de fazer a entrega.
Da curiosidade quase infantil, seu rosto demonstrou surpresa, alegria,
tristeza, horror e me entregando as alianças disse num fio de voz.
- Eu não posso ficar com isso moço. Nessas alianças tem o sangue do meu pai que
foi assassinado por aquele homem. Ele não queria o nosso casamento.
- Mas ele já está morto. Morreu ontem pouco depois de me entregar as alianças.
- Eu ia fugir com ele, mesmo contra a vontade de minha família, mas aí eles se
encontraram, brigaram e eu fiquei, até hoje, sem meu pai e sem meu amor.
- Quanto tempo faz que isso aconteceu?
- Acho que faz mais de oitenta anos...
No dia seguinte, voltei à Lapa Doce e sem que ninguém visse, depositei as
alianças numa piscina natural tão funda, que fez desaparecer o brilho do
ouro...
OBS: Esse texto foi produzido a partir do HaiKai XVI da consóror Marina Alves
que gentilmente permitiu a publicação, a quem dedico a como forma de
agradecimento.
"Caverna escura/ entre pedras gotejantes/ ramo
de avenca"
AMIGO OCULTO – classificação:
surreal
Eu ainda
era um bebê quando minha família mudou para o bairro do Monteiro.
Nossa casa ficava na avenida, bem próxima ao açude de Apipucos, quase em frente
à igreja do engenho que se transformara em bairro.
O quintal atrás da casa terminava na margem do rio Capibaribe onde haviam
banheiros construídos desde o tempo dos escravos.
O piso era feito com tijolos bem grandes de barro cozido que tinham cintilações
verdes por conta da vitrificação feita com sal.
As paredes eram de taipa de sopapo porque, periodicamente, o rio enchia e
derrubava tudo. Só o piso resistia à fúria das águas.
Havia muitas árvores frutíferas nos duzentos e tantos metros de quintal que
começava nos batentes da cozinha e se estendia, com inclinação suave, até os
banheiros. Era o meu sítio, onde passei os melhores anos de minha vida.
Ainda no berço eu ficava por muito tempo, depois de acordado, brincando com
Agnus Dei, o meu amiguinho preto que aparecia quando eu estava só e desaparecia
quando alguém se aproximava de mim. Agnus gostava de tocar o chocalho e me
ensinava canções numa língua que ninguém entendia.
Eram palavras que contavam histórias da boa vida, numa aldeia que ficara muito
distante e aonde as pessoas sentavam à sombra dos baobás para beber da água
doce do rio, cheio de hipopótamos que bramiam em noites de lua cheia.
Antes de completar um ano, meu amigo Agnus me ensinou a andar. Ele segurava as
minhas mãos e andava de costas me guiando para o terraço fresquinho ao lado da
casa.
Cresci brincando com Agnus, mas como ninguém conseguia vê-lo deixei de dizer
que ele estava brincando comigo.
Quando alguém dizia:
– Esse menino passa o dia todo brincando só, se não chamar ele é capaz de
passar o dia todo com fome – eu nem ligava.
Agnus trazia uma cesta pequena cheia de bolinho de goma bem branquinho que a
mãe dele fazia e nós comíamos tudo.
Nos domingos quando eu ia assistir a missa com minha família, Agnus ficava do
lado de fora da igreja.
Quando eu chamava para ele ficar no banco, ele chegava perto e dizia: - Sinhá
num dêxa nego entrá... E saía correndo.
Com sete anos fui matriculado na escola de dona Filomena, Agnus ia comigo e
ficava sentado no banco do jardim esperando que a aula acabasse. Foi nessa
época, conversando com Suzana, minha colega de classe, que também via Agnus e
ficava toda arrepiada, que eu entendi que ele era uma assombração.
Às vezes eu pedia a ele para dar susto nas pessoas e a gente ria muito se
lembrando das caras assustadas que elas faziam. Todas as vezes que estávamos
brincando na casa da árvore que tio Tonho construiu para mim, no pé de fruta
pão, lembrávamos dos sustos e riamos muito.
Eu estudava falando bem alto que era para Agnus decorar e me ajudar nas
sabatinas, mas ele era burrinho não aprendia nunca e eu fiquei muitas vezes de
castigo por conta das respostas erradas que ele me dava, principalmente na
tabuada que ele mais se confundia e eu levava bolos de palmatória.
Mas eu não tinha raiva dele. Ele era meu amigo, meu companheiro, meu amigo
oculto que estava sempre disposto a me ajudar em todas outras coisas.
No dia em que eu fiquei olhando a prima Matilde tomar banho, ele me avisou que
tia Emília estava chegando nas pontas dos pés para me pegar. Se eu tivesse sido
descoberto, teria levado uma surra daquelas!
Com onze anos me matricularam no seminário de Olinda. Fiz de tudo para Agnus ir
também, mas ele dizia que tinha medo de padre e que também sinhá não deixava
entrar na igreja.
Uma vez por mês eu vinha passar o final de semana no Monteiro. Enquanto eu
estava vestido com a batina negra de faixa azul, Agnus não se aproximava.
Ficava meio escondido atrás da porta me olhando com aquele olhar desconfiado de
criança que fez algo errado e espera o castigo que, certamente, virá.
Com muita conversa, aos poucos fui desfazendo aquele medo e repassando ao meu
amigo os conceitos da teologia e de filosofia que estudava no seminário e,
coisa engraçada, parecia que a cada mês meu amiguinho ia crescendo, se tornando
adolescente, depois jovem, depois como homem perdeu a cor escura, ficou
diáfano.
Todos os dias nas orações matinas, terças, sextas, noa e vésperas eu pedia com
todo fervor que deus desse entendimento ao meu amigo para que ele encontrasse o
caminho da paz e da iluminação.
Numa noite, quando todos já haviam se recolhido, eu vi Agnus junto à minha
cama. Ele disse:
- Vem comigo, vamos lá fora.
- Não posso sair.
- Então, abre a janela.
- Eu vou abrir a janela do corredor. A do dormitório somente o padre prefeito
pode abrir.
Tentando fazer o mínimo ruído possível, abri uma das janelas do imenso
corredor. Havia uma luz etérea no pátio e Agnus me disse:
- Graças às suas preces, esses mestres vieram me ensinar os caminhos
espirituais e eu vou agora com eles. Somente iremos nos encontrar quando você
tiver concluído essa encarnação.
Com os olhos cheios de lágrimas vi meu amigo perder a forma humana e juntamente
com outros vultos se dissipar entre a folhagem do jardim. Nesse momento, eu
senti uma vibração muito forte inundar meu corpo e aquela sensação de paz e
harmonia impossível de se transformar em palavras.
- Não chore meu filho, seu amigo agora está no caminho da luz. Vá dormir e não
comente isso com ninguém.
Era o padre prefeito que, tirando a mão do meu ombro, fechou a janela e se
dirigiu para sua cela.
Olhando as costas do padre que se afastava, julguei ver um feixe de luz sobre a
sua cabeça.
Formei-me padre e fui trabalhar na Zona da Mata de Pernambuco numa comunidade
pobre e analfabeta. Trabalhei com afinco para que meus paroquianos saíssem
daquela vida de sacrifício inútil.
Por causa disso, era chamado de comunista.
Durante a ditadura fui perseguido, preso, torturado e expulso do país. No meu
exílio forçado, pedi aos meus superiores para servir na África, onde o povo
falava algumas das palavras das canções da minha infância.
Com a anistia, voltei para minha terra e trabalhei até mês passado quando foi
diagnosticado câncer na cabeça do pâncreas e me deram no máximo três meses de
vida.
Hoje quando acordei na UTI vi Agnus Dei junto à cama. Ele sorriu para mim e
perguntou:
- Vamos?
- Espere um pouco. Quero terminar a nossa história que estou ditando para o
gravador.
- Eu prefiro que os leitores façam o final que eles acharem melhor.
- É. Você tem razão...
E o bip intermitente do monitor cardíaco foi substituído pelo som contínuo...
CRÔNICA
FILHOS DO LIXO
A TV
Globo mostrou hoje no jornal Bom dia Brasil, a primeira de uma série de
reportagens sobre o submundo do lixo.
No interior de Pernambuco, numa cidade tão grande a ponto de produzir quinze
toneladas de lixo por dia, três crianças de dois a quatro anos, filhos de uma
jovem que por ser catadora de lixo e por não ter creche no município, é
obrigada a leva-los para o seu “ambiente de trabalho” numa carroça puxada por
jumento, onde são transportados os materiais para reciclagem.
Essa mulher que mora num barraco miserável, onde falta tudo, levanta antes de
clarear o dia, dá banho e veste as crianças, atrela o jumento à carroça e vão
para o lixão da cidade onde as crianças podem comer restos de alimentos que
foram jogados fora, contaminados pelo contato com material em decomposição,
como aves mortas descartadas de criatórios, cujas carcaças apodrecidas são
disputadas pelos demais catadores que as levam para terem o que comer em casa.
No mesmo espaço, urubus disputam algo que os humanos não puderam aproveitar
pelo adiantado estado de putrefação. Cada caminhão que chega, provoca uma
corrida dos catadores para conseguir algo reciclável de valor comercial ou mesmo
um reforço para alimentação do dia.
Essas cenas, dignas de compor as obras de Victor Hugo ou Dante Alighieri, são o
retrato vil do descaso com a vida humana, da hipocrisia dos homens que se dizem
cristãos, do descalabro com que são administradas as verbas públicas.
Onde está o Poder Judiciário?
Onde está o respeito aos direitos humanos?
Onde está o Estatuto da Criança e do Adolescente?
(que deveria atuar mais na prevenção que na punição)
Onde estão as verbas públicas para a construção e manutenção das creches e das
escolas?
Outras duas moças foram mostradas. Os seus sonhos frustrados eram de arranjarem
serviço no mercado formal de trabalho, uma delas, em lágrimas, verbalizou o
desejo que tinha de ser Secretária, mas não pode estudar (faltou escola) e hoje,
estão presas na vida degradante que nossa sociedade omissa, lhes destinou.
O que vai ser desse pessoal, sem comer, sem saúde, sem instrução?
Que outro futuro os espera além da miséria?
Até que o manto da droga os acolha, continuarão comendo lixo “morrendo um pouco
a cada dia”*
Tenho vergonha de minha geração que fez com que chegássemos a esse ponto e, por
minha omissão, tenho vergonha de mim.
*Verso de João Cabral de Melo Neto em Morte e Vida Severina.
HAIKAI –
classificação: Senryus
HAIKAI 4
Mão estendida, ao pé da ponte,
Moedas tilintando na tigela.
Cão vadio,
adormecido.
HAIKAI 7
Livros empilhados
Conhecimento condensado
Povo analfabeto
MENSAGENS –classificação: amizade
OUTRA VEZ É NATAL
Uns dizem
que o ano passou muito rápido, que não deu tempo para nada, que parece que foi
ontem a festa do último natal.
Outros consideram que os dias se arrastaram, e que parecia, que o ano não
queria acabar.
Tudo ilusão...
Os dias foram tal qual os do ano anterior e o anterior do anterior por todo o
sempre, afinal, todos eles tiveram, e terão, as mesmas vinte e quatro horas.
O que provoca essa sensação de urgência ou de lerdeza do tempo é,
exclusivamente, o ponto de vista.
O ano que passa célere, como o clarão do raio, para o estudante que vai prestar
vestibular e tem toda a matéria para passar em revista é o mesmo que se
arrasta, como tartaruga sonolenta, para os que estão hospitalizados ou
encarcerados.
Mas independente do ponto de vista, o fato é que estamos, outra vez, no limiar
de um novo ano e é nessa ocasião que renovamos, a todos, os nossos votos de
felicidades, saúde, dinheiro, alegrias, grandes (e pequenas) realizações e
acima de tudo paz de espírito.
E é exatamente tudo isso que eu desejo a todos os meus companheiros dessa
viagem maravilhosa à qual chamamos vida.
PENSAMENTO
QUERIA
Queria
que você fosse meu eterno bem,
Queria ver crescer a fraternidade,
Queria saber que não mais existe a miséria,
Queria ver florescer a amizade.
Queria viver um milhão de anos,
Queria que o organismo não envelhecesse,
Queria estar mais perto dos amigos,
Queria que o egoísmo desaparecesse.
Queria ler todos os livros do mundo,
Queria saber falar todas as línguas vivas,
Queria conhecer todas as línguas mortas.
Queria ver todos os museus,
Queria ver todos os parques do mundo,
Queria conhecer todas as praias,
Queria mergulhar no oceano profundo.
Queria correr pelos campos como louco,
Queria me perder nas florestas,
Queria ver de perto todos os animais,
Queria sentir o aroma de todas as flores,
Queria ser surpreendido pela chuva torrencial,
Queria andar a pé por todas as estradas.
Queria experimentar de toda culinária do mundo,
Queria um gole de todas as bebidas,
Queria sorrir de orelha a orelha,
Queria gargalhar com todos os dentes,
Queria chorar lágrimas de felicidade
Queria que na estrada da vida...
Eu estivesse no portão da entrada,
E não na porta de saída...
POESIA – classificação: desilusão
ESPERA
Esperei por ti inutilmente,
Em cada rosto eu via num repente,
Teu lindo olhar, teu riso, teu semblante,
Mas não vieste e sem dizer o porquê,
Destruíste neste gesto todo o meu viver.
Íamos fugir para bem longe,
Viver a vida que havíamos sonhado,
Os planos todos, a nós mesmos dedicados,
Pontilhados de ventura e felicidade.
Vivendo a aventura da alegria,
Onde ninguém sequer nos conhecia,
Vida cigana, completa, sem saudade.
Mas não vieste e sem dizer o porquê,
Destruíste neste gesto todo o meu viver.
Ainda hoje choro a desventura,
De ter sonhado e não realizado,
A vida a dois que tu abandonaste.
Aquela noite permanece ainda,
Fez-se eterna, tornou-se infinda.
Pois não vieste e sem dizer o porquê,
Destruíste neste gesto todo o meu viver.
PROSA POETICA
AREIA, TESTEMUNHA.
Nossos castelos de areia enfeitados com sargaço
Sempre foram os mais bonitos
Na nossa infância, desinibidos
Passávamos as horas construindo, sem cansaço.
Você, a princesa que a bruxa aprisionou
Eu, o herói cavalgando as ondas
Derrubando muralhas inexpugnáveis, que sempre lhe salvou.
Adolescente a areia lhe incomodava,
Trazida pelo vendo no bronzeador se pregava,
O banho rápido e a reposição do creme
Que em minha mão, a sua pele macia massageava
Com o prazer de sentir as curvas generosas
Deliciosamente quentes e olorosas.
Eu te amo, escrito em relevo com areia e sargaço
Em ondas, o mar levou
Mas nosso compromisso selado num abraço
Nada, nem o tempo, apagou.
Nossas sombras projetadas na areia
Sua barriga grávida revelava
Tantas vezes, ela foi mostrada
Seguidamente, éramos dois, éramos três,
Éramos quatro, éramos cinco, éramos seis.
Nossas pegadas seguidas de pegadas pequeninas
Outros castelos, outras princesas
Nossas crianças, nossas filhas, nossas meninas
Que cresceram e foram fazer outros castelos
Muito além do horizonte, bem longe de nós
Deixando apenas a saudade atroz.
Incansável, o mar apagou todos os dias
As pegadas que deixávamos nas areias
Mesmo vacilantes, nossos velhos pés
Não deixaram de marcar nosso caminho.
A morte repentina parou seus passos
E estando longe do alcance dos meus braços
A lua hoje imprime na terra
Uma sombra solitária, que encerra
A imensa dor de caminhar sozinho.
Autor: Alberto Vasconcelos - Santo André - SP
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