sábado, 16 de janeiro de 2016

Apresentação e Prefácio do livro Espinho de Roseta

Apresentar uma obra pressupõe a responsabilidade e o compromisso de levar ao leitor uma prévia impressão ou uma apreciação crítica do apresentador, sem, contudo, influenciar esse mesmo leitor, a concluir previamente sobre a qualidade do que ele mesmo deverá avaliar. Por essa premissa é que, para que uma obra se torne verdadeiramente interessante, o autor deve ter a capacidade de surpreender cada um de forma diferente, seja por um grande enredo, por uma linguagem peculiar, por um estilo diferenciado, ou por qualquer outro motivo que leve ao envolvimento do leitor com a história com a qual ele se depara. Em mim aguçou-se de imediato a curiosidade pela história que se desencadearia a partir do título. Espinho de Roseta é uma expressão que comporta uma duplicidade de sentidos, o literal, em que partes pontiagudas de um acessório (roseta ou espora) são usadas pelos cavaleiros para apressar a marcha do animal e quando ela gira em contato com o corpo do cavalo, o fere. O outro sentido que é metafórico e que só pude assimilar ao final da leitura, justifica plenamente o título: o personagem tem uma vida que vai se prolongando, mas sempre se ferindo, seja pela inconveniência de seus atos ou pelo remorso de tê-los praticado, numa analogia com o espinho que fere para que a marcha avance.
Espinho de Roseta é uma destas narrativas que se revelou como uma grata surpresa, pois, embora explore predominantemente as mazelas do submundo, a crueza dos protagonistas perante o antagonismo explícito entre a conveniência de suas realidades, e a violência velada do ambiente em que eles vivem, permite a associação de cenas de extensão de nosso cotidiano entremeio à ação dos personagens, mesmo que, em caráter ficcional, podem estabelecer conexões entre si, tornando-se uma obra aberta para um verdadeiro exercício de imaginação.
Ainda que seja complexo determinar em qual gênero literário se encaixa essa narrativa e existam pontos de encontro entre a novela e o romance, o autor optou por uma representação mais direta: a das possibilidades reais do mundo conhecido, do cotidiano alcançável, caracterizando o texto como novela, em contraponto ao romance tradicional. Esse último, conforme a terminologia inglesa, em geral representa “uma visão de possibilidades ideais ligadas ao mundo obscuro e menos consciente dos impulsos, desejos e sonhos subjacentes às ações humanas.”, explorando menos as situações mais reais. Espinho de Roseta caracteriza-se assim, como novela, pela menor complexidade da intriga ou da análise dos personagens e pela linearidade da história, por um enredo desenvolvido sucessivamente, alterando-se a sequência apenas nos delírios do personagem Zoio, que enquanto agoniza, alterna o tempo e o espaço de sua realidade e de suas lembranças. Ambos, tempo e espaço, são definidos pela pluralidade dramática, pois as próprias ações dos personagens são responsáveis por deslocá-los para diferentes ambientes ao longo da narrativa.
 Com uma linguagem simples e clara, mesmo que haja uma mescla de expressões mais antigas a outras mais modernas, denota-se que a narrativa se desenvolve na atualidade e que acompanha os hábitos culturais locais e contemporâneos. O autor explorou bem tais características de uma novela, diferentemente de seu estilo usual em sua vasta obra, voltada mais para os contos e para relatos de histórias pessoais.  Em prol do fio narrativo, manteve os principais personagens sempre em destaque e inseriu, com muita maestria, outros personagens no contexto, à medida que a trama exigia, sem, contudo, dar-lhes menor atenção, tornando a ação desses, essenciais para a narrativa.
Sabe-se da obra de Carlos A. Lopes, que seus primeiros textos foram peças teatrais e de seu envolvimento com os palcos em sua juventude, portanto não me surpreende que Espinho de Roseta, pelo seu viés de novela desenvolvido com os traços da experiência do autor, poderia adaptar-se perfeitamente à dramaturgia.
De leitura agradável, em detrimento do sofrimento dos personagens, o livro surpreende pela riqueza de um enredo que fez do drama uma bela trama.

Celêdian Assis de Sousa
Belo Horizonte/MG


É sempre muito gratificante receber um convite para apresentar ou prefaciar uma obra, mas quando se trata de sua obra, meu amigo Carlos Lopes, o prazer é ainda maior, pois tive a honra de acompanhá-lo desde o seu primeiro trabalho publicado e sei de quanto esmero está envolvido em cada um de seus livros. Obrigada pelo convite e desejo que Espinho de Roseta seja um sucesso. Um abraço.
Celêdian Assis de Sousa



Esse não é exatamente o tipo de livro que muitas pessoas gostariam de ler, pois trata-se de um livro forte e tocante que poderá chocar muitos leitores, não só pela linguagem utilizada, mas também pelo conteúdo do seu enredo. Quem é pego despreparado pode pensar que o livro aborda uma vida suja, mundana, de um homem sem coração e sem família, porém afirmo que isso não torna a história menos interessante.
Em vários momentos, Espinho de Roseta retrata a vida de pessoas levadas a viver na marginalidade, vadiando no submundo do crime e prostituição, talvez representação de um grupo social excluído. O autor privilegia detalhes em que o instinto é reflexo do indivíduo no seu meio, ao apresentar nuances psicológicas que remetem ao erotismo. São imagens que chocam, devido à dureza retratada. Isso se faz presente nas descrições em que o saciar dos desejos acentua ainda mais neuroses e traumas.
Sem possuir ordem cronológica, a história é permeada pela presença marcante e frequente do ambiente social. São traçados em várias facetas, resquícios da personalidade do indivíduo, incluindo até mesmo uma carga ingênua e infantil em que percebem-se vestígios de laços afetivos, quebrados no entanto, ao longo da narrativa.
O Espinho de Roseta é uma obra inovadora, onde é interessante perceber a construção do personagem principal na trajetória característica de um ser rejeitado pela sociedade.  Ao longo da história, há uma enorme interação entre personagem e o meio inóspito onde vive. A esterilidade do futuro descortina-se para o personagem, na acidez das palavras, na rudeza das pessoas, na incapacidade de demonstrar ou criar relacionamentos afetivos duradouros.  Além disso, sofrimento, necessidades, carências, servem de instrumento para que se percebam bem as fases marcantes e conduza o leitor através da emoção de cada momento.
Violência é um tema presente neste livro, onde os dilemas e problemas de um menino se desenvolvem até se tornarem dilemas e problemas de um adulto. De certa forma, isso ajuda você a se colocar no lugar do personagem.   O modo cru no qual a trama se desenvolve, cria uma coisa humana, sem formalidades. Ali é a vida como ela é. Constatamos assim, que o indivíduo possui uma formação psicológica baseada numa criação social. Tomando a história como um reflexo da realidade e como habilidade humana em cogitar sobre suas experiências sociais e subjetivas, encontra-se aqui um reflexo da sociedade em suas mais variadas formas.
O livro que você tem em mãos não carrega uma mensagem transformadora de conduta, mas confirma a imaturidade aparentemente perene de um homem incapaz de reconhecer o mal que fez a si próprio. Não é um livro genial, mas muito bom. Com boa mistura de questões sociais e existenciais, por meio de um estilo bem ajustado, onde se pode analisar a sociedade como sendo nada mais que um conjunto de seres que dão vazão aos seus instintos, assim como todos os demais animais irracionais, mas que se acham civilizados.
Quem sabe tudo isso se trata de uma ironia? Alguém até poderá dizer que se deixou levar por algo um tanto cru e desprovido de poesia e beleza.  É o texto pelo texto, a palavra pela palavra, o fato pelo fato. Sem metáforas, sem subterfúgios. Mesmo assim prende até a última página. O jeito de anti-herói de Zoio cativa da forma mais estranha, mas cativa! Em resumo, é um livro muito bom, que se lê sem esforço, sem cansaço, com crescente interesse. Um livro que mostra a vida em sua essência: perigosa e selvagem!

Maria Mineira
         São Roque de Minas/MG

Acredito que entrega-se o prefácio de um livro para quem se conhece bem e tenha inteira confiança, assim sendo foi uma honra ter sido escolhida para escrever o prefácio de Espinho de Roseta. Li cada capítulo e tenho certeza que a dedicação do autor valeu a pena. Sucesso meu amigo! 


         Adquira seu exemplar
         gandavos@hotmail.com

domingo, 10 de janeiro de 2016

Notícias do passado

Autor: Augusto Sampaio Angelim

Fiz a mim mesma a promessa de nunca lhe procurar. Não escrever e nem telefonar. Já se passaram mais de trinta anos, porém, agora, um motivo mais forte me obriga a isto. Explicarei adiante. Amanhã à noite, embarcarei num ônibus e irei procurá-lo. Pelo menos é o que penso, enquanto escrevo esta carta. A angústia que tenho sentido estes dias é capaz de me enlouquecer e, neste momento, apesar da certeza do que  estou escrevendo, a dúvida me assalta. Talvez amanhã, quando acordar exausta desta noite mal dormida, rasgue esta carta e desista da viagem. Não, amanhã estarei mais resoluta que agora. Tomarei o ônibus e darei um jeito de me avistar com....Como devo lhe tratar? Simplesmente por C? Não se preocupe, sei das responsabilidades de seu cargo. Não lhe trataria com tamanha intimidade, apesar do passado. Acaso consiga vencer meus temores e dúvidas e lhe entregue esta carta, imagino que, a princípio não reconhecerás a remetente. Ou será que lembrarás assim que me avistares? Sinceramente, não sei, pois pouco te conheço, embora tanta ligação tenha consigo. Evitarás abrir o envelope e rasgarás a carta ou sua curiosidade lhe impelirá à leitura? Quem é essa mulher? Será que terás dúvidas a respeito da minha identidade e do meu segredo? Ficarás desesperado? Pensarás em extorsão, dinheiro, escândalos? Dobrarás os joelhos, ante o peso nos ombros e o amargor na boca? Tuas mãos tremerão com a leveza dessas páginas? Se esta carta chegou às tuas mãos e continuas a ler, é porque, no mais íntimo de teu ser, despertou, no mínimo, a dúvida sobre o passado. 
Estou cansada.
Mas não há outra saída, preciso de sua ajuda. Ou melhor, precisamos.
Certamente, lembras de quando vieste para esta cidadezinha perdida nos confins do interior. Jovem, bonito e forte. Eu também. Jovem bonita e afoita. Minha mãe (que Deus a tenha) trabalhava na sua casa. Era a “empregada”. Cozinhava, arrumava e passava. À tardinha, quando voltava da escola, literalmente vestida como uma colegial, de saia azul-marinho e blusa branca, ia ter com minha mãe em sua casa que, àquela hora, já estava aviando os preparativos do jantar. Numa dessas tarde, estavas no quintal, trabalhando a terra com uma enxada. O suor escorria pelo seu rosto e a camisa branca estava colada na sua pele, realçando-lhe a beleza. Não consegui desviar os olhos e percebi que notaras, pela satisfação de teu semblante. No outro dia, a mesma coisa. No terceiro dia, minha mãe disse que teria de ir, rapidamente, à padaria, pois tinha esquecido de comprar o pão. Eu fiquei, pois ela mandou arrumar a roupa passada e levar para seu quarto. Peguei, cuidadosamente, suas roupas. Não me contive e procurei teu cheiro nas roupas que já estavam guardadas. Demorei pouco, mas o suficiente para que passasses pela porta do quarto rumo ao escritório e me avistares. Dias depois, lembras? Sim, alguns dias depois, às escondidas, entrei em seu quarto, me despi e cobri o corpo com o lençol lavado por minha mãe. Imaculadamente branco. O instinto masculino lhe guiou até meus braços. A volúpia e o prazer tomaram conta de nossos corpos. Fui embora e não sei que fins destes ao lençol. No outro dia ouvi mamãe procurando saber seu destino. Assim, se passaram cerca de quinze dias de encontros furtivos e repletos da maior intimidade. 
Tenho certeza que não esquecestes desses dias. 
Estás envergonhado? Era a juventude, se procuras alguma desculpa. Ainda não tinhas vinte e seis anos. Eu, menina, estava perto dos dezoito.
Eu sei que é difícil, mas preciso de forças para lhe contar o resto. Como escrevi acima, talvez amanhã rasgue está carta e jogue os pedacinhos na bacia sanitária. 
R., que morava na minha rua e não escondia sua paixão por mim, foi a salvação. Salvação, neste caso, por expressar algo divino, talvez não seja a palavra apropriada. Mesmo no desatino daqueles dias, tive receio do que o pior tinha acontecido e tomei uma atitude drástica. Na festa da padroeira. Bonita festa, não é verdade? Na festa, R. dançou comigo e, por astúcia, lhe induzi a ingerir garrafas e mais garrafas de cerveja, para depois me levar até o canto mais escuro da praça. Na agonia do desejo e no desalinho da embriagues, ele pensou que o troféu era dele. No outro dia, à noite, falou preocupado comigo e com minha reputação. Cai no choro. Chorei de verdade. Chorei com raiva do que havia acontecido entre nós dois. Chorei com raiva porque enganara R. Ele me pediu em casamento. Na mesma noite, impulsionado pelo amor que me devotava e pela sua dignidade, falou com minha mãe. Dona M quase que caiu de costas. Não esperava aquilo. E vocês namoram desde quando? E vocês vão viver de quê, meninos? Uma pergunta atrás da outra. A resposta curta e certeira capaz de derrubar todas as indagações. Eu “mexi” com ela D. M. Mamãe levou às mãos ao coração e caiu no sofá. A pressão dela subiu e teve uma crise de angina. 
Destes detalhes não sabias, não é mesmo? Ainda estás a ler? Tuas mãos estão suando porque estás nervoso? Estás com raiva? Tens ódio? Eu sim, neste momento tenho tanto rancor que os dedos doem de tanta força que estou fazendo na caneta. Amanhã, talvez eu rasgue esta porcaria e deixe você, definitivamente, alheio a tudo o que aconteceu. Ou será que você sabe do que aconteceu? Sabe? Se estivesses em minha frente, agora, e eu permanecesse com esta coragem momentânea, lhe perguntaria: “Sabes, o que aconteceu, covarde?”.  Deixei de ir à sua casa. Dias depois, casei com R. Da cerimônia lembras com certeza. A minha mãe se esmerou em aprontar a igreja. Minha barriga já dava sinal, mesmo assim casei de branco. R. foi a melhor pessoa que conheci na vida. Sim, ele morreu. Faz dois anos. Tivemos duas filhas. A primeira barriga deu um menino. Ninguém nunca soube de nada. Mamãe, quando estava no seu leito de morte, no ano passado,  chamou-me e perguntou de quem P. era filho. Não minta, minha filha. Eu disse a verdade e ela descansou em paz. Eu e P. precisamos de sua ajuda, por isto lhe escrevo. Agora, deves ter rasgado a carta em mil pedacinhos, ou então, queimou-a. 
A noite já vai alta, mesmo assim preciso continuar a escrever, pois se parar agora, amanhã não terei coragem para recomeçar. Estando ainda com a carta em suas mãos é sinal de que estás ansioso para saber o que desejo. Tens medo de extorsão? Escândalo? Paciência, lês o restante do que tenho para te dizer. Se você não destruiu esta carta até o presente momento é porque tens medo, repito. Espere um pouco, ainda. Preciso lhe dizer que quando R e eu nos casamos, o pai dele nos deu terra e gado para criar. Com muito esforço, R. soube conduzir a propriedade, ser meu senhor e marido. E, principalmente, pai dos três filhos. Estás a amassar a carta? Não faças isso. Continue a leitura. R, apesar do pouco estudo, compreendeu que eu precisava continuar estudando e, todas as noites, eu vinha para o colégio e assim mesmo, entre uma barriga e outra, consegui concluir o ginásio. Mas não ficou nisto, fiz Faculdade de Pedagogia e consegui ser aprovada como professora do Estado. Um sorriso de sarcasmo talvez escape dos teus lábios agora. Professora? Professorinha? Afinal, todos aqui ficamos sabendo de sua ascensão e que fostes estudar até em Roma e obtivestes grau de “Doutor”. Quando os meninos cresceram viemos morar na Cidade. R., todos os dias, ao amanhecer do dia, rumava para a fazenda, cuidar da terra e dos animais. Assim prosperamos e conseguimos amealhar certo capital. Disto não me queixo. R., entretanto, de tanto lidar com vermífugos e carrapaticidas, contraiu um vírus fatal e morreu precocemente. 
Estás a se perguntar por que lhe digo estas coisas? Não desconfias da verdade? 
Bem, R. morreu, as duas meninas se casaram e foram morar em V.
P., também se casou, mas ficou aqui, tomando conta da fazenda, repetindo a vida de R. Ele tem dois meninos lindos. Estão os dois aqui em casa e daqui da sala ouço a respiração forte deles. Brincaram o dia todo, alheios à tristeza da casa.

Podes ser frio, canalha, covarde. Sim, penso estas coisas a seu respeito, se queres saber. Podes ser tudo isto, mas és inteligente e sabes aonde eu quero chegar. É. Isto mesmo. P. é seu filho! Desculpe-me, mas agora estou chorando de raiva. Ele está preso há vinte dias, acusado de receptação de cinco novilhas que comprou na feira do gado. Já contratei advogado e não teve jeito. Ele recorreu para o Tribunal e, como tenho visto na internet, és íntimo do desembargador que está com o processo dele. Uma palavra. Apenas uma palavra em favor de teu filho e de teus netos, é o motivo desta carta. Rogo-lhe por tudo que é de mais sagrado. Fazes isto e apagarei todas as mágoas que me causastes. Para teu consolo, juro de coração, que foi melhor você ter ido embora antes que P. nascesse. Eu fui feliz com R. durante toda nossa convivência. Por ele, pela dignidade póstuma dele é que eu também te afirmo, mesmo com raiva, que se não fizeres nada. Que, mesmo que não movas um dedo em favor de P., eu não falarei nada a ninguém. Este segredo somente eu, mamãe e você é que saberemos para sempre. Não por mim e por você, mas pela dignidade de R. Procuras o desembargador que eu te falei, tu sabes quem é ele, pois vocês estavam numa mesma solenidade na semana passada. 
Sim, quando assumistes o cargo de tanta distinção que ocupas agora, a cidade festejou e surgiu o boato de que virias até aqui, aonde principiarias teus dias de ministério. Eu tinha certeza de que não virias. Muitas casas, principalmente, na zona rural, exibem seu retrato oficial. Aqui não tem. Na casa de P., por iniciativa exclusiva da mulher dele, influenciada pela mãe, está sorridente e sereno na moldura da sala.
Estás aliviado? Já normalizou a respiração? Tuas mãos pararam de tremer? Fazes o que quiseres desta carta. Era tudo o que tinha a dizer, para sempre. Mas fazes este gesto, para curares tua vergonha. Reconheces o teu pecado. A Bíblia diz em Salmos 51:2-4 “Lava-me completamente da minha iniquidade e purifica-me do meu pecado. Pois eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim.”. Afasta-se, pois do pecado, eu te perdoo, se fizeres isto por seu filho.
O reverendíssimo bispo Dom C. sentou-se na cadeira de sua escrivaninha, fechou os olhos e aparentou dormir. Dois ou três minutos depois, se levantou, passou a mão pela cabeça totalmente calva e se dirigiu até o canto da sala onde ardia uma vela e queimou a carta.

Augusto Sampaio Angelim

São Bento do Uma/PE

sábado, 2 de janeiro de 2016

A última Revelação

Autora: Maria Mineira

Envolvida por paredes frias, caminho a esmo pela sala. Dominada pelo desespero, procuro a imagem dele à minha frente. A tela que mostrava o circuito interno de tevê, transformou-se no espelho da minha ansiedade e tormento.
Quero de novo a sua presença, preciso desse alívio que não vem. Meus olhos pousam nos onze livros da estante.  Ansiosa, ando de um lado ao outro folheando páginas. A vontade é descer e verificar se o carteiro já deixou a encomenda que chega religiosamente no mesmo dia, há exatos doze meses.
Pela câmera, passo o tempo a observar dia após dia. Perco horas a acompanhar a vida de outras pessoas. Vejo tantos acontecimentos e questiono o sentido de minha existência nesse mundo. Nem as lágrimas insistentes conseguem dar vazão a esse sentimento angustiante. Eu, cada vez mais impotente diante de uma tela, onde minha realidade é o contrário de tudo que sonhei para mim...
Jamais esquecerei nosso primeiro encontro na livraria de um Shopping Center, na cidade de São Paulo. Ironia do destino, ambos disputávamos o último volume de “Memorial do Convento” de José Saramago. 
—O livro é seu.  Gostaria que aceitasse como presente.  Sorriu, convidando-me para um café.
Aceitei, meio encabulada diante daquele homem de cabelos grisalhos, voz doce e olhar terno. Conversamos amena e divertidamente a tarde toda. Falei de minha vida solitária, após noivado desfeito. Contei dos meus livros, do meu trabalho como secretária numa multinacional. Dele, soube que apesar de brasileiro, trabalhava como professor de Literatura Estrangeira, numa conceituada universidade inglesa e estava no Brasil em férias, visitando a família, que se resumia em uma única irmã. 
Ao final daquele dia inesquecível, números de telefones trocados, endereços de e-mails também. Ele e eu tínhamos tanta coisa em comum e não seria um oceano e trinta anos de diferença que iriam nos separar. Foi constante a troca de mensagens, textos, confidências e dicas de livros, pois tínhamos gostos muito parecidos. Quando percebemos estávamos irremediavelmente apaixonados.
Apesar da distância, confessou-me que seu amor por mim, tornara-o quase adolescente outra vez. Para amenizar minha saudade, quebrando regras, deu-me a senha do circuito interno de TV, da universidade onde lecionava. Assim, acessando um site, podia vê-lo chegar e sair todos os dias do trabalho, através da internet. Desde esse dia, acordava muito cedo, devido ao fuso horário, só para observar, antes de ir para meu trabalho, cada um de seus movimentos nas frias manhãs londrinas.
Recordo minha surpresa, quando voltei de férias no litoral. Através da câmera, vi sua imagem na penumbra, entre o acervo de sua biblioteca. Conversamos muito. Ele confidenciou-me, que ali entre os livros, sentia-se com alma de passarinho e se imaginava vindo ao meu encontro, viveria para sempre em meus braços...  Nesse dia, recitou-me um verso de Camões —"Mais servira, se não fora/ para tão longo amor tão curta a vida." Ao final, contou-me de uma grave doença, da cirurgia marcada, do seu desejo de que eu fosse a guardiã de todos os seus livros...
Vi todos os meus sonhos se esvaindo, ao acompanhar dia após dia, através da tela de um computador, a imagem do meu amado professor debilitar-se aos poucos. Apenas o brilho dos olhos permanecia inalterado. Quando conversávamos nos intervalos do tratamento, fazia de tudo para me ver sorrir. Se percebia tristeza em minha voz, se angustiava ainda mais. Mergulhei no fundo de minha alma e achei forças para não demonstrar, pois na verdade, juntamente com ele, eu também morria...
Aquela tarde nem notei a luz desaparecer. Quando o sol retornou derramando seu dourado em meu quarto, pressenti terminada minha espera. Inacreditável o que senti. Existiria solidariedade na dor? Não tive fome, sede ou ânimo para coisa alguma. Seria isto o que chamam de sintonia?  Senti a dor do meu amor em seu leito de morte, enquanto eu ardia em febre aqui do outro lado do mundo. Os calores do seu corpo se esvaindo, me aqueciam a milhares de quilômetros distante.
Hoje faz um ano... Uma onda quente de saudade envolve todo o meu ser. Anoitece, quando finalmente ouço o lamento do interfone. Recolho a caixa dos Correios.  Antes de abrir o envelope, respiro fundo, apertando-o contra o peito, para depois rasgá-lo impaciente. Ao pousar os olhos sobre o papel um sentimento misterioso me faz estremecer... Então minhas lágrimas molham as páginas do décimo segundo livro, ao ler a sua última revelação...

Autora: Maria Mineira - São Roque de Minas/MG