domingo, 19 de abril de 2015

Terceiro Concurso do Blog - Texto 13: Encontro

I
Todas as mesas estavam ocupadas. Muitas famílias em mesas com mais de dez cadeiras, comentando situações que eram, na maioria das vezes, motivo de muito riso.
Casais idosos, serenos, comendo em silêncio, como se estivessem sós.
Jovens, sentados juntos, usufruindo do momento, onde o que menos importava era o alimento colocado sobre a mesa. As carícias, os olhares ternos, alimentavam bem mais que aqueles pedaços de pizza, semiabandonados.
Garotinhos, já saciados, brincando de pega entre as mesas, com os filhos das diversas famílias que, antes daquele momento, nunca haviam se visto.
Os garçons, no melhor estilo italiano, repassavam aos berros os pedidos dos clientes a fim de melhor atendê-los...
—Mais um chope no capricho!
—Duas cocas zero, gelo e limão!
—Uma portuguesa gigante, sem cebola!
—Uma brotinho calabresa!
Acordei do torpor que toda aquela movimentação me envolvia, com o maitre perguntando:
—mesa para quantos? Senhor!
—Para um. Só para mim.
—Por gentileza, venha comigo. (Contornamos o salão e, indicando a porta de vidro, sem desfazer o sorriso de manequim, completou) — se o senhor fizer a gentileza de esperar dez minutos, pode aguardar nesta sala.
Eu não tinha absolutamente nada para fazer, nem a fome era tanta que me fizesse recusar a oferta. Entrei. O som vivo do salão ficou lá fora. No ambiente finamente decorado, com som ambiente digno do nome, várias poltronas cobertas com tecido nas cores da bandeira da Itália, dispostas em locais com indicativo de que, o ocupante deveria ser encaminhado às mesas para uma, duas, quatro, seis ou mais de seis pessoas. Nas mesinhas espalhadas, montes de revistas velhas que davam a impressão de estarmos em sala de espera de consultório médico.
Na categoria “solitário”, além de mim, apenas uma moça de aparência comum, sem nenhum detalhe que chamasse a atenção de alguém.
Na categoria “par” um casal jovem, abraçado, trocava carícias e beijos furtivos e um senhor, vestido com terno preto e gravata borboleta quadriculada, com uma garotinha de vestido estampado que falava pelos cotovelos e ao fim de cada frase, repetia o bordão — Né, vô?
Pouco tempo depois que eu entrei, o senhor levantou e disse para todos:
—Somos seis. Podemos sentar na mesma mesa como uma família, cada um faz seu pedido e paga sua parte. Que tal? Que é que vocês acham?
Antes que alguém dissesse algo, a lâmpada do bojo pintado com o número 6 acendeu. Concordamos todos e fomos para o salão, ao mesmo tempo em que oito pessoas entravam na sala de espera.
Depois de acomodados, com os cardápios em punho, o senhor falou.
—Mesmo sendo uma família temporária, devemos nos apresentar. Eu sou Armando, vivo “armando” pela vida, enquanto ela não “arma” nada contra mim. (E riu-se do trocadilho mal feito em tom de gracejo). Essa é Mirna, minha neta, companheira de farras de pizza às sextas-feiras.
Fechando o cardápio, o rapaz falou:
—Eu sou Olavo e Bete é minha noiva.
—Eu sou... (a moça e eu começamos a falar, e paramos, ao mesmo tempo)
Com um gesto de mão a moça me estimulou a falar.
—Não. Você primeiro, faço questão.
—Mas você também ia falar.
—É que eu pensei que a ordem das apresentações iria obedecer aos ponteiros do relógio...
—Então, fale.
—Não! Você primeiro, por favor.
—Adulto é tão complicado, né vô?
—Mirna! Que é isso?!
Rimos todos pela espontaneidade da garotinha. Dirigindo-se à Mirna, a moça disse:
—Eu me chamo Letícia. Você sabe o que significa o meu nome?
—Eu não, mas meu avô sabe, né vô?
E seu Armando não perdeu a oportunidade...
—É uma palavra de origem latina e significa Alegria. As pessoas que recebem esse nome, têm o dom de espalhar a alegria, o entusiasmo e o entendimento entre as pessoas por todos os lugares onde passa.
—Eu não disse que meu avô sabia, né vô?
O garçom chegou para anotar os pedidos. Sugeri um vinho para comemorarmos nosso encontro. Letícia e Armando aceitaram.
—Por favor uma pizza quatro queijos e um Chiantti suave. (para Letícia) você me acompanha na pizza? Ela respondeu com um gesto de cabeça fechando o cardápio (eu disse ao garçom) pizza grande.
—Seu Armando falou, uma pizza grande, meio portuguesa meio aliche, e suco de acerola para esta mocinha.
—A nossa é grande, meio frango meio calabresa. Em vez do copo de suco, por favor traga uma jarrinha. Disse Olavo, com um sorriso de cumplicidade para Mirna.
—Posso trazer o vinho agora, senhor?
—Sim, por favor.
Enquanto falávamos com o garçom, um batalhão de auxiliares colocava o antepasto em nossa frente.
—Eu gosto muito dessa azeitonona, né vô? (Disse Mirna com uma azeitona espetada no garfinho de dois dentes). Elas vêm do sul da Espanha, né vô?
—Com licença senhor!
O somelier entregou a taça a seu Armando (o mais idoso tem a prioridade e a competência para avaliar a pureza do vinho).
Num gesto teatral, seu Armando, aspirou o aroma adocicado, girou o líquido na taça de cristal, observou a textura contra a luz e deixou o pequeno gole do vinho repousar sobre a língua antes de engolir...
O desenrolar da cena foi acompanhado pelos cinco expectadores que, hipnotizados, observavam os gestos rituais da degustação. Com o rosto iluminado pela satisfação, seu Armando só pode dizer — Magnífico!
Brindamos à amizade, à alergia, ao amor...
II
Hoje faz três anos que nos encontramos naquela sala de espera da pizzaria. Éramos seis. Seu Armando e Mirna sua neta; Olavo e Bete, os noivos que casaram no fim do ano passado, numa festa belíssima onde seu Armando e a esposa foram padrinhos porque a amizade que começou naquela noite, continua até hoje.
Aquele jantar transcorreu com a harmonia que todos desejávamos. Tomamos três garrafas de vinho e tivemos que levar seu Armando e a neta em casa. Quando ficamos sós, ainda na calçada eu disse a Letícia.
—Eu queria que nunca mais nos separássemos. Eu estou apaixonado por você.
Letícia me olhou com a admiração de quem ouve uma notícia absurda.
—Como é que você pode dizer isso? Acabamos de nos conhecer!
—Você nunca ouviu falar em amor à primeira vista?
—Mas você não me conhece. Nem sabe quem sou, o que faço, se sou solteira, casada, viúva, se tenho filhos, se sou uma criminosa fugitiva ou uma assassina em potencial.
—Que importância tem isso agora. Para mim, você acabou de nascer. Não tem passado, só futuro e o seu futuro faz parte do meu, porque a partir de hoje eu não existirei sem você. Nem pense para responder... Você quer casar comigo?
—Você está me deixando mais tonta que o vinho. Ninguém decide a vida assim, de uma hora para outra.
—Mas nossas vidas já fazem parte uma da outra. Estamos unidos para sempre... Nosso encontro estava escrito nas estrelas...
Rimos os dois da cena insólita. Estávamos na frente da casa do seu Armando, ela sentada no banco do carona do meu carro, com os pés na calçada onde eu, ajoelhado, mantinha a sua mão direita entre as minhas em posição de súplica...
—Vai menina! Diz de uma vez que aceita. Não é isso que teu coração está mandando?
A voz de dona Margarida, vinda da silhueta projetada da janela aberta era como um coro de anjos.
—Está bem, seu louco, eu também estou apaixonada por você... Fui conquistada por seu olhar de cachorro pobre quando disse que achava que as apresentações deveriam seguir os ponteiros do relógio.
Rimos muito dessa observação e ficamos embevecidos na contemplação mútua, puxei-a para mim e, de pé, na rua deserta, trocamos o primeiro e mais ardente beijo de amor, sob os aplausos de dona Margarida.
Rimos naquela ocasião e ainda hoje, todas as vezes que lembramos da cena...
Quando terminar o expediente eu vou buscar o ramalhete de flores do campo que encomendei. Minha cesta de papel está cheia de rascunhos dos versos que tentei fazer durante todo dia.
Como é difícil versejar. Como eu gostaria de ter a facilidade, que tem o meu amigo poeta Paulo Moreno, para colocar em poucas palavras e dentro da métrica e rima, o imenso amor que sinto, mas que não sei dizer. Pensei até em ligar para ele para pegar umas dicas, mas assim os versos seriam dele, não meus e, não é justo mentir para a pessoa que tanto amo.
Finalmente, achei menos ruim, o soneto que fez temer os ossos de Olavo Bilac.
Li para seu Armando (que vai ser nosso padrinho de casamento, junto com a esposa que foi a minha fada madrinha, na cena da calçada). Ele achou uma maravilha, mas a generosidade dele é maior que o seu bom gosto e senso crítico. Preparei um cartão e imprimi com laser dourado...

L E T Í CI A

És o amor que sempre sonhei,
Em ti, se revela a mais pura alegria,
És Letícia, no nome e no ser,
És o melhor presente que ganhei.

Amei-te desde o primeiro instante,
Amei-te e amo, a cada dia mais,
Amor sublime que me satisfaz,
Que me transforma em eterno infante.

Quero viver contigo, cada dia,
Dividir, somando, a alegria
De saber que nunca haverá nostalgia.

Amar assim como eu te amo,
É ter a certeza constante
De que nunca estaremos distante.

Estou me sentindo como criança que vai viajar, não consigo pensar em outra coisa que não seja chegar com o ramalhete e entrega-lo à Letícia... Eu tenho a certeza de que ela acha que não estou lembrado da data. Perto da hora do almoço liguei para a casa de seu Armando, mas dona Margarida disse que eles não podem ir conosco para a pizzaria, porque têm outro compromisso... É uma pena...
—Letícia, minha filha, você já varreu essa sala duas vezes.
—É porque eu quero que fique tudo impecável.
—Pode ficar tranquila que seu noivo não vai reparar em nada. Ele só olha para você o tempo todo e você, fica com essa cara de boba todas as vezes que fala nele.
—Mas ele é lindo, não é mamãe? Eu o amo tanto. Desde que começamos a namorar, ele nunca disse ou fez qualquer coisa que pudesse me desgostar... Parece que adivinha meus pensamentos... Nós fomos feitos um para o outro. Apesar de estarmos sempre juntos, nunca deixamos de fazer o que gostamos.
—Mas você não tinha nada que ir se meter no jogo de bola que ele vai toda quarta-feira com os amigos.
—Foi ele quem me chamou.
—Mas não era para você ir. Isso é coisa de homem minha filha, e homem não gosta de se sentir preso, se sentir vigiado...
—Na semana seguinte, dois colegas dele levaram as namoradas e de uns tempos para cá, vamos todas nós.
—Eu vejo as condições da sua roupa quando volta do futebol feminino que vocês jogam.
—E não é melhor assim? As namoradas mantendo as amizades que eles cultivam desde a infância?
—No meu tempo não era assim...
—Mas agora as coisas estão diferentes.
—É. Eu vejo muito bem como são diferentes. Nem precisa me dizer...
—Hoje logo cedo, liguei para dona Margarida convidando para a comemoração, eles vão chegar cedo e vão trazer a neta. Meu bem vai ficar feliz quando chegar aqui e encontrar Mirna, seu Armando e dona Margarida. Eu não falei nada, mas tenho a certeza de que ele nem se lembra que hoje faz três anos que nosso namoro começou... Quando sai da repartição comprei o vinho Chiantti. Só falta ligar para a pizzaria para trazerem as pizzas quatro queijos, portuguesa, frango, calabresa  e aliche como naquela noite...
Vai ser uma grande surpresa para meu bem...

sábado, 18 de abril de 2015

Terceiro Concurso do Blog - Texto 08: João encontra-se com o amor

João seguiu viagem no outro dia, acrescido dos seguintes companheiros: Mariana, o cavalo escolhido, um cachorro policial cabeçudo com   pelos e olhos amarelos e mais um cargueiro com as coisas da Morena.
O rosto do rapaz parecia de pedra, sem demonstrar emoção alguma. De ruídos e claridade, só dos sapos e pirilampos e ao longe o berro de alguma rês perdida. João estava mudo ao lado daquela pessoa de cabelos levemente ondulados que vestia blusa de gola alta, saia amazona e botas de couro. O que denunciava a mulher era a voz macia e delicada. Mariana aguardou em vão, ouvir palavra de sua boca até que se arriscou:
—Pois bem, seu João Belizário, já está na hora de dizer uma qualquer coisa, aproveita o ar fresco da noite e me explica o motivo do silêncio.
—João admirou o desembaraço daquela moça, que enfrentava de peito aberto a desgraça que se abatera sobre sua vida há alguns meses.
—Dona Mariana, pouco tenho a falar que sirva de proveito. —disse tentando em vão desviar a atenção dela.
Com o correr dos dias, no trotar lado a lado dos cavalos, sem perceber João contava coisas de sua infância, das estradas e matas, das caçadas, causos contados por sua mãe. Sem entender o que se passava, João estranhava o seu falar solto a matar a curiosidade da moça entrando pela sua vida afora... Mariana ria, mostrando uns dentes brancos, entre uma história e outra, provocando-lhe aquele entornar de assunto. Quando parava ela lhe dirigia aquele par de olhos pretos insistindo:
—Fala mais, seu moço! Conta outra daquelas do Malazartes, ou qualquer outra. Você fala pouco. Gosto de escutar histórias de vida, a minha sempre foi tão sem novidades. Você ainda novo já correu mundo.
—Não vale a pena contar tanta coisa, dona moça. Sendo novo ou não a vida vai apagando as lembranças, ou tudo vai se arremedando igual ao que já foi. 
—João Belizário seguiu, a cada dia viajando lado a lado daquela moça em estradas poeirentas, um tanto embaraçado pelo interesse dela. Um dia surpreendeu-se quando a viu aos prantos.
—Se ofendi a moça me desculpa. Não sei conversar, não sei lidar com mulher, não queria ofender ninguém.
—Não é nada com você João... De repente me lembrei daquele homem causador da minha desgraça – murmurou Mariana com um soluço sufocado, disfarçando a emoção que a incomodava – Seu peito arfava descompassado.
—João não conseguiu desviar os olhos dos seios trêmulos sob a blusa branca. Acamparam perto de um riacho quando se escondiam, atrás da serra, os últimos raios de sol. Belizário preparou a fogueira soprando com força num tição, e logo as chamas vacilantes iluminaram os últimos vestígios da tarde num contraste de claro e escuro. Ele se encarregou de cozinhar e pouco depois os dois comeram em silêncio a carne-de-sol que chiava no espeto, o feijão tropeiro e uns pedaços de queijo curado.
—Na madrugada, quando as saracuras entravam em concerto e os sapos silenciavam..., a moça afastou-se por entre as ramagens. Estava longe o dia, despontava um pálido clarão no horizonte. Exposta à solidão da madrugada, Mariana mergulhava nas águas cristalinas e, quando ressurgia, seu corpo reluzia ao clarão da lua, em linhas vigorosas. A pele em arrepios às carícias da correnteza e se abrigava apenas no manto da espessa cabeleira que lhe tocava a cintura.
—Ao perceber um vulto a contemplá–la, soltou um grito de espanto, cruzando os braços sobre os seios.
—Não tenha medo, dona Mariana. Sou eu – disse João, cabisbaixo e sem graça, enquanto a moça tentava apressada pegar as roupas na areia.
Vestida, a roupa amoldou aquele corpo molhado. Ela não ousava erguer os olhos. Saiu apressada quando tropeçou e João segurou–a pelos ombros. Não viu quando a puxou para si num abraço inesperado. Mariana correspondeu e sem timidez deixou–se apertar ao peito forte de João. Suas bocas tremiam na ansia daquele inesperado e primeiro beijo. Um respirar fundo um aperto no coração, mãos nervosas, eletricidade nos corpos, denunciava João Belizário um iniciante ávido no amor...
Com essa madrugada de amor, João não imaginava que a vida pudesse ser tão boa. Pela primeira vez se planejou como uma pessoa normal. Vida junto com Mariana, uma penca de filhos, uma rocinha para tocar, sairia desta vida assassina, pois o amor o humanizara. Com o sol já acima do horizonte, Mariana se antecipara a ele e passara o café a moda tropeira, acordando-o com aquele perfume enfumaçado.
Depois, enquanto Mariana arrumava as coisas pessoais, João dava trato à tropa. Em seguida encilhou os cavalos, carregou os cargueiros. Ajudou a Mariana a montar, sem antes dar-lhe um beijo prolongado. Pensava consigo:
“Não tinha vivido até então, como poderia sair desta vida sem este sentimento!”
Seguiram viagem. De taciturno, João, naquele momento, era só alegria.  A todo instante, se aproximava da montaria de Mariana, pegava em sua mão, alisava seu cabelo, contemplava–a.
“E eu que não a queria como companhia nesta viagem!”
Fazia planos... “vou ajuntar todas minhas coisas e vender para comprar uma terrinha, ou então negociar com o Coronel a parte dele nesta empreita em terras. Fazer roça de milho, abóboras, até um pouco de café. Um bom pasto para amansar as tropas dos Coronéis. Sei que não vai me faltar serviço. Fazer um rancho, tocar a vida com Mariana. Logo eu que sempre quis rodar mundo!”
Sua conversa havia se destampado, a cada canto de pássaro o identificava para Mariana, a cada erva na beira do caminho explicava para ela a utilidade, demonstrando o conhecimento ancestral do povo dos seus pais. A dura viagem tornou–se um passeio agradável.
—Mariana, os pássaros enfeitam o dia como as estrelas enfeitam a noite! O canto deles dá lugar ao brilho delas.
Mariana por sua vez a tudo correspondia com largo sorriso, enfeitado com dentes alvíssimos contrastando com a pele cor de Jambo. Eram apenas os dois. Descuidados, não tomavam conhecimento dos que vinham ao seu encontro e nem de olhos furtivos que os seguiam atrás. As compridas sombras que iam à frente de manhã, desapareciam com o sol a pino, mais tarde cresciam seguindo–os.
Resolveram acampar perto de outro remanso de águas cristalinas. O ritual de desarrear a tropa, cada muar de carga, os burros  sugigando–se, vira não vira, apostava com Mariana, quem fazia a cambalhota inteira sobre  o espinhaço. Foram se banhar juntos, fizeram amor dentro da água. Todo acanhamento da primeira vez agora se transformava em prazer intenso.
—Mariana, a vida vale a pena, não quero mais tirar vidas dos outros! Vou mudar a minha existência de rumo, eu mais você e um monte de bacuris.
Mariana sorriu e o abraçou feliz, chamando-o mais uma vez para o amor.
Estavam casados, ambos tinham visto casamentos de amigos. O deles era diferente. Tinham por testemunha os animais da tropa, o cachorro amarelo, os bugios e papagaios nas árvores. A promessa verbalizada pelo padre e repetida pelos noivos dava lugar aos olhares encantados, vontade de não mais se separarem. A aliança selando o pacto, aqui era desnecessária. Amor infinito enquanto tivessem um ao outro.
A fome bateu, resolveram fazer uma refeição especial para comemorar a nova vida junta decidida por eles, nada mais interessava, eram donos um do outro, só isso que importava.
—Mariana, ouvi um Jaó cantar lá para trás, vou buscá-lo, vai fazendo um arroz caprichado, hoje a boia tem que ser especial. – Afastou-se assobiando o canto do Jaó.
—Mariana, feliz e concentrada nos afazeres, não percebeu o cachorro amarelo que se levantou e foi receber alguém que se aproximava, furtivamente, do acampamento.
—Mariana! Vim te buscar. – Voz conhecida, mas que não era a de João.
Mariana assustou-se, mas acalmou logo em seguida ao ver uma pessoa sua conhecida, era José Cigano, o vaqueiro de Dona Luzia.
—Oi seu Zé, o que faz por aqui? Tão longe dos seus afazeres!
—Vim te buscar Mariana, quero você para mim, não importa que não seja mais moça por causa daquele bandido, senti muito sua partida, não posso viver sem você.
—Desculpe seu Zé, mas o meu coração já tá ocupado, sou agora de João Belizário. Não vou voltar com o senhor não!
Zé Cigano desesperou-se com estas palavras de Mariana, que atingiram diretamente seu coração, perdeu a cabeça e se aproximou da moça agarrando-a. Mariana lutou desesperadamente com unhas e dentes, lanhando o rosto do vaqueiro que não desistia da luta. Por fim, vendo que não conseguiria seu intento, tirou sua faca e esfaqueou várias vezes a moça.
—Se você não pode ser minha, não vai ser de mais ninguém. — As forças de Mariana desvairam-se e ela parou de lutar.
Ao ver o que fizera e lembrando–se de quem era João Belizário, Zé resolveu se evadir rapidamente do local.
Ao escutar o as últimas palavras de Mariana, que só confirmaram suas suspeitas, o assassino só poderia ser alguém conhecido, pois o cachorro não assinalara a presença e nem evitara a aproximação até sua dona.
Ao longe, ainda podia ouvir o galope em retirada de José Cigano.
Não tinha pressa, uma vida inteira dali para frente, para vingar a morte da razão da sua vida.
Primeiro tinha que providenciar a morada eterna para sua amada.  Não sabia dos rituais dos brancos, dos negros e nem dos Kadwel.  Não queria que o corpo dela fosse consumido pelos bichos da floresta ou pelos vermes. Resolveu queimá-lo. Ajuntou lenha, capim seco e colocou as poucas coisas da moça junto ao corpo na fogueira. Ateou fogo e ficou a distância até que tudo virasse cinzas, depois as recolheu e espalhou pela floresta, jogou um tanto no ribeirão onde se amaram pela última vez. Pensou consigo, “tudo não passa de Cinzas.” Coração empedernido.
Resolveu voltar para Montes Claros, por duas razões: devolver as montarias que tinha recebido por pagamento da proteção de Mariana na condução dela ao Coronel, pois tinha falhado, e acertar as contas com o vaqueiro José Cigano. Tinha todo o tempo do mundo, o resto de sua vida.
Seguiu sem pressa, mas os animais sentindo que estavam voltando para casa aceleraram a marcha, João não se importou. Ao cair da noite, sem ânimo para providenciar seu acampamento, avistou ao longe um fogo de alguém que já estava acampado à margem do caminho. Aproximou-se para pedir uma beirada no acampamento. Sob a luz difusa da fogueira, não se reconheceram de imediato. José Cigano tinha atrasado a viagem, aguou a montaria, na viagem desesperada de ida e volta.
Ao se reconhecerem, José Cigano puxou o revólver e de imediato João disparou a cartucheira carregada com chumbo grosso. O braço que tinha a arma virou um cotó e ainda esparramou chumbo pela barriga, mas José Cigano sobreviveu. 
—Moço, você ainda tem outro cartucho aí, use-o atirando na minha cabeça, pelo Amor de Deus.
João, impávido sem nenhuma emoção, com a voz fria falou:
—Não vai ser do jeito que você quer – retalhou a camisa do vaqueiro em tiras e estancou o sangue do braço e da barriga de José Cigano, e o arrastou para longe do acampamento amarrando-o em uma árvore, a outra parte do castigo teria que ser feita à luz do dia.
—No crepúsculo matinal entrou para dentro do mato. Teve sorte, pouco depois estava de volta. Foi até onde estava José Cigano, que se encontrava quase desmaiado, jogou-o sobre os ombros e o carregou para longe do caminho utilizado pelos viajantes. Tinha experiência nisto, o povo do seu pai usava as formigas para limpar ossos utilizados no artesanato. Amarrou–o próximo do formigueiro das "Correição", cortou a orelha em que o vaqueiro tinha um brinco, razão do apelido “Cigano”. Fez um caminho de sangue do formigueiro ao assassino. Esperou o corpo ser coberto de formigas. De quase desmaiado, ficou bem acordado dando urros e gritos horrendos. João ficou alí até se fazer silêncio, não queria que algum viajante viesse salvá–lo.
Depois seguiu o caminho de volta à pensão da Dona Luzia. Não ouvia mais os cantos dos pássaros, e não via o por ou o raiar do sol. Só sombras. Em lento movimento, observava os passos dos muares, as patas traseiras pisavam certinho no rastro deixado pelas patas dianteiras, ficou assim como se nada mais interessasse. Não precisava escolher as pernas das encruzilhadas, pois os animais estavam voltando para casa e eles ditavam a toada da jornada.
Chegou à pensão, não apeou, ficou alí mal equilibrando sobre a montaria. Os animais aflitos para entrar nos campos de sua querência. Dona Luzia viu aquilo e estranhou, mandou que fossem recebê-lo, tiveram que carregá-lo para dentro.
Ao ver Dona Luzia, tirou a orelha com brinco do Cigano do bolso e nada falou. Dona Luzia deduziu o ocorrido. Depois de dois dias de recuperação contou o ocontecido, e disse:
—Estou aqui à disposição, se tiver alguém disposto a vingar a morte do seu vaqueiro, Dona Luzia, estar vivo ou morto é melhor do que estar morto-vivo.
Ficou por ali a espera de alguém que o tirasse desta vida, ou melhor, desta falta dela. Até juntar forças e um pouco de querência para retornar aos seus.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Terceiro Concurso do Blog - Texto 05: A herança do meu tio

Acordara tarde naquela manhã. Ainda sonolento, levantei-me depressa, quando bateram à porta fortemente. Era Matilde, minha tia e vizinha de minha mãe. Nervosa, ela gritava:
—Você não atende mais telefone e nem campainha, rapaz!
—Desculpe-me, mas eu estava dormindo! —respondi meio aéreo e sem entender toda aquela urgência. —O que está acontecendo? —continuei.
—Seu tio está a morrer e lhe manda chamar! —responde a mulher transtornada.
Como se todo o ar na atmosfera tivesse faltado ao mundo, foi assim que me senti. Sem fôlego. Uma espécie de estrangulamento, só que na alma.
Como podia ser? Eu acabara de deixar sua casa na noite anterior. Ríramos tanto. Ele foi se deitar e, segundo ele, ainda em condições de beber no mínimo mais cinco garrafas. No entanto, dissera-me:
—Deixemos para ocasião melhor, quem sabe no seu noivado, heim?
A última imagem do meu tio foi uma piscadela meio jocosa e ao mesmo tempo carinhosa, depois que me disse essas palavras. Havíamos tomado três garrafas de vinho e comido todo o queijo que havia na despensa. Não, não poderia ser —eu repetia enquanto me trocava.
Nem percebi quando Matilde saiu do quarto. Só me dei conta, quando ouvi ao longe o seu choro convulsivo. Tinham sido namorados na juventude e só não se casaram devido à maldade alheia e também por causa de uma promessa religiosa. Deixem-me explicar melhor.
Eles foram criados juntos na fazenda Ribeira, no interior de Minas Gerais, que era do pai dela. Embora todos os considerassem como irmãos, eles não sentiam e nem pensavam dessa forma. O que os unia era uma espécie de amor, diferente do parental. Descobriram cedo demais esse amor, contudo despertaram para o seu perigo tarde demais. Essas são as contradições e, ao mesmo tempo, contrariedades por que passam os homens e as mulheres que amam. As razões pelas quais se ama nunca serão dadas a conhecer, a não ser aquelas que os amantes fantasiam ou inventam e dizem ao fazerem as famosas juras de amor. No entanto, as razões para que não se ame serão sempre dadas pela realidade e brutalidade humana. Normalmente, por pessoas que não cultivaram em seu peito a leveza e doçura dos sentimentos amorosos ou até mesmo a urgência e a imensidão da paixão.
Assim, uma prima torta de Matilde começou a destilar o veneno da mentira, da falsidade. O ingrediente básico desse veneno era a inveja de sua prima, que sempre sentira desde menina. Matilde sempre fora singela, doce e ligeiramente acanhada, o que lhe dava certo encanto, ao contrário de Diva, que não soube cultivar a beleza dos traços que a vida lhe esculpiu.  Diva preferiu os atalhos que também a vida lhe apresentou, embora tivesse em seu nome a chance de se tornar uma mulher excepcional e especial, ainda que mais tarde, talvez. Dessa forma, começou a contar histórias maldosas sobre Matilde e Baltazar-esse era o nome do meu tio.
—Meu Deus, o que estou a dizer, era não! Baltazar é o nome dele! Ele vive e ainda viverá muito!  Preciso me apressar, pois são duas léguas até chegar a casa dele, e eu não posso demorar!
Com o passar do tempo, as histórias sobre Matilde e Baltazar foram se tornando cada vez piores, no sentido de insinuar liberdades e safadezas, que —Diva sabia —ninguém aceitaria que acontecessem, mesmo que todos naquele povoado soubessem que eles eram primos e não, irmãos. O que o povoado não sabia era que o pai de Matilde havia prometido a menina para Jesus e a levaria ainda jovem para um convento, principalmente quando ficou sabendo pela sobrinha dos acontecimentos entre ela e Baltazar. Sabe-se que essa promessa se deveu ao fato de a mãe e a menina terem sobrevivido a um parto muito demorado e a uma hemorragia que quase lhes levou a vida. Assim, quando todos souberam do motivo do afastamento da jovem e do moço, nada puderam, a não ser concordar, além de considerar que o pai estava certo, pois a menina e a mãe deviam a vida ao nosso Senhor Jesus Cristo, amém!
—Como eu gostaria de acreditar em Vós, Senhor! Eu rezaria agora de joelhos e lhe imploraria pela vida de meu tio. Ele não pode morrer, não agora! Ele tem 48 anos só! Só, sim! Só, no sentido de solidão! Ele nunca se casou, nunca entrou numa igreja! Porque, segundo ele, o Senhor roubou-lhe a noiva e a deu a seu filho. Não permitiu que se entregassem um ao outro e tivessem um futuro, coisa que só o amor, no sentido de somente, pode nos dar! Viveram a vida pela metade!
—Eu sou obrigado a concordar com meu tio Baltazar, Senhor! O amor é que nos dá esperança, é que nos faz seguir adiante, ir em frente derrubando todos os obstáculos, inclusive as cercas que nos colocam ao longo da vida! E ele bem que tentou! Eu soube.
Foi há muito tempo, quando ele ainda era bem jovem. Minha mãe me contou que ele saiu um dia a cavalo e não disse a ninguém para onde ia. Ficou dez dias fora.
Muitos anos depois, numa noite em que ele tomou um porre desgraçado, é que ele deixou escapulir que naqueles dias ele ficou de tocaia em frente ao convento, com a espingarda apontada para a porta da igreja que tinha ao lado. Estava só esperando o tal Jesus aparecer para atirar nele, pois tinha decidido que se ele, Baltazar, não podia se casar com a Matilde, Jesus também não.
Depois do sumiço, meu tio nunca mais foi o mesmo e só foi piorando, então. Deixou de sorrir, de falar e só voltou a conversar, segundo ele, depois que minha mãe precisou me deixar aos seus cuidados, pois ela não tinha condições de cuidar de mim. Eu tinha quatro anos. E ele, dezoito.
O povo ficou apavorado, pois como um rapaz que estava perdendo o juízo dia após dia, poderia cuidar de uma criança tão pequenina! Não sei explicar muito bem não, só me lembro de que todo dia, ao acordar, tinha leite e broa de fubá com queijo quentinha para eu comer, e ele me levava todos os dias ao açude para eu tomar banho, isso no verão, é claro! Já no inverno, ele esquentava a água no fogão a lenha e colocava na bacia para eu tomar banho quente. Eu pensava comigo mesmo como pode alguém ter medo de um homem que sabe fazer broa de fubá quente e que todo dia faz um brinquedinho de madeira ou sabugo de milho para eu brincar!
—Ele teria sido um pai amoroso, cuidadoso! Que pena meu, Deus! Por que ele não pode amar e ter uma família como a maioria? Talvez porque ele não fosse como a maioria. Às vezes, penso que ele carrega dentro de si uma maldição, uma espécie de impedimento, que nem ele nem ninguém sabem por quê.  Mas sabe que tem. Meu tio se convenceu disso e nunca mais procurou a Matilde, mesmo depois de saber que ela fingiu adoecimento mental e fugiu do convento.
Dizem que ela tentou encontrá-lo, mas, quando ela chegou para visitá-lo, a família já tinha avisado ao hospital.  E, crentes que ela tinha ficado mesmo louca, internaram-na num hospital grande, de muro muito alto e de gente muito triste, que ora ficavam num silêncio tão mudo, mas tão mudo, que a Matilde começava a gritar só para não esquecer que tinha voz e que ainda existia.
Contou-me também que, quando percebia que ia se perder nos labirintos da loucura, ela tirava a roupa, para lembrar quem era ela, quando voltasse. Porque se ela mantivesse o uniforme de louca, eles não a reconheceriam e a tratariam igual aos outros. E, nua, ela e eles teriam certeza de que aquele corpo, aquela voz eram dela, eram ela. Entretanto, ela me disse também que os médicos nunca entenderam isso e davam-lhe cada vez mais remédio. Exatamente quando ela estava melhorando, eles diziam que ela estava muito ruim.  
—Se tive alguma doença — ela dizia —foi um aperto agudo no coração, que nunca me largou, mas essa tal de loucura, insanidade, essa eu passei longe, mesmo tendo vivido tão perto dela e durante vinte anos!
—Lembro-me ainda da certeza com que Matilde falava isso. Havia firmeza nas suas palavras e brilho intenso nos seus olhos.
Há alguns anos, ela me disse que nunca compreendeu o que a medicina, a psiquiatria e a psicologia sabem da alma humana, pois, quando ela se manifesta, eles dão um jeito de a esconderem de novo, com remédios, com isolamento e com falta de atenção. Ela lembra que até choque levou. Só não ficou tantã de vez, porque sabia quando ia ter as sessões de choque e, assim, fazia um chá com uma mistura de ervas, que ela nunca contou quais eram.  Tomava três goles antes e dois depois e assim, segundo ela, o choque não cumpria sua finalidade.
Quando descobriu o efeito do chá, riu tanto, tanto, que quase a levaram novamente para uma segunda sessão, pois parecia o diabo rindo - contou-lhe um enfermeiro, que lhe dava cigarros de vez em quando e que permitia que o chá fosse feito na cozinha do hospital e levado para ela. Lembro-me de ela dizer também que esse enfermeiro era um homem bom, um homem de raízes, como ela e nossa família. Doeu-me na alma, ouvi-la dizer isso com tamanha naturalidade, após ter sofrido tanto, por terem-lhe tirado o amor e depois a razão, tão precocemente, ainda na sua juventude.
—O que a fez continuar a viver? Nunca tive coragem de perguntar. Acho que não tinha o direito. Mas gostaria muito de saber: o que faz alguém seguir em frente, mesmo depois de perder algo ou alguém que tanto desejara e amara? Algo que fazia tanto sentido para sua vida?
—Meu tio é a pessoa mais importante na minha vida, vejo isso claramente. Aliás, eu soube disso, ainda criança, quando ele fazia rapadura e guardava uma inteira só para mim. Mesmo quando estávamos sem dinheiro e vinham comprá-las, ele dizia que vendera todas.
—Nunca me esqueci de quando fui pela primeira vez à escola e comecei a chorar aflito e desesperado, agarrando-me a suas pernas, pois não queria me separar dele. Ele então assistiu às aulas durante um mês e meio até que eu me sentisse mais seguro. Não preciso nem dizer a confusão na escola e na fazenda por causa dessa decisão dele. Mas nada nem ninguém demoveu meu tio, e todo dia acordávamos bem cedo e íamos à escola. À tarde, nadávamos pelados no açude e à noite dormíamos no mesmo quarto. De vez em quando, eu podia jurar que ele me beijava a face, mas nunca soube ao certo.
—Meu tio, não vá, ainda não! Temos tanto o que fazer! Ainda não aprendi a fazer rapadura, e você ainda não me ensinou a fazer carrinho de boi para o filho que terei, lembra? Esqueci-me das épocas certas para o plantio do arroz, do feijão e do milho! Por favor, não me abandone! Quem vai fazer broa de fubá quente pra mim?
Limpo as lágrimas e entro no quarto do meu tio.
Silêncio absoluto. Tristeza profunda.
Ele me deu a vida dele, pois cuidou de mim até que eu pudesse seguir o meu caminho. E agora o que eu faço para que ele possa seguir o dele?  Eu mal sei viver e, quiçá, o que dizer sobre como ir ao encontro da morte! Seguro-lhe as mãos, frias, moles. Nada parecido com o que tínhamos vivido ontem à noite.
—Como pode ser? Em tão pouco tempo, da alegria para a tristeza, da vida para a morte?
Interrogo ao vazio.
—A Matilde bem que podia fazer um chá que parasse o tempo. E o fizesse voltar exatamente àquele dia em que meu tio foi até o convento. Ela sairia de dentro dele correndo e subiria na garupa do seu cavalo e trotariam pelas estradas da vida, sobreviveriam às curvas do amor e da vida em comum e teriam três filhos. Dois meninos e uma menina. A roça precisa de muitos braços e fortes para ararem a terra e cortarem a lenha. Os afazeres da casa são muitos e monótonos, mas a mulher tem paciência e sabe retirar da vida o melhor, vejam a Matilde.
Mesmo depois de tudo o que passou, ela acorda todo dia às cinco horas da manhã, vai para o hospital e ainda é enfermeira particular nas folgas.
—O que será de Matilde depois que ele se for? A vida já o afastara dela por duas vezes! —O que posso fazer por eles? 
Silêncio profundo. Tristeza absoluta.
De pé, o jovem homem entristecido tosse engasgado e fecha os olhos, enquanto o homem deitado e enfraquecido o observa com alegre surpresa e lhe diz:
—Querido Antônio! Que bom que veio! Pensei que teria que tomar as cinco garrafas de vinho sozinho!  Disse com esforço.
Sorrio. Misto de desespero e alegria, por vê-lo brincar diante do escuro, do vazio, pelo menos é essa a ideia que faço da morte. Não consigo ver beleza, nem leveza! Penso amargurado.
—Não se entristeça, meu filho, a vida é cheia de surpresas e não podemos fugir a elas. Há momentos felizes e há momentos de dor. Não façamos deste nem uma coisa nem outra. Apenas estejamos juntos. Sente-se aqui. Continue segurando minhas mãos. Até que eu me despeça de você e da vida. É só isso que lhe peço. Ah! Tenho outro pedido. Cuide da Matilde, pois ela pode não aguentar. Ela é frágil. Lembra-se do problema dos nervos dela, não deixe que a tranquem naquela gaiola terrível, onde os pássaros não cantam, nem de desespero! Eu nunca entendi por que Deus não quis que ela fosse minha esposa e nem mãe dos meus filhos e, há muito tempo, eu deixei de querer entender o porquê.
—Talvez ela fosse muito melhor do que eu, talvez não fôssemos felizes juntos, talvez eu não a merecesse, quem sabe? O que sei é que nunca deixei de amá-la e foi por amá-la que eu consegui amar você. Todo dia eu acordava e pensava que ela saíra cedo de casa e fora para o trabalho na fazenda vizinha, deixando você para eu cuidar. Então, eu tinha forças para levantar e tirar o leite, fazer a comida, levar você para a escola e, mais tarde, vê-lo tomar a direção da cidade e seguir seu caminho rumo à vida. Então, eu penso que Deus não me deu a Matilde, porque ele precisava te dar um pai, e o escolhido fui eu! Se foi assim, meu filho, eu te digo que posso não ter sido o homem mais feliz do mundo, mas fui o pai mais feliz e orgulhoso do mundo. Posso morrer em paz!
—Não, pai, não vá agora! Não antes de eu lhe dizer que o amo mais do que tudo nessa vida! Não vá antes de eu te dizer que vou aprender a fazer rapadura e broa de fubá quente para os meus filhos! E que, se eu tiver a sorte de encontrar uma esposa, eu vou amá-la como você amou a Matilde, na presença ou na ausência! E também quero lhe dizer que vou contar aos meus filhos o pai maravilhoso que tive e que, só por isso, eu também pude ter filhos!
—Não vá, pai!
Cala Antônio, as frases na garganta.
Por que Antônio não disse nada a ele? Por vergonha?  Por medo dos leitores acharem que é pieguice?  Não!  Antônio nada disse a Baltazar, porque, muitas vezes, na vida, a intenção adia a ação. A palavra se segue ao gesto. E o gosto, normalmente, desfaz-se pelo desgosto.
O susto impede a serenidade. A vida não pressente a morte. E, muitas vezes, a morte vem rápida e a atropela.
Após o enterro, segui para casa e encontrei Matilde desolada. Não teve coragem de ir ao enterro. Já tivera que enterrá-lo tantas vezes, dentro dela.  Também não fora, porque sabia que esse enterro era definitivo, preferiu então ficar com os outros, na memória.
Perguntei-lhe se queria um chá, e ela me disse:
—Só se for um que me faça dormir e ir para junto dele para sempre!
—Então já lhe trago um café! Dei-lhe um beijo na testa e me afastei.  O que dizer numa hora dessas, o que fazer?
 Não tive respostas.
Servi-lhe, e então ela me disse:
—Sabe, Antônio! Eu nunca entendi por que Deus não quis que eu casasse com o Baltazar e fosse a mãe de seus filhos! Hoje, com a morte dele, eu encontrei a resposta. É porque, se eu fosse a sua esposa e ele morresse, eu também morreria e talvez deixássemos nossos filhos órfãos! Então, em vez de deixarmos filhos órfãos, Deus mandou a ele um enteado, que ele amou como a um filho, e eu também. Tu sabes, não é?
—Sim, Matilde, sei o quanto me amas! Mas agora precisa descansar, é um dia difícil para todos nós!
—Sim, eu vou descansar. Venha dê-me um beijo de despedida.
—Ainda incrédulo, aproximei-me dela, mal tive tempo de beijá-la e pude ouvir um suspiro.
Até hoje não sei se de dor, amor ou alívio. Finalmente, estariam juntos, na eternidade, segundo os que acreditam.
—Eu, que ainda não creio em Ti, Senhor! Entristece-me que não tenham estado juntos nem na vida e nem na morte! Mas posso dizer que sou um felizardo! Sou herdeiro de um amor sublimado!

Terceiro Concurso do Blog - Texto 03: Promessa de amor

Apesar da solidão que, às vezes, o incomodava, Nicholas era tranquilo. Jurava que jamais trocaria a sua liberdade por outro relacionamento.
Orgulhava-se de ver sua casa sempre arrumada com tudo no devido lugar. Sabia onde tudo se encontrava, já não mais perdia sua carteira, seu relógio e as chaves que nunca, antes, estavam onde deixava. Ninguém mudava de lugar seu bloco de anotações ou guardava aquele livro que ficava à sua disposição, aberto, exatamente, onde ele havia interrompido sua leitura.
Não mais havia quem lhe criticasse a roupa que escolhia para esse ou aquele evento ou chamava sua atenção pela barba mal feita.
Já não se preocupava com o horário de voltar para casa. Nem precisava, pois não havia ninguém a esperá-lo.
Assim vivia Nicholas depois da separação.
Sempre em casa nos fins de semana. Nem buscava a oportunidade de conhecer alguém com quem pudesse refazer sua vida.
Vivia feliz o Nicholas.
Mas o seu destino estava traçado. Dele, impossível escapar.
Certo dia, foi chamado à sala do chefe e após meia hora de elogios, ganhou uma missão que não teve como recusar. Teria que viajar para longe e fazer a cobertura de um importante Congresso para a revista.
Não seria possível destacar uma equipe. Apenas Nicholas e um fotógrafo, mesmo porque não havia necessidade de outros profissionais, uma vez que na pauta se recomendava apenas fotografias e a entrevista de alguns palestrantes do Congresso.
No dia marcado, chegou ao aeroporto para encontrar com seu fotógrafo e pegar o voo.
A viagem era curta, apenas 2 horas do aeroporto de Vitória ES à Guarulhos SP, mas incomodava-o o tempo de espera que sempre achava um exagero, esperar uma hora para fazer o check-in. Apesar das facilidades do check-in online, Nicholas preferia o guichê, pois sempre havia dúvidas no momento de operar o terminal.
Ali despachava a bagagem e se dirigia para a sala de embarque onde procurava relaxar enquanto esperava o momento do embarque.
Chegando ao destino, ainda teria que enfrentar a fila para receber a bagagem antes de dirigir-se ao ponto de táxi.
Seu hotel ficava bem distante do terminal, o que lhe custou mais de uma hora dentro do táxi. Sentia-se incomodado, pois detestava esses procedimentos. Preferia estar sentado em frente ao seu computador na redação, do que ter que enfrentar o que para ele era um inconveniente. Mas não podia recusar a missão depois de tantos elogios recebidos do chefe.
Uma vez no hotel, procurou relaxar e repousar. Um pequeno jantar no quarto e um bom livro. Restava-lhe somente uma noite de descanso para no dia seguinte estar no centro de convenções cumprindo a sua pauta.
Após o banho, fez a checagem do seu equipamento e desceu para o restaurante. Acompanhado do fotógrafo tomou o café, e em seguida pediu um táxi para levá-los ao local do Congresso.
Já no Centro de Convenções, dirigiu-se ao encarregado de checar a lista dos convidados, apresentou suas credenciais e foi informado que direção deveria tomar para chegar ao local.
Vikey uma jornalista local, bastante experiente e desinibida, notou o desconforto de Nicholas que diante do desconhecido sentia-se perdido.
Logo apresentou-se oferecendo ajuda. Diante da simpatia de Vikey, Nicholas sentiu-se atraído de tal forma que não a deixou mais. Durante todo o Congresso, Nicholas e Vikey estiveram juntos o tempo todo.
No encerramento, certa tristeza se abateu em ambos e decidiram ficarem mais alguns dias juntos, para se conhecerem melhor.
Vikey cancelou os compromissos e ficou de vez com Nicholas no hotel. Passeios por lugares românticos da cidade completaram a felicidade que sentiam por estarem juntos naqueles dias.
O momento de voltar chegou. Não foi uma experiência agradável para nenhum deles. Nicholas queria ficar e Vikey queria viajar com ele. Promessas e planos fizeram para não perderem aquela oportunidade que surgia de serem novamente felizes.
Triste, mas animado pela expectativa de uma nova vida plena de felicidade ao lado de alguém irresistivelmente agradável e sensível Nicholas despediu-se de Vikey retornando ao convívio da barulhenta redação, tumultuada, mas, para ele, aconchegante. Ali, sentia-se em casa.
Naquele ambiente havia encontrado, nos últimos anos, o refúgio que o ajudou a afastar as lembranças da vida frustrante vivida até então.
Algumas semanas se passaram, mas a presença de Vikey, manifestada por telefonemas todas as noites, mensagens trocadas durante o dia, se tornara indispensável. Sequer havia um momento em que seu pensamento não estivesse com ela.
A visita de Vikey à sua cidade era uma questão de oportunidade, mas não podiam esperar mais. Aconteceu, então, em um fim de semana de abril. A chegada do voo que a traria estava prevista para as dezesseis horas, mas Nicholas já estava no aeroporto às 14.
Seu coração disparou ao vê-la surgir, entre os passageiros, em sua direção. Um abraço demorado não foi o suficiente para acalmar seu ser.  Vikey, por sua vez, estava tão agitada que nem sabia o que fazer.
Animados, logo embarcaram no automóvel de Nicholas que a conduziu direto para sua casa. Morava em um pequeno e aconchegante apartamento próximo à praia, local bastante atraente para Vikey que acostumada com a vida corrida e o ar poluído de sua cidade encantou-se com a paisagem.
Foram três dias de passeios, e de amor sem fim. Noites agradáveis na praia observando a lua nova e as estrelas. Estavam irremediavelmente apaixonados.
Algumas idas e vindas, meses se passaram e descobriram que não mais poderiam ficar distantes um do outro.
Foi quando Nicholas propôs à Vikey que se mudasse para sua cidade onde viveriam o amor que os estava unindo. A contra proposta de Vikey foi que ele fizesse o contrário. Nicholas resistiu o quanto foi possível. Contudo, diante da firmeza de Vikey, cedeu.
Munido de toda coragem possível, desfez-se de tudo que tinha e transferiu-se para a cidade de Vikey.
Não foram fáceis aqueles dias de adaptação. Cidade muito grande, trânsito insuportável, clima diferente e tantas outras diferenças que tiveram que ser enfrentadas e vencidas.
Passaram-se meses e finalmente sentiu-se integrado. Pode, finalmente, entregar-se ao amor de Vikey.
Enfrentando e vencendo algumas dificuldades, ambos tudo faziam para fortalecer aquele amor que era tudo para eles.
Foram anos de plena felicidade.
Muitas dificuldades encontraram e venceram. Para Nicholas, o mundo todo estava contra eles Era difícil imaginar que um sentimento tão bonito e puro pudesse encontrar algum tipo de resistência. Tudo fez para superar investidas de terceiros que não cansavam de desejar o fracasso daquele amor tão vigoroso.
Para um amor tão intenso, qualquer dificuldade, por menor que pudesse ser, representava uma grande batalha a ser vencida.
Apesar de todas as barreiras, foram enfrentando e vencendo, uma após outra. Vikey, por sua vez, fazia o possível para superar e concentrar sua atenção ao amor que os unia.
Mas como tudo passa, assim como o tempo, esse amor que parecia incorruptível, que sempre enfrentou e resistiu a tudo, começou a desmoronar.
Tornou-se pesado, cansado de tantas batalhas. Já não havia tanta força para resistir. Foram deixando acontecer e sem a menor reação aceitavam tudo, mesmo sabendo que deviam lutar e vencer e que se não reagissem, tudo acabaria.
Até tentaram. Discutiram, prometeram mais dedicação, mas não havia mais forças para vencer.
A despedida se anunciava.
Certa tarde, num ato, quase de desespero, Vikey abraçou Nicholas e lhe disse:
—Eu o amo e o amarei por todo o sempre, aconteça o que acontecer.
Aquele abraço foi o último.
Passados alguns dias Nicholas se preparava para partir e em uma manhã de quarta-feira, com as malas prontas, foi até o quarto e não teve coragem para uma despedida. Apenas olhou Vikey que mantinha a cabeça coberta, parecendo dormir, mas na verdade apenas procurava esconder-se de si mesma, lamentando a falta de coragem para gritar:
—Fica!

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Agradecimento a ABDL - Academia Bom Despachense de Letras


Caro Professor Ronan Tales de Oliveira.
É sem dúvida uma grande honra e emoção ser mais uma vez homenageado por escritores mineiros, pois sempre se destacaram ao longo da história em vários movimentos literários. Todas as nossas publicações tiveram até hoje, um grande percentual de autores de Minas Gerais e isso só engrandece os nossos livros.
Minas tem uma grande tradição na literatura e hoje apresenta nomes que, sem sombra de dúvida, serão os clássicos do futuro e creio que muitos deles já fazem parte do grupo Gandavos.
Eu tenho cada membro da família Gandavos em conta e alta estima.  É gratificante dividir experiências, somar esforços. Agradeço a atenção e dedicação dispensada por cada autor durante todo esse percurso.  Não tenho palavras para descrever tamanha satisfação. Não fosse o comprometimento de cada um de vocês, nada disso seria possível. Obrigado de coração
Carlos Lopes

Prezado Sr. Carlos Lopes.
¨Fiel escudeiro das Letras, coordenador da coleção Gandavos¨.

A vida é uma convocação constante a cooperação e a colaboração. Como presidente da ABDL ¨Academia Bom-Despachense de Letras¨. Fiquei honrado pela publicação dos textos dos confrades abaixo: escritora Denise Coimbra, Professor Tadeu Araújo e o Geraldo Rodrigues.
O trabalho do escritor, visa em especial, alcançar o coração das pessoas.
O senhor com sua generosidade conquistou o coração de todos nós acadêmicos.
Na busca da verdade, necessitamos ser um profeta incandescente e um escriba apaixonado. Isto porque, a arte de escrever é sempre revolucionaria e comprometedora.
O seu trabalho e de todos os membros que participam da coleção Gandavos é sério e enriquecedor e encantador.
Como escritor sou como vocês, a favor da guarda zelosa da língua e das tradições literárias. Se não podes fazer do conhecimento do seu servo, faça-o pelo menos seu amigo.
A dedicação é um antídoto capaz de vencer o desânimo e a amargura que a todo momento tenta nos persuadir.
As palavras pronunciadas entram pelos ouvidos e as palavras escritas entram pelos olhos e nos encantam. A cultura é um referencial autentico de humanização. É como diz o poeta: ¨sou louco porque o mundo não merece a minha lucidez¨.
Companheiro Carlos Lopes é muito difícil fazer algo de bom sozinho. Você descobriu o vigor perfeito no uso da parceria.

Atenciosamente:
Professor Ronan Tales de Oliveira.
Presidente da ABDL.