domingo, 27 de julho de 2014

Amélia, Laura, Esmeralda, Teresa... - Autor: José Bueno Lima

Música! Ah música! O que seria eu sem você! Sempre, quando acordo pela manhã, tenho uma na cabeça, que cantarolo o dia inteiro. Isso vem desde os tempos da meninice, da juventude, quando cantávamos nas reuniões familiares, ou ouvindo Moraes Sarmento, na Rádio Bandeirantes.
Agora, vieram-me à mente canções que têm como tema nomes de mulheres. Sem dúvida, tenho que iniciar, com aquela que era a mulher de verdade, Amélia. A Laura, aquela da rosa nos cabelos, e o sorriso sempre em flor, passou por aqui. Enquanto isso, a Esmeralda, que devia se casar comigo, lá está na igreja de véu e grinalda. Tomara que o vigário não esteja. A Teresa da praia, que fez o Dick e o Lúcio ter um bate-boca musical, finalmente, ficou decidido. Não é de ninguém. E a Rita, que papel, além do seu retrato, levou a imagem de São Francisco e um bom disco de Noel. A Iracema atravessou a rua sem cuidado, não ouvindo o Adoniram, hoje está lá no céu. Já não é o caso da Marina, pois ela se pintou, contrariando o Caymmi, igual a Conceição, que desceu o morro para subir na vida, e agora quer voltar, arrependida. A Helena, não vem me consolar, porque eu disse para a Doralice que amar é tolice, bobagem e ilusão. A Dagmar, então, toda soltinha dentro de um vestido saco, aprontou uma briga na gafieira, e fez a Madalena perceber, que o mar é uma gota, comparado com o meu pranto. Luciana, a do sorriso de menina, era preferida do Tito Costa, ex prefeito de S. B. do Campo, cuja filha tem esse nome. Os olhos tristes da Carolina do Chico, não são os da Carolina do Seu Jorge, maravilha de menina.
São centenas de músicas com nomes de mulher. Se fosse eu arrolar todas, certamente, daria um livro, ou, quiçá, uma coleção.
Acho que já deu para satisfazer meu desejo.
Quem sabe, oportunamente, eu volte com outras!

Autor: José Bueno Lima - Santo André/SP

sábado, 26 de julho de 2014

A mão amiga - Autora: Chila Alves

   Quatro horas da madrugada. Saio ao portão para abri-lo, fechando bem o roupão para me proteger do frio. Lá fora, o brilho no asfalto molhado. No beiral do telhado, ainda as gotas deixadas pela intensa garoa que cessara de cair. "Quem sabe - penso - hoje o sol apareça trazendo o conforto, um dia com menos frio." Meu filho se despede , com otimista sorriso, saindo para trabalhar.
   Fechando o portão avisto, sentado na calçada, o menino de oito ou dez anos, reparando também que ali se encontra só. Deixando de lado um princípio de receio aproximo-me dele e lhe pergunto o que faz ali... De braços cruzados, não me responde abaixando o rosto para não me olhar. Noto-lhe os cabelos e roupas molhados; em meu peito, uma espécie de alfinetada. Desisto de perguntar mais, só se não gostaria de entrar e tomar um chocolate quentinho com um pedaço de pão. Insiste ele em seu enigmático mutismo. Peço-lhe que me aguarde , que já voltarei com uma reforçada refeição. Resolve então, seguir-me, e à luz da sala, estudo-lhe as feições e os olhos congestionados de quem chorou. Ofereço-lhe um banho morninho e roupas sequinhas, mas ele não quer. Concorda em lavar o rosto enquanto preparo o café. O achocolatado, o pão, os biscoitos, o silêncio quebrado, sua história expressada em "sentimentos molhados", poesia que me aflora, que agora transcrevo para não esquecer... 

           "Caminho sob a chuva sem agasalho
           Minha roupa molhada colada ao corpo
           Não sei se está mais fria a chuva ou minh'alma
           Meus pés se ferem sob o cascalho

           Como se fosse um trapo por torcer
           Continuo com os sentimentos encharcados
           Rumo a qualquer coisa que me ampare
           Debil busco por sua presença para viver

           Mas tolo sou por ter esperança
           Me abandonou sem piedade
           Escolheu a droga para amar
           Ao invés de mim que sou criança"

    
   Nota: 
   "O nome do menino é Antonio. Hoje é um jovem senhor de bem, graças a mão amiga de uma mulher."

   Autora: Chila Alves - Santo André/SP

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Texto: 46 (do concurso) - Diminuto consolo


Uma avezinha ferida pousou aos pés da menininha, que acareciou-a com os dedinhos, aconchegou-a numa caixinha e deu-lhe sementinhas para comer. Vendo que não comia segurou-a com carinho e entregou-a aos experientes cuidados do avô. Mesmo com muitos cuidados a avezinha, de tão fraquinha, "tadinha", não melhorou e desse mundo se foi. Gotinhas morninhas de tristeza dos olhos da menininha cairam, só de pensar na saudade, de imaginar o que teria sofrido a emplumada coisinha em sua breve vidinha, no que de bonito poderia viver...
Oh, avezinha feliz, agora voando sem dor, sentindo em seu livre corpinho a repousante meiguice dos dedinhos da menininha!

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Texto: 45 (do concurso) - A visita de um gato "adolescente"

   Noite alta. O programa especial de domingo na televisão encerrou. Eu e meu marido Marcos, que somos aposentados, nos preparávamos para ir dormir, quando ouvimos um miado... Paro e presto a atenção... o miado se intensifica, vai se achegando pela garagem adentro. Paramos os dois, com um sorriso de cumplicidade, e o miado agora mais alto, para rente à porta.
    -Ora, de quem será o gatinho? - pergunto.
   -Não tem voz de gato pequeno, deve ser um "adolescente!" - brinca o Marcos.
   -Não abra a porta ainda... - disse enquanto ia à cozinha buscar uma tigelinha de leite morno.
   -Já vai acostumar o gato aqui? - pergunta.
   -Ora, é um animalzinho e deve estar com fome! Custa lhe oferecer um pouco de leite?    
   Enquanto sorri respondendo aos meus argumentos, ele abre a porta. E que visão linda, aquela! Apaixonei-me na hora! Marcos tinha razão; era um gatinho "adolescente" totalmente negro e foi logo se esfregando em nossas pernas à apresentar-se, pedindo carinho.
   -Ora mocinho... Não pode entrar aqui... afinal, mal nos conhecemos! ... - exclamei, saindo para depositar a tigela de leite mais para fora.
   -Muito bem senhora! Acaba de adotar um gato! Sabia que agora ele não sairá mais daqui? - observou o Marcos.
   -Sei disso, mas se ele quiser ficar, não tem nada demais... há muito espaço aqui na garagem! ...
   -Mas e os cachorros? Sabemos que não gostam de gatos! ...
   Logo que o bichano perceber, ele mesmo tratará de ir embora. Afinal, já está bastante grandinho  e saberá se cuidar!
   Marcos, vendo que já não havia mais argumentos para me convencer, tratou de calar-se. Olhei para ele e com delicadeza, disse:
   -Vamos, vamos dormir que já é tarde e precisamos descansar.
   Assim que deitamos, logo adormecemos, nosso dia havia sido bastante cansativo, com visitas para almoçar.
    No dia seguinte acordei cedo como era de costume. Levantei quietinha para não acordá-lo. Vesti o roupão e fui aos fundos apanhar o lixo para levar ao cesto, porque o coletor estava para passar. Assim que abri o portão do corredor, os cachorros, um pastor e um collie, saíram á frente correndo para a garagem. Só me dei conta do gato, quando vi o alvoroço. "Meu Deus!" - exclamei largando o saco de lixo e corri preocupada com o gato. A cena que vi, teria sido até engraçada se não fosse minha preocupação com o pobrezinho. Os dois cães, que são altos, de pé ao lado do carro alcançando o teto, olhavam fixamente e rosnavam para o gato, que se abrigou sobre um vaso de orquídeas e de pelos eriçados e dentes á mostra, balançava sua patinha direita no ar em posição de defesa, em direção aos cães. "E agora, que posso fazer?" - dizia eu, para mim mesma. Neste momento, Marcos abriu a janela e vendo a cena, resolveu abrir a porta da sala e chamar os cães, que relutando, decidiram obedecer, depois de muito insistirmos.
   Desci o gato do vaso, sem me importar com a reclamação do Marcos, quando viu que sua flor preferida estava danificada. Nisto, ouvi o barulho do coletor se aproximando e segurando ainda o gato com a mão esquerda junto ao peito, corri para apanhar o lixo e abri o portão com pressa para colocar no cesto.
   Enquanto o coletor o apanhava, cumprimentou-me e brincou: " Que gatinho bonito, dona!" - Surpresa, olhei para o gato ainda seguro pela minha mão esquerda junto ao meu peito e sem graça vi que meu roupão estava aberto, mostrando meus seios através de minha camisola transparente. “Oh Céus!" - exclamei fechando depressa a roupa e voltando-me para entrar e fechar o portão. Só me dei conta que ainda segurava o gato, quando Marcos perguntou da janela se já podia soltar os cachorros. "Ah, espere um pouco!..." Gaguejei e abri novamente o portão colocando o gatinho para fora. Felizmente ele saiu correndo e atravessou a rua entrando pelo vão do gradil de uma das casas. Mais tranquila, pensei que talvez fosse ali que ele morasse.
   Olhei para o Marcos que da janela ainda esperava minha resposta e respondi:
   -Pode! O gato já se foi!

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Assaltos e Sobressaltos

Autora: Marina Alves

Sexta-feira, 7 da noite. Tenho uma reunião marcada e não posso faltar. Saio apressada pela rua. Um sentimento esquisito, um receio inexplicável me vem. Não estranho essa estranha sensação: deve ser a mesma que todo cidadão de bem anda tendo ultimamente.
Sigo pensando que a rua está deserta demais para o horário. Não estará muito escura também? Tanta árvore parece ter diminuído a claridade e a visibilidade para quem transita pelas calçadas. O perigo pode estar aí, atrás de algum tronco, de algum canto de muro, de alguma sombra, a espreitar os mais desavisados.
O fato é que nós, interioranos e, principalmente, os remanescentes de outras gerações e de tempos mais tranquilos, ainda não acreditamos que as coisas mudaram e todo cuidado é pouco. Quem gosta de admitir que nossa pacata cidadezinha, tão boa de viver, não é mais a mesma?
Fico entre a dúvida e a perplexidade: durante o dia ouvi pelo rádio, notícias que, mal posso crer, agora são comuns em nosso cotidiano. Por exemplo, hoje, aqui mesmo onde tenho que passar, numa rua outrora pacífica e sossegada, ocorreu um assalto à mão armada, às 13h, em plena luz do dia. Não bastasse isso, o noticiário ainda reforça “só nesse ponto, nessa esquina, este é o terceiro assalto”... Entre sobressaltos chego à minha reunião. Ufa! Que aventura! Ainda bem que devo voltar pra casa de carona com uma amiga...
Sábado, 8 da noite. Vou à padaria. As ruas desertas mostram um cenário próprio de um centro comercial em horário noturno. De repente eu os vejo. São três tipos esquisitos — eu acho. Penso logo que têm cara de suspeitos. Incrível! Nem sei quem são, mas cismo que estão olhando demais a vitrina de uma loja. Não evito um pensamento fatal: estarão tramando alguma coisa? Inofensivos ou não, acabo por me desviar e apertar o passo...
Segunda-feira, 2 da tarde. Estou de folga em casa. Alguém chama lá fora querendo mostrar equipamentos de segurança. Recebo a vendedora com “um pé atrás”. Ela me explica num longo discurso de “marketing” as vantagens de suas câmeras de circuito interno e a eficácia de seus alarmes. Faz uma explanação detalhada sobre a importância de se investir em segurança
Olho bem a cara da moça. Ela já não me parece tão digna de confiança. Com um conhecimento, em minha opinião, exagerado, ela descreve os últimos golpes da praça. E ainda me diz:
― Você sabe que correu um grande risco ao abrir o portão pra me atender? A coisa não tá brincadeira!
Mil pensamentos atravessam de uma vez minha cabeça. Estremeço: e se ELA também for uma golpista? Por que, não? De repente, os seus produtos, tantos folhetos e tantas condições facilitadas de pagamento me parecem mais uma farsa para engabelar pobres vítimas ingênuas. Serei eu esta vítima?
Subitamente, com uma energia surpreendente me decido: não quero nada, fica pra outra vez, não tenho dinheiro, estou cheia de dívidas no momento, tenho compromisso com meus próximos dez meses de salário, e por aí vai... Vale tudo e qualquer coisa que me livre desta pessoa surgida do nada, que me oferece segurança, mas só Deus sabe com que intenções! Tudo é sempre tão suspeito! Hoje em dia, nunca se sabe...

Autora: Marina Alves - Lagoa da Prata/MG

Página da autora:

http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=64920

Publicação autorizada pela autora

terça-feira, 22 de julho de 2014

Texto: 58 (do concurso) - Somos dez ao todo

    A manhã de domingo está clara, apesar do frio próprio da estação. Abro a porta da cozinha e sinto o vento gelado atingir meu rosto.
   Desde muito cedo, minhas três cachorras estão ansiosas, arranhando a porta para que eu  venha atende-las.  Este é meu horário durante toda a semana e elas não sabem distinguir o domingo, quando eu gostaria de dormir um pouco mais.
   As três são bem cuidadas e respeitadas como deve ser. Tem suas casinhas bem ajeitadas e quentinhas na lavanderia.
   Olho para debaixo de uma escada e vejo seus dejetos perto do ralo. Penso que elas sabem que fazendo alí me facilitam o trabalho.
   O quintal não é muito grande; dividimos entre muitos moradores. Á menos de dez passos de minha porta, há uma pequena edícula onde mora minha irmã mais velha, Ângela, que é deficiente visual. Tem as cachorras como companheiras e amigas. A escada íngreme leva á outra edícula, construída sobre a laje de um pequeno galpão. Ali mora minha irmã mais nova, Isa, que é solteira, com duas cachorras que são seu xodó.
   Pois é... são cinco cachorras ao todo e cada qual, tem sua história. Comecemos pela mais velha das três que ficam no quintal abaixo: Seu nome é Lilica e é a mais brava. Está com quatorze anos e é do tipo tigresa; seu pelo é marrom com listras amareladas. É pequena e muito forte; já foi operada duas vezes de câncer. Fiquei á seu lado, o tempo todo, até sarar. Minha neta a trouxe filhote; havia sido abandonada na rua. Lembro-me da carinha da menina implorando á mim e ao avô, para ficarmos com ela. Logo, não resistimos ao apelo da criança de cinco anos e cedemos.        
   Naquela época tínhamos um cachorro chamado Dois e era do tipo namorador. Ficamos com receio quanto á Lilica. Mas ele era velho demais e logo morreu.
   Quando a Lilica estava com seis anos, apareceu a Nani. Naquela manhã, desde muito cedo, eu estava ouvindo o choro de um cachorrinho. Mas ocupada com meus afazeres, não saí para olhar. Até que minhas vizinhas que conversavam na rua, vieram me chamar para mostrar o que havia dentro de uma caixa de papelão abandonada. Era uma cachorrinha preta e branca, ainda filhote e muito maltratada. Zangada com minhas vizinhas, porque achei que ao invés de me chamarem, deveriam, elas, acudir o animalzinho, entrei em casa. Mas em menos de dez minutos, voltei e apanhei a pobrezinha, dizendo que não tinha culpa pelos humanos serem tão dissimulados. Dei-lhe banho e fiz um curativo em um corte no peito, que estava inflamado. Dei-lhe antibiótico e logo estava curada. Era do tipo pequeno.
   Estávamos acostumados com a Lilica e a Nani, quando Isa veio morar na casa que ela mesma mandou construir. Preocupada em dar conforto às suas duas cachorrinhas, fez a casa bem pequena e deixou-lhes um bom e ensolarado quintal. Nina, a mais velha é dengosa e fofa. Parece um bibelô de tão linda. Tem sua caminha num canto da casa. Só desce a escada, quando vai ao veterinário ou para passear na praça de madrugada. Quando fica no topo da escada olhando para baixo, se confundiria com as nuvens no céu, de tão branquinha e peluda que é. Mel é diferente, é alta e magra, branca e de manchas marrom. Arteira e sorrateira vive "aprontando". Gosta de arrastar sua própria cama e a da Nina, para fora da casa. Não teria problema se isso não acontecesse, também, em dias de chuva.  Assim que a Isa sai para o trabalho, ela desce a escada e abre a maçaneta da casa da Ângela, entra e acomoda-se debaixo da cama.
   E por último, ganhamos a Sol. É mestiça de labrador. É negra e com uma mancha branca na altura do peito. É delicada e dócil. Mas amedronta quem não a conhece com seu latido forte e seu jeito brincalhão, assusta dando a impressão que vai atacar. Pertence a meu filho Daniel, que a adotou quando estava casado. Sua ex-mulher ficou com ela algum tempo, mas logo ameaçou abandona-la, porque não tinha como cuidar. Mais que depressa, pedi ao Daniel que fosse busca-la. É a maior de todas.
   Eu e a Isa deixamos o portão da laje aberto, para que subam e desçam o quanto quiserem para que se exercitem.
   Somos felizes com nossas cachorrinhas e gostaríamos de dizer a todo o mundo que adote e proteja os animais. Afinal, se estão aqui, é porque tem direito á seu espaço!       

domingo, 20 de julho de 2014

O Ceifador e eu

         
Autor: Gerson Carvalho


          Existem dias que seria melhor que não acontecessem, entretanto, pode ser apenas a primeira impressão. Vejamos, eu poderia dizer que sou escritor, mas o mais adequado é dizer que fui. Não consigo escrever absolutamente nada, faz muito tempo.
         Trabalho numa editora, auxiliando na escolha de possíveis livros a serem editados. Encontrei muita coisa boa. O problema é que os critérios do meu chefe não coincidem com os meus. Claro, primeiro o lucro, de preferência alto. Tanto é que livros didáticos de grande tiragem são mandados para impressão na China ou Índia. O tal chefe, na verdade gerente financeiro, é primo de minha mulher e sempre deixa bem claro que só estou empregado devido a um pedido dela. Hoje foi a gota d'água.
        Tinha em mãos um precioso livro de poesias, no estilo do Paulo Leminski. Pois bem,  recomendei sua publicação. O chefete me disse que ninguém compra mais livros de poesias, ou compram muito pouco. Ainda mais de um desconhecido. Logo, seria um fracasso e prejuízo na certa.
         Tentei argumentar:
         - Pense comigo, se você pedir a alguém que lhe cite nomes de grandes autores brasileiros, quase certamente serão citados Drummond, Bandeira, Vinícius de Morais, Ferreira Gullar, por exemplo, todos poetas.
         - E daí? Poesia é coisa menor. Não é considerada literatura rentável.
         - Quanta besteira! Você já tentou fazer um poema? Eu já. Não consegui é difícil pra caramba.
           Neste instante, acabou a paciência do meu interlocutor.
         - Lembre-se que você não passa de um fracassado! Não conseguir algo, não é novidade. Você só está aqui por causa do pedido da Lia.
           Joguei o que tinha nas mãos na cara dele (nem lembro o que era) e saí batendo a porta.
           Fui direto pra casa, encontrando Lia danada da vida comigo. Mal abri a porta foi gritando:
         - Perdeu mais um emprego, que beleza! O Roberto me ligou e disse que você o agrediu jogando um grampeador no seu rosto. Só não perdeu o juízo, porque nuca teve. Com isso, quem continua pagando as contas sou eu! Não aguento mais! Pra mim, chega. Vou me separar de você, seu imprestável.
           Essa doeu! Sai de casa, pensando em ir beber num bar. Mudei de ideia e fui para a rodoviária. Tomei um ônibus para o Rio de Janeiro, com destino à casa do Gustavo, um amigo de infância.
           Ao chegar à rodoviária, peguei um taxi até Copacabana, onde mora o Gustavo. O problema é que ele é engenheiro de uma empresa petrolífera e viajava constantemente.
         - O doutor Gustavo não está, disse o porteiro, não sei quando volta.
           Saí em direção à praia, para pensar o que fazer. Andei em direção ao Forte e acabei por sentar num banco próximo daquele com a estátua do poeta Drummond.
         - Por causa de um poeta como você, arrumei uma baita confusão, disse olhando para o poeta.
         - Falando com a estátua, amigo? Ele raramente responde.
           Tomei um baita susto. O dono da voz era um sujeito ligeiramente calvo, usando óculos, que acabara de sentar-se ao meu lado. Logo foi se apresentando:
         - Airton, esse é meu nome. Na verdade era o nome do antigo dono deste corpo, do qual temporariamente me apossei.
           Tive um calafrio, apesar do fim de tarde abafado.
         - Como assim? Você é algum tipo de maluco?
         - Não, sou um Ceifador, Anjo da Morte, Demônio da Morte, Anjo do Abismo, ou qualquer outro nome que queira me atribuir. Prefiro Ceifador.
           Fiquei mudo. O sol já estava se pondo. O que deveria ser belo, só piorava o meu estado de espírito. Mas, o instinto de escritor falou mais alto.
           Perguntou o meu nome, o que com grande dificuldade lhe falei. Minha vontade era sair correndo dali, mas a curiosidade pelo personagem ao meu lado foi maior.
         - Você vai me matar? Perguntei, sem saber o porquê de falar aquela idiotice.
         - Não, por que? Você quer morrer?
         - É claro que não, respondi. Acabei me animado com a maluquice da conversa e perguntei:
         - Como você atua? O que você faz?
         - Retiro a essência da vida da pessoa, aquilo que chamam alma, e levo até o portal de triagem.
         - E o que acontece lá?
         - Não sei, só vou até aí. Parto para outra tarefa. Existem muitos como eu.
         - Por que parou para conversar comigo?
         - Bom, eu tinha tomado emprestado o corpo do Ailton, que faleceu devido a um enfarto. Um camarada meu encaminhou sua alma até o destino e eu resolvi dar uma volta com o corpo,  e encontrei você tentando falar com o poeta aí ao lado. Pareceu interessante. Não é todo dia que a gente vê uma coisa dessas.
           Eu estava boquiaberto. Não conseguia falar mais nada, apesar de estar curiosíssimo com o tal "Ceifador"
         - Vejo que não está acreditando em mim, disse ele. Eu também não acreditaria, mas você sendo escritor deveria. Que falta de imaginação. Levantou-se a foi andando pelo calçadão.
           Como ele sabia? Talvez seja mesmo quem disse que é.
         - Vou devolver o corpo do Ailton. Desceu para a rua a atirou-se a frente de um caminhão.
           Tomei um baita susto e corri ao seu encontro. Juntou muita gente. O corpo jazia no chão. Num dos bolsos da calça do atropelado estava a carteira com os documentos do Ailton, além do endereço. A perícia chegou e eu fui saindo sorrateiramente. Não estava disposto a prestar depoimento sobre o tal Ailton. Não saberia o que dizer.
           Ao virar a esquina, saindo do calçadão, tive a impressão de ouvir uma voz que dizia "se cuida, até a próxima".
           Tomei um ônibus urbano e chegando à rodoviária comprei uma passagem para São Paulo. Dormi durante a viagem e sonhei com o Ceifador na sua forma tradicional, na figura de um esqueleto com foice e tudo. Disse-me ele:
         - Retome sua vida, volte para sua mulher e principalmente, volte a escrever .Você poderá fundar a sua própria editora e publicar os livros que achar melhor. Estou indo visitar seu tio Ernesto, que vai lhe deixar uma grande herança. Voltaremos um dia a nos ver...
          
Autor: Gerson Carvalho - Santo André/SP
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terça-feira, 15 de julho de 2014

Circuito interno


Autora: Maria Mineira

Ando pela sala a esmo, envolvida por paredes frias. Enquanto um desespero me invade, procuro sua imagem à minha frente. Aquela tela que mostrava o circuito interno de tevê transformou-se no espelho da minha ansiedade e tormento.
Quero de novo a sua presença, preciso desse alívio que não chega. Meus olhos pousam nos onze livros da estante.  Ansiosa ando de um lado ao outro folheando páginas. A vontade é descer e verificar se o carteiro já deixou a encomenda que chega religiosamente no mesmo dia do mês.
Pela câmera, passo o tempo a observar dia após dia. Perco horas a acompanhar a vida de outras pessoas. Vejo tanta vida à minha frente e começo a duvidar do sentido da vida que estou levando.
Nem as lágrimas insistentes conseguem dar vazão a esse sentimento angustiante. Eu, cada vez mais impotente diante dessa tela, onde minha realidade é o contrário de tudo que sonhei.
Jamais esquecerei nosso primeiro encontro naquela livraria. Ironia do destino, ambos disputávamos o último volume de “Memorial do Convento” de José Saramago. 
— O livro é seu.  Gostaria que aceitasse como presente.  Sorriu e convidou-me para um café.
Aceitei meio encabulada diante daquele homem de cabelos grisalhos e olhar terno. Soube que apesar de brasileiro, trabalhava como professor de Literatura Estrangeira numa universidade inglesa e estava no Brasil em férias, visitando a única irmã. 
Falei do meu trabalho como secretária numa multinacional. Conversamos amena e divertidamente a tarde toda. Ao final, telefones trocados, e-mails também.
Ele e eu tínhamos tanta coisa em comum e não seria um oceano e trinta anos de diferença que iriam nos separar. Foi constante a troca de mensagens, textos, confidências e dicas de livros, pois tínhamos gostos muito parecidos.
Quando percebemos estávamos apaixonados. Apesar da distância, confessou-me que seu amor por mim tornou-o quase adolescente outra vez. Para amenizar a saudade, deu-me a senha do circuito interno de TV da universidade onde lecionava. Assim, acessando um site, podia vê-lo chegar e sair todos os dias do trabalho através da internet. Desde esse dia pude observar cada um de seus movimentos nas manhãs londrinas.
Recordo minha surpresa, quando voltei das férias no interior e através da câmera, vi sua imagem na penumbra entre o acervo de sua biblioteca. Confidenciou-me, que ali sentia-se com alma de passarinho. Nesse dia, após recitar-me um verso de Camões – "Mais servira, se não fora/ para tão longo amor tão curta a vida." falou-me dos problemas cardíacos, da cirurgia marcada, do desejo que eu fosse a guardiã de todos os seus livros...
Através de uma tela, dia após dia vi a imagem do meu amado professor debilitar-se aos poucos. Apenas o brilho dos olhos permanecia.
Aquela tarde nem notei a luz desaparecer e quando o sol retornou derramando seu dourado em meu quarto julguei terminada minha espera. Muito estranho o que senti. Solidariedade na dor? Seria isto o que chamam de sintonia? Não tive fome e nem vontade fazer coisa alguma. Você doente em seu leito e eu ardendo em febre do outro lado do mundo. Senti a dor do meu amor. Os calores do seu corpo se esvaindo me aqueciam aqui, milhares de quilômetros distantes...
Hoje faz um ano... Uma onda quente de saudade envolve todo o meu ser. Anoitece quando finalmente ouço o lamento do interfone. Antes de abrir o envelope, respiro fundo, apertando-o contra o peito, para depois rasgá-lo impaciente. Ao ler a última revelação um sentimento misterioso me faz estremecer... 

Então minhas lágrimas molham as páginas do décimo segundo livro.




                               Autora: Maria Mineira - São Roque de Minas/MG

Ilustração: Edmar Sales - Custódia/PE


          Publicação autorizada pelos  autores

sexta-feira, 11 de julho de 2014

A menina que contava histórias - Autor: Augusto N Sampaio Angelim


A pequena menina, já vestida para dormir, chamou o pai e disse que, hoje, ela é quem contaria uma história.
Conduziu o pai até o quarto que dividia com a irmã maior, aonde já se encontrava esta e o filho caçula da casa. Depois de mandar todo mundo se deitar, apagou a luz do quarto, deixando apenas uma luzinha acesa e ajoelhada sobre uma das camas se preparou para contar sua história. Com o dedo indicador da mão direita na boca, intimou todos a ficarem em silêncio.
Seriamente, como se fosse uma professora do pré-escolar, falando para seus pequeninos alunos, iniciou sua narrativa dizendo: ¨Era uma vez¨, mas logo ficou pensativa a procura de um enredo para entreter a diminuta assistência familiar. Como as idéias não lhe acudiam, repetiu novamente: ¨Era uma vez¨. Depois dessas palavras quase mágicas desfiou uma história entrecortada de “ai” e “a”, na qual uma bruxa malvada, que se dizia boazinha, pegou três criancinhas, sendo duas meninas e um menino e levou-as para sua casa, situada no meio da floresta e lá, colocou brasas nos olhos delas.
Diante da perplexidade do pai e do medo dos irmãos, a contadora de histórias, logo emendou outro e “ai”, desta feita acalentador, falando que “ai”, apareceu a mãe deles deu uma paulada na bruxa e salvou as crianças. “E ai, todos foram felizes para sempre”.

Autor: Augusto N Sampaio Angelim - São Bento do Una/PE
Publicação autorizada através de e-mail de 04/03/2012

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Suzo Bianco



Caro Suzo Bianco

O grupo de escritores que fazem parte do que carinhosamente tratamos por Família Gandavos, se sente muito grata e honrada de poder contar com generosa concessão de um de seus magníficos trabalhos, a fim de ilustrar a capa do quinto volume da Coletânea de Contos Gandavos, e para o qual deixamos aqui externada a nossa eterna gratidão. Em nome de todo o grupo, obrigado.

Os Contadores


Comentários:

Lindo! Lindíssimo!

Alice Gomes - Porto Velho/RO


A imagem nos remete a visão de um conto de fadas. A cada traço vislumbrei a vida dos  pequenos  heróis que conduzirão o leitor  para as mais belas e doces histórias!
Trabalho maravilhoso!  Gostei muito! Parabéns!
De minha parte agradeço pela gentileza do autor ao ceder a ilustração para o nosso livro.
Maria Mineira - São Roque de Minas/MG



Suzo Bianco é ilustrador e artista plástico

Conheça um pouco do seu trabalho:


quarta-feira, 2 de julho de 2014

O bode da Carminha

Autor: Willes S Geaquinto

Lugar de gente muito simples e boa de prosa é Sobradinho, que fica em São Tomé das Letras. Foi lá que eu e mais uma leva de caipiras estávamos conversando sobre bichos de estimação. Conversa fluindo daqui e dali, cada qual falando dos seus bichos preferidos: pato, galinha, peru, cavalo, tatu, lagarto, pavão, macaco, cachorro, gato, papagaio, até que o compadre Hilário um caipira muito divertido contou-nos esse causo que, de certo modo, podemos classificar como bastante pedagógico. Para manter o clima da narrativa e sua originalidade, passo para ele a palavra, como é de costume nas rodas de contação em Sobradinho:
– conta aí, compadre Hilário...
Ói procê  vê! Tão logo eu e mais a Carminha casamo, a gente foi morá num sítio ali pertim de Treis Pontas, propriedade do tio Zé dos Reis, um irmão do meu pai que tinha muito gosto pelo meu trabaio. Então, eu  tava lá que nem abeia no mel  no disfruti dos primeiros dias de casório, quando na segunda-feira bem cedinho, inhantes deu saí pro cafezá, ela decretô:
 – Óia Hilário, num quero sabê de bicho dendicasa! 
E, pra módi dá o exempro, ela foi logo despachando pra casa davó o Sansão, um gato preto peludo e preguiçoso que a véia tinha dado de presente já fazia um bão tempo. Então,  prela não dizê quieu num tava nem aí pro pobre do gato, inté falei:
 –  Óia Carminha,  presente de vó a gente num devorve não, é farta dinducação.
Ela deu  de  ombro  e me oiô dum jeito quinté arrepiu me deu,  e eu que num sô bobo nem nada fechei a matraca pra nunca mais.
E assim a gente foi vivendo, ano pós ano, numa carmaria que dava gosto de vê. Galinha no galinheiro, vaca no currar, cachorro na casinha, passarinho no terrero...  Mais, cunfórmi diz o ditado, alegria de pobre costuma durá poco, né. E assim, meio que do nada,  o trem desimbestô quando o Nardinho nosso fio deitô lenha na fogueira pra tirá nossosego.  Pra módi oceis  ficá sabendo, nóis démo nome do moleque de Reinardo Cerezo, pra homenageá os jogadô do Atrético Minero, time do coração do finado pai da Carminha.
Pois então, Nardinho já tinha pra mais de cinco anos didadi quando apareceu lá no sítio um cabocro vindo do Córgodouro vendendo uns bode piquitinho qui só. E foi nessa ocasião que a porca começô a torcê o rabo e as oreia tamém,  causdiquê  o menino cismô que queria um bodinho daqueis.  E pra piorá  a situação, o danado  grudô num fiotinho branquinho que nem muquirana em costura de capa véia. Óia, inté prometi  dá uma bola de capotão novinha prele, manum teve jeito não, a querência dele era o bode memo. Até apelei pra Carminha módi vê si ela ajudava a resorve a situação:
 – O quiocê acha muié?
Ela não disse nem sim nem não, resmungô uma coisa quarqué e num passô disso. Como num atinei otro jeito de mi safá daquela pedição do Nardinho, acabei comprando o  tar do bode, que ele foi logo batizando de Danilo.  E pra garanti que o bicho num ia entrá dendicasa, fiz logo um cercadinho pertim do galinheiro pra módi ele tê onficá.
Falá proceis, lá no fundinho dos pensamento inté aventei a esperança diquê a compra do bode ainda pudesse resurtá em arguma boa serventia. Cheguei inté pensá: “agora o Nardinho vai tê o que fazê e vai dexá  de corre atrais das galinha”.  Mais, como desgraça pôca é só sinar de que tá vindo uma ainda maió, o pobrema logo deu o ar da existença  quando o Nardinho disse  pra Carminha que ela tinha que dá mamadeira pro Danilo,  causdiquê ele num tinha a mãe pra dá de mamá. Imagina oceis o que aconteceu... A Carminha ficô tiririca da vida com o menino:
 – Ocê  tá pensando o que seu moleque sambanga, já num basta o tempo que tive que dá de mamá procê, agora vô tê que cuidá de bode tamém?  Ocê pó tirá o burrinho da chuva, não vô mexê uma paia pra oiá esse bicho. Quem mandô tirá ele diperdamãe...
O menino inté assustô com a resposta dela, manum desistiu não:
 – Se o Danilo morrê de fome, Deus vai castigá!
Óia,  foi como se um raio tivesse paralisado a Carminha. Ela ficô ali, pálida dimais da conta quando ouviu o que o Nardinho tinha respondido. Ela que era muita da religiosa e vivia fazendo novena, dezena e até centena pra tudo quanto é santo, entrô pra dendacozinha,  sentô numa cadera véia perdufogão e ficô  lá oiando pro nada por um tempo que parecia num tê fim. Nessa artura do acontecido eu tamém nem me mexi, fiquei ali no terrero fumando um paiero quietinho quinem uma sombra, matutando. Tinha quascerteza que no finar das conta arguma coisa ia sobrá pra mim. E não deu otra, foi acabá de pensá e a muié gritô lá da pordacozinha:
 – Tá vendo seu Hilário, quem mandô ocê compra o bode, seu linguarudo duma figa! Agora ocê pode dá um jeito de dá mamá prele.
Óia sieu tivesse respondido os xingamento da Carminha, eu num sei aondi a gente ia pará, então resorvi jogá água fria na fervura pro bem de todos nóis.
– Faiz o seguinte muié, ocê perpara o leite quieu mais o Nardinho damo de mamá pro Danilo.
– Tá bão, meió assim. Quem pariu o bode que cuidele. Ela disse pondo fim ao conversê que, se deixasse, podia descambá pra deus sabi o quê.
E assim o bode foi crescendo inté desmamá e passá a vive só do pasto e dum cadiquinho di ração, qui o compadre Anibal lá da venda recomendô pra módi o bicho fica mais forte. Passado mais de ano o Danilo já era um bode bem crescido, cum chifre e tudo. E o danado do bicho era muito do inteligente e gostava dum carinho na cabeça que só. O Nardinho gostava dimais da contado do bichinho e ele também tinha muito querê pelo  moleque; se algum estranho chegasse muito perto do Nardinho era inté capaiz de levá uma chifrada do bode.  Ontava o Nardinho, tava tamém o Danilo com toda a sua branquitude e facerice.  Nardinho inté proseava cum o bode e arrastava ele pra todo lugar. Só não levava pra escola e pra igreja, módiquê  nem dona Nastácia diretora da escola e nem o padre Zeca dexavam.
– O bode tamém é fio di Deus, dizia o Nardinho pro padre.
– Criatura de Deus ele é, mas, a igreja é lugar de gente. Já imaginou o tamanho da bagunça se todo mundo resolvesse trazer os bichos de estimação para missa? Respondia o Padre, quasperdendo a paciência com o moleque.
Compadre Irineu, um cabocro amigo meu, me disse certa veiz que chuva forte é uma coisa, tempestade é otra diferente dimais da conta.  E foi isso que lembrei quando começô a chovê naquela noite. Óia, cheguei inté pensá que era o tar do dilúvio vortando. Foi uma ventania daquelas de derrubá arvre, posti e tudo que tivesse pela frente. Era trovão torvejando  e raio relampiando no céu pra tudo qué lado.  Num demorô  e a luz acabô, como sempri acontecia quando chovia mais forte na roça.  Acendemo uma lamparina véia que tava lá pra acudi nessas hora, e a Carminha se pois inté a rezá pra módi pedi proteção pra tudo qué santo.  E foi no meio desse  banzé  dusinferno que escuitemo um baruio  grandi dimais da conta vindo das banda do quarto do Nardinho. Coisa de dá medo inté em assombração.
– Uai, vai lá vê o que aconteceu hómi de Deus! Gritô a Carminha assustada, tremendo que nem vara verdi.
Nessas hora ocê não pensa né, só vai.  Então fui, e assim que abri a pordoquarto tava lá o Nardinho consolando o coitado do bode que tava  todo moiado e tremendifriu. Aconteceu que o bicho no desespero com o baruio das trovoadas, sartô a janela pra dendoquarto do moleque módiscondê do temporar.  Meio ressabiado chamei a Carminha pra vê o acontecido e ajudá consolá o Nardinho quetava assustado pra mais de metro. Então prá nossurpresa e de todos os santo, ela veio e trouxe inté uma tuaia pra enxugá o bode, e mais um cobertô módi elisquentá. No Nardinho ela só passô a mão na cabeça e disse rindo:
 – Até que ele num tem nadibobo nessas hora, né! 
Depois que passô a tempestade e a luz vortô, Nardinho resorveu qui já era hora de levá o bode pro cercadinho dele.  E aí foi que a nossa surpresa dobrô de tamanho. A Carminha, passando a mão na cabeça do bode, disse:
– Meió dexá o Danilo dendicasa até o coitado se recobrá do susto, Nardinho!
O moleque oiô pra mim e eu oiei prele sem entendê nadica di nada. Inté cochichei prele módi ela num ovi:
 – O que será que tá acontecendo? Tem base? Antes da chuva a muié odiava o bode, agora qué que ele fique dendicasa?
Nardinho tamém ficô assim meio desconfiado, mas obedeceu a mãe e levô  o Danilo pra perdufogão de lenha pra módi elisquentá. Carminha arrumô uma coberta véia no chão, o bode si ajeitô e dormiu ali memo. E nóis, depois de todo aquele rebuliço, tamém fomdormi. Antes de fechá ozóio ainda oiei pra Carminha meio cismado.  Contá proceis,  ela tava cuma cara boa dimais da conta que davinté pra disconfiá si aquilo tudo não tinha passado de argum sonho.
Acordei de manhã cedo pra trabaiá e adivinhem só... Isso memo,  tava lá a Carminha cuidandobode, tinha  inté arrumado uma bacia com mio prele. Óia, parecia inté milagre, eu nunca tinha sabido de arguém que mudasse assim da noite pro dia. E o bode parecia que tava gostando de tanta paparicage; tanto isso era véro quielinté  incostava a cabeça na mão dela módi recebe uns afago.  Eu mais o Nardinho num tava crendo no que nóis via, o bode facero dendicasa. Inté perguntei prela o que tinha acontecido, ela sorriu pra mim como nunca tinha feito inhantes.
– Óia Hilário, o Danilo pó fica dendicasa quieu nem ligo, nóis quando leva argum susto sempre tem arguém pracudi, não é memo? O coitado do bode é sozinho e nem recramá ele sabe, então não custa nada a gente acoiê ele dendicasa por uns tempo.
Contá proceis, eu num tava entendendo mais nada da natureza daquela muié,  aquele novo amor pelo bode, então pramódi  evitá quarqué mar entendido dei toda razão prela. Afinar, si a Carminha tava carma, isso era bão dimais da conta, né memo?
– Ocê tá certa Carminha, nóis somo a famia do Danilo, intão temo qui tratá bem dele, né. Pó contá comigo quieu tamém vô ajuda a cuidá dele.
Ela oiô e riu de novo pra mim, um riso bonito dimais da conta.  Enquanto isso o Nardinho insistia módi o bode comê um pedaço de pão cum mantega.

Autor: Willes S Geaquinto - Varginha/MG