sábado, 19 de dezembro de 2020

ROTINA DE UM POLICIAL

 



LARA ALVES

Meus dias são sempre os mesmos, acordo cedo, caminho pelas ruas e observo cada movimento das pessoas.

Mas enquanto caminhava por uma rua, encontrei uma linda moça com um cachorro. Um homem encostado na parede e mais quatro homens que abasteciam um grande caminhão. Até que o indivíduo encostado na parede corre e pega o cachorro da bela moça. A mulher começou a gritar.

Ei, ei! Volte aqui com meu cachorro!

Até que eu interferi.

— Com licença senhorita, quer ajuda para recuperar o cão?

— Sim, por favor. Pago quanto quiser!

Como era um homem pobre, me empolguei ao ouvir a parte do dinheiro.

SOFIA BORGES

Não pensei duas vezes e corri atrás do homem. Corri mais ou menos uns 500 metros e consegui o dócil cachorro da moça são e salvo de volta. Logo depois, entreguei a ela o pequeno animal.

— Muito obrigada senhor guarda! Darei ao senhor uma recompensa de R$1.000,00,  disse ela.

Esse é o meu dever! Eu que lhe  agradeço pela recompensa.

Aquilo para mim foi gratificante, pois além de devolver o cachorro para ela, ganhei uma grande quantia em dinheiro!

Quando acabou meu turno, logo fui para casa dar uma olhada nas contas. Vi que já havia pagado tudo, então tomei banho e fui rapidamente para o mercado fazer minhas compras.

LARA ARANTES

Chegando lá, como minha vida nunca tem sossego, não tinha feito nem metade das compras, quando olhei para a minha esquerda e me deparei com gritos. Não demorei para perceber que era um assalto.

Pensei em continuar o que estava fazendo, já que, devido aos anos de trabalho, em qualquer lugar aonde vou, sirvo apenas apresentando meu distintivo.

Bem, isso era o que eu queria fazer, mas como disse, por mais que já esteja cansado, ainda é meu trabalho, não é? Sou um policial!

Enquanto decidia se comprava um pacote de biscoitos ou corria até os assaltantes, senti um objeto frio encostar em cabeça e descer para a nuca.

Ao olhar para trás, dei de cara com um homem de máscara que apontava uma arma para mim.

LÍVIA HOLIER

Meu primeiro pensamento, foi utilizar meu treinamento para tomar a arma da mão do assaltante. Entretanto, ela estava encostada em mim de um jeito difícil de me esquivar. Me virei lentamente em direção ao indivíduo atrás de mim, mas foi aí que percebi que era menor que eu e não seria difícil controlá-lo.

Fui conversando com ele e dizendo que estava tudo bem, mas em momento algum revelei minha profissão. Sei que nos dias de hoje, é um perigo dizer que se faz parte de corporação policial. Consegui entretê-lo, até que um de seus companheiros o chamou. Ao se virar para ver o motivo de ter sido chamado, consegui apanhar a arma e retirar a máscara que cobria sua face.

Levei um susto quando vi que se tratava de um antigo aluno da academia de polícia. Ele não havia passado nos testes para fazer parte da corporação, o susto foi maior ainda, devido às circunstâncias. Conversei com ele e disse para sair daquele local, mas ele estava tão irritado que...

LARA ALVES

Começou a gritar comigo.

— Você pode até ser um policial, mas não controla a minha vida!

O jovem correu, mas consegui capturá-lo. Peguei meu celular e liguei para meus companheiros, que vieram e me ajudaram a controlar a situação.

Quando fui à delegacia, recebi uma quantia de R$3.000,00 pelo meu serviço! Fiquei muito feliz naquele dia, finalmente pude comprar coisas novas e pagar todas as minhas contas.

Economizei a quantia que sobrou, e nos próximos dias trabalhei ainda mais e ganhei mais dinheiro. O meu salário tinha aumentado devido às pessoas que falaram muito bem do meu trabalho. Finalmente não estava tão pobre!

Acabou que, no final tudo deu certo. A moça recuperou seu cachorro, os assaltantes foram presos e eu ganhei dinheiro o suficiente para sair daquela pobreza.


Autoras:

Lara Alves, Sofia Borges, Lara Arantes e Lívia Holier

Coordenação e revisão do texto: Maria Mineira


quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

NA SOLIDÃO DA RUA

 


- Alberto Vasconcelos

Na rua deserta entre ilhas de luz e sombras os variados sons pareciam tomar corpo. O lamentoso uivo do cão solitário confinado entre muros altos e portões de ferro batido foi trazido pela brisa morna e misturado ao canto intermitente dos quero-queros. Passos apressados de alguém, ressoando cadenciado nas pedras do calçamento, desviou a atenção da ratazana parada na borda do latão de lixo e esse lapso de tempo foi bastante para ser apanhada pela coruja branca de voo macio e silencioso. Vultos alongados, difusos, pareciam perscrutar nas esquinas como se temessem ser identificados, ou sequer vistos, por esse alguém que com passos apressados parecia marcar, como o tic-tac de relógio, o passar dos segundos que se derramavam pelo tempo sem volta e sem destino definido aonde ir. Em raras janelas, cerradas, luzes bruxuleantes entre as frestas insinuavam velas votivas aos pés de oratórios para que anjos da guarda se mantivessem vigilantes contra todo o mal dos demônios noturnos que rondam cabeças nem sempre inocentes. As badaladas do carrilhão anunciaram a hora dos exus, guardiões das ruas, mensageiros dos orixás, despertando no recôndito da memória o som dos atabaques lá para os lados da igreja do Monte. No silêncio sepulcral do quarto, a réstia de luz do poste refletida no espelho do guarda-roupas, dissipava as sombras dos poucos móveis, das cortinas do dossel da cama antiga sem serventia nessa noite de insônia. Sobre a mesa de cabeceira o diário amigo, antigo repositório de ideias, projetos, sonhos desfeitos e amores irrealizados narrados com detalhes, ou simples menções naquelas muitas páginas contidas entre as capas de couro e a fechadura de cobre esverdeado pelo azinhavre.

- José Bueno Lima

Venceslau chegara a menos de dez minuto em seu apartamento, à noite, quando o relógio soava onze vezes. A viuvez de pouco meses de Josefina, e o cenário da rua de sua residência, sempre ao adentrar naquele ambiente, o deixava com o estado de espírito profundamente abalado. Vinha do clube que frequentava o dia inteiro e de modo assíduo, o Cristal Palace de Ribeira de Montemor, sua cidade, pequena, mas tradicional reduto de imigrantes ingleses, no Brasil. O clube, como não podia deixar de ser, mantinha os costumes do longínquo país. Jogara diversas partidas de gamão, e como sempre, ganhou a maioria delas. Entre uma notícia e outra na conversa com os parceiros, ouviu uma que lhe deixou intrigado e embasbacado. Ficou sabendo do acontecido naquele dia na residência de Ernest, amigo de infância, em que sua esposa Diana, fora assassinada, a tiros. De há muito era do conhecimento de Venceslau a situação não pacífica da vida do casal. Ernest tinha a fama de mulherengo, além de ser um bebedor contumaz de whisky. Era voz corrente, em Ribeira de Montemor, que Ernest mantinha uma amante, e dela usufruía desde muito tempo. Diana estava prestes a pedir o divórcio, só não o fazendo, por interferência da filha Dorothy, que tinha certeza de apaziguar o casal. Todos esses episódios deixaram Venceslau mais abalado ainda, já que nutria forte simpatia pelos amigos. Ao se encaminhar para o leito, não deixava de pensar em Ernest, em Diana a quem sentia imensa simpatia. Antes de pegar no sono, havia resolvido de, logo ao se levantar, na manhã seguinte, ir ao encontro de Ernest, a fim de oferecer ao amigo, a ajuda de que ele, porventura, viesse necessitar.

 

- Cléa Magnani

Aquela rua, na qual construíra seu lar com Josefina, já não era mais a mesma... As casas todas vizinhas de parede, permitiam que as discussões fossem ouvidas pelos vizinhos. E nem sempre as “brigas de marido e mulher” ficavam sem que “alguém metesse a colher” como recomendava o velho adágio. Mesmo que disfarçassem, as notícias corriam e ecoavam pelos paralelepípedos da velha rua, como a água da chuva, e num instante, ao menor encontro de vizinhas na feira das quintas feiras na rua de baixo, a notícia corria; e se algum protagonista do “bate boca” noturno passasse por ali, a conversa tomava outro rumo, todos se cumprimentavam efusivamente, com a maior das “inocências, ” porém, era só a “vítima” do assunto virar a esquina, e voltava a ser o tema do dia.  E desde que Josefina morrera, assim de um dia para outro, todos mantinham vigilância acirrada sobre o comportamento de Venceslau. Uns julgavam haver ela morrido de tristeza. Outros, julgavam que alguma grave doença a tivesse acometido. E havia uma pessoa que desconfiava da inocência de Venceslau: Diana, a esposa de Ernest. E esse era mais um dos motivos da discórdia do casal, pois Ernest jamais colocaria em jogo a confiança que tinha a respeito de Venceslau.

Mas agora, com o assassinato de Diana, mesmo aparentando a maior das surpresas, Venceslau voltava a ser visto não com bons olhos por certas pessoas mais íntimas do casal agora desfeito brutalmente. E os falatórios novamente escorreriam rua abaixo, carregando dúvidas. Como teria morrido Josefina? Quem teria assassinado Diana?


- Gabriel Vit

Muito se ouvia falar dos casais, das mortes, mas da recém órfã ninguém se lembrava. Dorothy sempre foi um pouco solitária, em sua casa a única função que ela exercia era a de manter a família unida, mesmo que houvesse uma enorme ruptura ali. Diana não era uma pessoa ruim, tinha bons modos, educação e bons pensamentos também, mas como mãe ela já não ia tão bem como antes. Nos primeiros anos de vida de Dorothy, Diana sempre era vista feliz e se gabando da linda filha que tinha gerado ao lado de Ernest, mas na medida em que a relação se esfriou entre o casal, Diana perdeu o brilho no olhar e começou a ver na filha um pretexto para que o casal não se separasse, desde então o amor de mãe e filha foi perdendo espaço para a obsessão que Diana tinha por Ernest, o amor não havia acabado, mas estava abafado demais para se destacar.

Em segredo, Dorothy chorava em seu quarto e escrevia em seu pequeno diário de bolso coisas sobre a vida de sua família. Um de seus escritos dizia que ela amava seus pais, mas que não gostava mais deles no momento e aquilo tinha que acabar, não importava como acabaria. Era um pensamento preocupante vide a idade que a menina tinha. A vizinhança dizia muita coisa e ouvia muita coisa também, mas o que acontecia de fato no interior do lar daquela família, somente os três seriam capazes de contar, no entanto, Diana fora assassinada, Ernest não tinha mais credibilidade e Dorothy era vista apenas como uma garota desprovida de amor e atenção. Eram muitos pensamentos e pouquíssimas certezas.

- Alberto Vasconcelos

Outra vez na velha casa, insone e sentado na borda da cama com o rosto apoiado nas duas mãos, Venceslau em silêncio rememorava cada momento da sua vida. As imagens projetadas em sua retina alimentavam seu desejo de vingança. Vinte anos na penitenciária não poderiam ficar impunes. Depois de todo esse tempo ele estava de volta à antiga casa para pôr em prática a vingança arquitetada durante a reclusão. No júri popular a que fora submetido apesar da brilhante defesa do Dr. Smith, o corpo de jurados considerou que ele era o culpado por todas aquelas mortes. Seus antigos vizinhos, arrolados como testemunhas da promotoria deram o toque de terror aos seus hábitos mais comuns, todos acharam que tinha comportamentos diametralmente opostos, que era bipolar, em momentos gentil e cordato, um verdadeiro British lovely gentleman¹, noutros um monstro furioso capaz de bater em criancinhas de colo. Os dúbios laudos psicológicos não serviram para atenuar a ideia de que ele era um criminoso em potencial e, assim, sendo considerado sociopata, teve que cumprir toda a pena apesar dos reiterados apelos feitos por seu advogado para ter os direitos às benesses da lei das execuções penais. Mas agora ele estava de volta e todos, absolutamente todos, iriam experimentar a sua vingança, assim como já acontecera com a detestável solteirona Dorothy e sua dúzia de gatos vira-lata. Um por um, todos eles estariam mortos antes que a polícia tomasse conhecimento. Não haveria perdão para nenhum deles. Também ninguém precisava saber que ele enfim iria para sua querida Inglaterra com o diário, cujas anotações poderiam condená-lo à morte. A rua estava deserta quando chegou e da mesma forma estaria quando saísse. Seu tempo de permanência naquela casa empoeirada era apenas para resgatar as suas outras armas favoritas guardadas desde sempre por trás do retábulo do oratório de São Jorge, seu padroeiro anglicano.

1 – Adorável cavalheiro britânico


Créditos:

Autores: Alberto Vasconcelos, Cléa Magnani, José Bueno Lima e Gabriel Vit.

Foto: Carlos A. Lopes


segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A CASA GRANDE AO LADO

 

Gabriel Vit 

 

A família Silva Santos era uma família simples, humilde, interiorana e formada por três homens e duas mulheres. Os pais, Nilva e Benedito, tinham entre 50 e 60 anos, eram pessoas sistemáticas, não ficavam de conversa nem mesmo com os filhos e não faziam outra coisa senão trabalhar. O filho mais velho, Alberto, de 33 anos trabalhava de retireiro em outra fazenda na região oposta à que ele morava, assim sendo, ele só vinha para casa aos finais de semana. Martina e Veríssimo, os gêmeos de 22 anos de idade, não trabalhavam, ao passo que não eram mais crianças, seus comportamentos também os impossibilitavam de serem chamados de adultos. A garota se sentia como um peixe fora d'água por viver no lugar que vivia, culpava seus pais por isso e passava a maior parte do tempo em seu quarto fazendo sabe-se lá o quê. Já Veríssimo era diferente de todos, era bastante simpático e sorridente, no entanto a família não via tais características com bons olhos, já que sorria demais e nunca via problemas em nada, para todos ali, Veríssimo era um tanto quanto louco, sem contar que dizia conversar com um tal Mariano que morava na casa grande ao lado da sua. Uma casa boa, mas que outrora, misteriosamente, fora abandonada.

Por vezes Martina achara que seu irmão dizia aquilo só por implicância, para dizer que tinha um amigo na casa grande e que ela não tinha. Porém, não se prolongou por muito tempo, a família Silva Santos logo descobriria o que estava acontecendo ali. Tudo começou a acontecer quando o Padre José Quitéria batera na porta dos Silva Santos durante uma madrugada de terça para quarta-feira. (20 linhas)

 

Alberto Vasconcelos

 

As batidas insistentes na porta da frente, inicialmente despertaram Nilva. Ao seu lado, Benedito envolto na grossa manta de lã, gargarejava o sono dos justos. Novas batidas. Nilva sentada na cama, viu pelo relógio de cabeceira que o sol ainda demoraria algum tempo para tingir o céu com as cores do amanhecer. Chamou o marido, alguém estava chamando e pelo adiantado da hora, não podia ser boa coisa. Sonolento e de mal humor, Benedito viu pela fresta da janela que era o padre. A notícia de que o filho fora levado para a clínica, desmaiado, foi dita sem meias palavras. Havia suspeita de over dose de entorpecente e eles precisavam ir imediatamente para autorizar os procedimentos médicos necessários para contornar a situação. Mas a história contada pelo padre, não se encaixava dentro da lógica. Por qual razão, Mariano o “amigo” de Veríssimo tinha procurado ajuda na casa paroquial? Qual a ligação do padre com aquele rapaz estranho, raramente visto entrando ou saindo do casarão. Veríssimo falava pouco sobre o amigo, mas era notória a influência que esse exercia sobre o rapaz cujo comportamento era motivo de preocupação para os pais. Parecia que tinha vindo ao mundo em férias. Não demonstrava interesse por nada como se procurasse retardar ao máximo as responsabilidades da maturidade. Agora mais essa suspeita de envolvimento com drogas. Sobre a maca, ligado ao soro e com intensa sudorese, Veríssimo não esboçou nenhuma reação quando Nilva chamou pelo seu nome. Benedito pegou no braço do filho e, pela frieza das suas mãos brancas como cera veio-lhe a certeza de que o filho estava morto. (19 linhas) 

   

José Bueno Lima

 

Morto? Que nada! Aconteceu que Veríssimo, num daqueles encontros misteriosos com Mariano, na casa grande, tarde-noite daquele dia, ficou surpreso com o bar existente na sala. Nunca havia ingerido bebida alcóolica em sua vida. Pegou uma garrafa do licor 43, espanhol, serviu-se num cálice e bebeu, docinho, gostou, bebeu outra dose, depois outra, até ficar completamente embriagado. Devido aos remédios que tomava, a coisa complicou. Mariano fez de tudo para reanimá-lo, até que, desesperado, chamou o SAMU. Então, Veríssimo foi levado para o hospital, e Mariano não querendo comunicar aos pais do amigo, dirigiu-se até a igreja, e contou para o padre José Quitéria, amigo da família. Portanto, esse era o estado em que Nilva e Benedito encontraram o filho, pós uma bebedeira, já sob os cuidados médicos, e que a ignorância deles dava o filho como morto. Veríssimo, na realidade, apesar de demonstrar ser louco, como diziam, sofria de dislexia, isto é, não conseguia ler, escrever, e era limítrofe de autismo, como foi comprovado em exames feitos por psiquiatra, psicólogos e profissionais de ensino. Um aspecto que todos de casa se surpreendiam com ele, era sua facilidade em relação à música. Ele possuía ouvido absoluto, isto é, habilidade em identificar uma nota musical, o que lhe permitia, tocar uma música com grande facilidade ao piano, por exemplo. Outro aspecto interessante dele, como já foi dito, era sua simpatia e comportamento perante as pessoas, usando um palavreado muito bom, principalmente com a ala feminina, cativando a todos. Não era uma figura detestável, como a família o pintava. (19 linhas)

 

Cléa Magnani

 

Tanto ele, como Martina demonstravam sentirem-se, “peixes fora d’água”, e eram considerados “estranhos”, por todos. Martina, se fechava no quarto, e enquanto dormia, seu espírito vagava por esferas onde ela se sentia feliz. Já Veríssimo, mais ligado às coisas da terra, ria muito, e com isso aparentava simpatia por todos, embora, seu espírito inculto revelasse suas dificuldades, através da dislexia, e autismo, mas quando Veríssimo entrou pela primeira vez naquela casa grande e praticamente abandonada, teve a nítida impressão de estar na casa da fazenda onde vivera no século XIX. Ali ele era um escravo, filho de uma escrava, hoje sua mãe Nilva, e do Feitor hoje o Padre José Quitéria. O dono da enorme fazenda era o cruel Sinhô Benedito, hoje seu pai. Sinhazinha, hoje sua irmã Martina, era casada com um caixeiro viajante, hoje seu irmão Alberto. E Mariano, a figura misteriosa da Casa Grande ao Lado, era também escravo.

Após receber violento castigo aplicado pelo feitor, Veríssimo jurou para Mariano que planejava fugir da fazenda. Na noite da primeira chuva da Primavera, Veríssimo acordou Mariano para que os dois fugissem juntos, Mariano, com medo, não quis acompanhá-lo na fuga. Quando o Sinhô Benedito soube da fuga, interrogou Mariano, que acabou contando que sabia da fuga de Veríssimo, mas que não o acompanhou. Foi o bastante para que o Sinhô ordenasse ao Feitor, o maior dos castigos a Mariano, que acabou morrendo no tronco esvaindo-se em sangue, depois da tortura, não antes de jurar que perseguiria Veríssimo até vê-lo destruído. No dia seguinte o Feitor encontrou Veríssimo e o matou com um tiro, para não ver o filho sucumbir no tronco. Mariano cumpriu a promessa. Obsediar Veríssimo. E é o que faz. (21 linhas)

 

 

Gabriel Vit

 

Depois do ocorrido a família voltou os olhares para dentro de sua casa, talvez houvesse ali um pouco de vergonha ou julgamento, eles se olhavam com olhos que compreendiam as particularidades de cada um. O momento não era uma tentativa de mudança, soava como um pedido de desculpas. A vida não mudou rapidamente, Veríssimo aos poucos foi se desenvolvendo na música, começou a participar dos encontros do coral da igreja e tirou Martina do quarto, ela se revelara uma ótima cantora. Linda de voz e aparência, mas triste de expressão, Martina não se encaixava nem fazendo o que achava ter nascido para fazer.

Num domingo enquanto iam para a igreja Benedito e Nilva se encontraram com Mariano, era o primeiro contato entre eles. Para surpresa do casal, Mariano não era jovem, deveria ter por volta de 54 anos de idade, tinha boa aparência, se vestia e andava com toda a pompa, mas classe nenhuma esconderia a maldade que existia naquele homem. Aquele momento fora o suficiente para que o casal decidisse ali mesmo que a casa grande não era o tipo certo de vizinhança que eles precisavam.  Após a missa informaram da mudança. A família se mudaria para a região que Alberto trabalhava. Martina não reclamou. Veríssimo não disse nada, mas ficara sentido, agora que ele estava se encaixando, Mariano era um de seus pensamentos frequentes, para Veríssimo, deixar o “amigo” sozinho era a maior prova de deslealdade. Na alvorada de segunda feira o gêmeo de Martina foi até Mariano na esperança de poder pelo menos se despedir. Veríssimo foi de peito aberto ao encontro do vizinho e não voltou mais para casa. Se morreu ou se fugiu, ninguém nunca soube dizer. Estas pessoas se encontrariam novamente, mas em outras vidas e com outros nomes. Assim como fora no passado, é no presente e será no futuro, até que cada um conclua sua missão no mundo.   (20 linhas)

Glossário:


Retireiro: ordenhador; tirador de leite; parceiro pecuário.

Sistemático: pessoa de princípios rígidos, previsível, imutável.


Autores: José Bueno Lima, Cléa Magnani, Grabriel Vit e Alberto Vasconcelos

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

ESCOLHAS


 


Helena Souza

Quando criança,  a vida foi bem difícil e Vitória sabia disso, pois viveu na pele as dificuldades de ser pobre, morar na zona rural, estudar na cidade, ter que acordar as 4 da manhã e caminhar até o ponto de ônibus. Ajudar em casa após a escola e ainda cuidar de dois irmãos mais novos . Se estava frio ou quente demais não importava, as tarefas e a caminhada eram feitas. A labuta era árdua, mas ela não desistiu. Sua maior inspiração eram os pais. Esses sim, haviam sofrido mais do que ela. Trabalho pesado na roça, vidinha difícil de não ter o que comer em alguns dias, mas eles venceram!

Conseguiram criar os cinco filhos, comprar uma casinha na cidade, aposentadoria no bolso. Ela sabia que uma hora a vida acalma. Depois de um dia longo e cheio de notícias ruins, outras nem tanto... "As pessoas não sofrem a vida inteira",  pensava a mulher, que um dia havia passado por todos esses revezes. A única coisa que desejava era saber a que horas seria isso. Quando a vida e os problemas lhe dariam uma trégua, qual dia a calmaria chegaria. Ela carregava no nome tudo o que  queria  conseguir na vida .

Estava tentando: faculdade, trabalho, noites de estudo. De uma coisa estava certa. Nada até hoje tinha sido fácil de conseguir então ela continuava lutando... Naquela noite, ocasionalmente, estava feliz. As atividades na faculdade estavam de vento em popa, o namorado sempre atencioso e gentil foi buscá-la  na faculdade e eles estavam indo para casa.

Gerson de Carvalho Silva

Vitória considerava os pais como vencedores, entretanto, só ter uma aposentadoria, filhos formados e uma casa era o suficiente? Descobriu-se, aos poucos, muito mais ambiciosa. Lucas, seu namorado, era despojado e nada ambicioso. Tinha preocupações sociais, participava de ONGs de proteção animal e era totalmente apaixonado por Vitória.

Esse conflito de visões de vida iria se acentuando com o tempo. A beleza da moça sempre chamou a atenção, mas ela era indiferente a isso. As coisas foram se alterando aos poucos e  Lucas foi perdendo espaço no coração e mente da moça.

Formou-se em direito e foi aprovada no exame da OAB. Propostas de emprego começaram a surgir. Aceitou trabalhar num grande escritório de advocacia. Começaram assédios profissionais e sexuais. Alguns, apenas flertes. Inteligente, administrava muito bem sua vida.

Foi designada para fazer parte de um processo que envolvia uma empresa com grande número de funcionários. Estava se segurando mantendo os empregos, era a única da cidade. Estava em recuperação judicial e o escritório de Vitória pedia sua falência. Centenas de empregos diretos e indiretos desapareceriam.

Ao saber, Lucas foi tirar satisfações com a namorada. Decepção total. A moça estava empolgada com a possibilidade profissional.

Alice Gomes

"De repente, no meio do caminho, encontraram um cãozinho ganindo de dor. Imediatamente Lucas se abaixara para socorrê-lo, sem perceber que interrompera o que ela dizia, deixando-a falando sozinha".  Ela falava, empolgada, de seus sonhos, de realizações, de casamento, de filhos, de um futuro para os dois, mesmo à custa de sacrifícios. Não se importava, desde que os dois estivessem juntos, mas, bastou  aparecer um cãozinho doente e pronto. Fora o suficiente para que ele se esquecesse de tudo. Nem sequer percebera que ela se calara durante o restante da noite. Não fora o cãozinho, mas a não  importância dada aos seus planos. Nunca mais tocara no assunto com ele.

 Recordando aquela noite, já longínqua, percebeu que ali estava a raiz dos conflitos entre os dois. Nem sabia por qual motivo ainda insistia naquela relação, já tão desgastada. Chegou à conclusão de que, no fundo, Lucas nunca se importou verdadeiramente com ela. Agora, estava preocupado com empregados desconhecidos sendo demitidos e ainda cobrava dela a responsabilidade! Foi a gota que faltava para o copo, já pela boca. E assim, decidida, curta e grossa, pediu que ele se retirasse, pois estava atrasada para uma importante reunião. E que fizesse o favor de nunca mais procurá-la.

Lucas, atônito, ainda quis argumentar, mas o som dos saltos nos pés apressados que se afastavam tiniu em seus ouvidos, selando o final doloroso do amor entre os dois. Tudo terminado. Já a conhecia o suficiente para não mais insistir.

Anos depois, com a vida feita, sucesso absoluto na carreira, casada e sem filhos, com um também advogado, bem mais velho e proprietário de várias empresas, adquiridas em leilões de falências, Vitória preparava-se para intermediar uma grande negociação internacional, ao lado do marido. No saguão do aeroporto reconheceu, num homem de rosto jovial e trajes despojados, ao lado de uma bela mulher e uma linda menininha, o mesmo olhar distraído e ao mesmo tempo curioso, de seu ex-amor.

Maria Mineira

“Meio desnorteada sem saber se ia até onde ele estava para cumprimentá-lo ou se ficava quieta esperando o horário do seu voo. Desistiu, pois não saberia nem o que dizer a Lucas, que estava muito bem  acompanhado, por sinal. Viu a mulher se afastar com a criança rumo ao toilette  e percebeu que ele caminhava em sua direção. Estava trêmula e se viu perguntando a si mesma, onde estava a sua costumeira segurança. Como saber que o reencontraria ali?  E agora?  Ele estava vindo. Como disfarçar para que ele não percebesse que ela  não o havia superado.

O que ele diria se soubesse que ela andava sonhando com ele ultimamente?

— Oi Vitória…que coincidência nos encontrarmos no aeroporto! Nem em um milhão de anos achei que iria te ver aqui.

— Sim! Incrível! E como você está, Lucas?

— Bem, obrigado! Estou indo para os EUA, mais especificamente Seattle. Priscila fará uma cirurgia para transplante de  medula óssea, serei seu doador.  Passaremos o mês todo por lá...

—Entendo, que bom que será o doador para sua filhinha!

— Não, apesar de amá-la como se fosse pai, sou apenas tio, ela é filha do meu irmão caçula, o Matheus, que já deve estar chegando,  estava resolvendo detalhes da viagem e se atrasou. Eu vim na frente com minha cunhada e a Pri.

Vitória sorriu  sem conseguir disfarçar certo contentamento. Lucas contou-lhe  que morava em Manaus coordenava uma ONG, cujo trabalho era  capacitar lideranças indígenas em relação a seus direitos. Também cuidava de órgão de preservação da fauna e flora local.  Confessou que adorou estar esses últimos anos  tão conectado com a natureza e aprendeu  que a vida é muito mais simples do que se imagina e agora tinha  plena certeza que “felicidade não depende do que se tem de material, feliz  é aquele que menos precisa”.

Ele quis saber da vida dela e Vitória  contou do mestrado na USP, logo depois  fez doutorado na escola de direito de Harvard, fortalecendo seu currículo e também foi onde conheceu o marido e  que viajaria para se encontrar com o ele, uma viagem de negócios.

— Eu conheço o felizardo?

— Não. Eu e ele nos conhecemos em Cambridge, bem depois que rompemos.

— Espero que você esteja feliz e  que ele seja menos complicado que eu.  

—Preciso ir, estão me esperando o voo vai sair...

— Espera...

— Fala!

— Nada, não!

  Posso te ligar?

Com o coração apertado Vitória o viu se afastar rapidamente em direção ao portão de embarque, colocando no bolso o cartão que lhe entregara.

Já acomodada em sua poltrona, na primeira classe do avião, questionava a si mesma se teria valido a pena perder o amor de sua vida em troca da realização profissional.

Quando visitava os pais, sentia que eram felizes só por estarem juntos e nunca aceitaram grandes contribuições em dinheiro, pois sempre diziam que  o amor que os unia era o bastante.

Helena Souza

Porém, Vitória sabia o quanto tinha sido difícil conquistar o que queria. Sua vida até então era do jeito que sempre desejou e não estava disposta a desperdiçar tudo que havia conseguido para retornar a uma vidinha medíocre ao lado de Lucas. Vida calma,  tranquila e feliz tinham seus pais.....ela almejava uma vida de viagens, negócios, dinheiro. Isso importava!

Tirou da bolsa o celular e olhou o horário do seu próximo compromisso e sem dúvida nenhuma, pensou: "o amor pode esperar."

 Autores: Helena Souza, Alice Gomes, Maria Mineira e Gerson de Carvalho Silva


segunda-feira, 23 de novembro de 2020

CANAVIAIS

 



Maria do Rosário Bessas

Sebastião, ou Tião como era chamado, era um caboclo alto, forte, de dorso torneado pelo manuseio da foice e do facão que empunhava desde menino no corte da cana, labuta dura que aprendera com o pai desde cedo, na sofrida luta pela sobrevivência. Corriam como ciganos pelos rincões do país afora, buscando emprego nos canaviais em tempos de safra, quando a mão de obra aumentava nas Usinas. Mal o dia começava a clarear, lá estavam nos pontos esperando os caminhões que levavam as turmas, homens e mulheres dispostos a desafiar o sol e os limites de seus corpos, desferindo golpes de foice nas varas cheias de gomos que da noite para o dia, perdiam sua roupagem verde de hastes longas, que se não fossem queimadas pelo fogo, cortavam a pele como navalhas. Sobravam talos enegrecidos, que eram cortados sem piedade e amontoados no meio do caminho, para que outras turmas viessem juntando em feixes e jogando nas carretas que passavam recolhendo a colheita do dia. Era essa a rotina do Tião, que fechara os olhos para outros destinos e só via os canaviais como o jeito de ganhar a vida. Era quase que feliz assim ... Mas chegou um dia  que seu destino começou a mudar. Seu pai se entregou ao cansaço da luta e depôs as armas de ganhar o pão. Não abriu os olhos numa manhã. Sua mãe, nunca mais foi a mesma e foi logo atrás, ao encontro dele. Seus dois irmãos, não quiseram seguir seu rumo e caíram no mundo em busca de outro destino. Ficou sozinho no acampamento, não queria mudar mais de cidade, gostara do lugar. Sabia que onde quer que fosse, a solidão seria a mesma.

Mas naquela manhã, foi diferente. O caminhão chegou com outra leva de canavieiros, e seu olhar curioso observava os que chegavam, quase todos iguais. Corpos brutos e afoitos, cobertos de roupas ásperas, chapéus para tapar o sol e a bendita foice nas mãos. Já ia se afastando para se reunir com a sua turma, quando viu uma mulher se desequilibrando ao descer do caminhão que os trazia. Instintivamente, correu em sua direção para ajudá-la, perguntando se estava bem. Sentiu seu coração dar um pulo quando os olhos negros dela caíram dentro dos seus, e seus lábios deram o sorriso mais lindo que ele já vira na vida. Seus braços a envolveram de leve na cintura, para que ela recuperasse o equilíbrio e mal ouviu o que ela disse ao agradecer sua ajuda. Ficou olhando-a se afastar, imaginando que por detrás daquela vestimenta rústica se escondia uma deusa, que num segundo apenas fora capaz de despertar todos os sentidos que estavam adormecidos no seu corpo embrutecido pela vida dura que até então tinha vivido. Jurou que a veria de novo...

Celêdian Assis de Sousa

Tião recolheu sua foice e seus outros apetrechos que deixara no chão enquanto socorria a moça, tomou o rumo do canavial para mais um dia da dura lida. Absorto em seus pensamentos seguia imaginando como seria encontrar de novo aquele olhar perturbador e aquele sorriso que o enfeitiçou. O dia lhe pareceu longo demais, pois estava muito ansioso para retornar ao acampamento ao fim do dia e quem sabe ter a oportunidade de se aproximar daquela moça. Enfim caiu a tarde e ao voltar lá estava ela, do outro lado de seu alojamento. Estava junto as outras mulheres e alguns dos canavieiros que ainda davam os últimos retoques em suas tendas, as que os alojariam nos próximos dias, durante a colheita da cana. Elas prepararavam alguma comida num fogão improvisado, ao ar livre e por isso mesmo a moça nem se deu conta da chegada de Tião. Ainda trajava as mesmas vestes com as quais chegara naquela manhã, tinha ares de cansaço, mas um cansaço que não lhe tirara aquela beleza e o encanto que acordaram os sentimentos adormecidos nele.

Tião tirou o chapéu e meneando a cabeça, fez um gesto de cumprimento aos novos canavieieros, dizendo:

—Taaaaardeee... e foi então que ela, sorrindo amavelmente, respondeu:

— Taaaardeee... moço! Como foi a labuta hoje?

— Bem normal, moça. Por aqui nunca muda nada, não, a vida da gente é uma peleja danada, é chegar de tarde numa canseira braba, a conta da gente se lavar, encher o bucho com alguma coisinha e bater na cama, pra levantar bem cedo no outro dia e começar tudo traveiz. E ocê, daonde tá vindo, qualé a vossa graça?

— Jacinta, é um prazer te conhecer! E a sua graça, qual é? Imagino que deve ser aqui da região?

— Sebastião, mas todo mundo me trata por Tião. Sou aqui das redondezas, mas pareço cigano, difícil criar laço muito tempo num lugar só — respondeu sem tirar os olhos dela, ainda extasiado pela sua beleza e intrigado com aqueles traços finos e delicados tão escondidos sob aqueles trajes rotos e pelo chapéu maltratado pelo uso. Até o jeito de falar de Jacinta era diferente, jamais vira alguém assim naquele meio em que vivia.

— Pois posso te contar como vim parar aqui numa outra hora? Mas se prepara porque é uma história longa por demais. Agora, se não se importa, vamos terminar de ajeitar nossas coisas por aqui, pois amanhã já estaremos na lida, junto com vocês...

Marina Alves

No minúsculo quartinho de madeira do alojamento o calor era sufocante. Pela única janelinha aberta, — a ver se entrava uma aragenzinha noturna que fosse — Jacinta olhava o céu pingado de estrelas. As três companheiras com quem dividia o miserável cubículo dormiam o sono dos cansados. A rotina ali não era fácil. Em apenas um dia, tinha já visto tudo que a esperava nas terras do multimilionário Dr. Afrânio Coimbra. Trabalhadores vindos de longe, em sua maioria das terras nordestinas, onde a seca castigava e tirava todas as condições dignas de vida. Eram homens e mulheres que chegavam nos Paus de Arara, querendo uma oportunidade no corte da cana. E a ocasião da colheita era a hora, já que a mão de obra era escassa em terra de tanta cana.

Sem poder pegar no sono, Jacinta se revirava no colchão duro de capim. Nem mesmo o peso do facão que manejara o dia inteiro conseguia fazer com que o corpo entrasse em repouso, porque a cabeça fervilhava. Tinha relutado na decisão de se misturar ao Pau de Arara, largar tudo em Aracaju e vir parar nas terras dos Coimbras. Sabia da árdua missão que a esperava. Sabia do sacrifício que teria que fazer para permanecer ali. Mas arrependimento não havia. Mais pensava, mais se convencia: tudo valeria a pena!

 No escuro, Jacinta não podia ver as mãos finas e brancas, mas podia sentir o ardor causado pelo cabo rústico do facão. Nem as luvas grossas de couro tinham impedido que os dedos se ferissem e algumas pequenas bolhas vermelhas se formassem na base dos dedos. Doía! Mas no dia seguinte tinha mais! Precisava estar forte para a empreitada. E pelo que tinha visto, o capataz da turma não deixava por menos. Sempre com aqueles olhos injetados, num vaivém sem fim pelos eitos, gritando que queria pressa, que ali não era lugar de conversa, nem de moleza, que o corte tinha que render, que os caminhões já estavam chegando para recolher as montanhas de cana. Um inferno! Não dava nem pra tomar uma água, respirar, tomar um fôlego... Um inferno, sob o sol de brasa e o suor descendo em bicas debaixo da roupa grossa e quente.

Um galo cantou ao longe. Jacinta se virou para a parede, e de olhos fechados viu o rosto do marido, Tavinho, o bravo sindicalista que tanta admiração lhe despertara. Seria tudo por ele. Não pudera lhe enterrar o corpo perdido ali naquelas terras malditas, mas jurara se vingar. Trazia a morte de Tavinho atravessada na garganta, não iria superá-la até que fizesse o que tinha de fazer. Era por ele que tinha vindo. E tinha encontrado tudo como esperava: a mesma desgraceira humana que já conhecia pelas palavras de Tavinho. Por um momento visualizou o momento em que chegara. Nem como descer de um Pau de Arara ela tinha a manha... Quase se estatelara ao chão, não fosse a gentileza daquele rapaz moreno que tão prontamente a socorrera. Tião... Era o nome dele. No escuro, um sorriso se desenhou no rosto de Jacinta...

João Batista Stabile

Jacinta mal cochilou um pouco, já teve que levantar para o trabalho. Depois de um café, já devidamente trajada para mais uma jornada, se dirigiu ao eito. Ia pensando: tinha já uma ideia sobre onde começar. Sabia que teria que ter muito cuidado, não demonstrar muito interesse no assunto, ganhar a confiança daquela gente primeiro, principalmente, a do Tião, rapaz sério de boa índole e conhecedor de toda a região canavieira e seus problemas. Convivendo pouco tempo em meio aos cortadores de cana, ela percebeu que aquela gente era simples, agradável, mas muito desconfiada, uma palavra ou uma atitude precipitada poderia pôr tudo a perder.

Jacinta estava gostando muito da companhia do Tião. Numa tarde, depois do trabalho estavam sentados no tronco de uma arvore, olhando o sol se pôr. Ela com muito jeito, tocou no nome de Tavinho, perguntou se o tinha conhecido. Tião deu uma resposta vaga e desconversou, mudando de assunto.  Jacinta achou melhor não insistir. 

Passados alguns dias, num domingo à noite eles tinham ido à Vila, estavam numa praça, tomando um sorvete, ela tocou novamente no assunto, Tião, meio encabulado, disse:

— Óia, Jacinta quem é ocê? E o que cê tá fazeno aqui?  Pois, cortadora de cana eu sei que ocê num é. Eu e todo mundo... E o capataz também já tá discunfiado.

Jacinta decidiu contar uma meia-verdade:

— Você tem razão. Na verdade meu nome é Sandra e sou Jornalista em Aracaju, vim para cá pensando em fazer uma matéria denunciando a exploração e as más-condições de trabalho a que vocês estão expostos.

Teve o cuidado de ocultar a segunda parte da história, que era vingar a morte de Tavinho, seu marido.

— Isso é pirigoso, os home do Dr. Afrânio tão por todo lado. Veja o que aconteceu com o Tavinho...

— O que aconteceu com ele?

— Óia, Sandra eu vou te apresentá um cumpanheiro lá do sindicato rural, ele conheceu bem o Tavinho e vai ti contá tudo.

Assim, Sandra conheceu Dirceu, o Presidente do Sindicato Rural, que contou com detalhes da chegada de Tavinho, seu trabalho de conscientização dos trabalhadores, que incomodou o usineiro e, por fim, sobre sua morte num baile na Vila, quando os capangas do Dr. Afrânio simularam uma briga por causa de mulher e um deles o matou. Como sempre, com falso testemunho e provas compradas o assassino ficou livre alegando legítima defesa...

Maria do Rosario Bessas

Sandra não dormiu mais a partir daquele dia da morte de Tavinho. Seu marido era um sonhador incorrigível, com vontade de mudar o mundo. Abriu mão de uma carreira jornalística, quando ao fazer reportagens, começou a conviver com pessoas humildes e exploradas pelos coronéis que tiravam a riqueza do chão, como o garimpo e a agricultura. Tavinho estava sempre visitando fazendas ou plantações onde seres humanos eram explorados e tratados às vezes como escravos. Misturava-se aos trabalhadores e ia fornando grupos, abrindo cabeças, tirando a viseira dos olhos dos coitados e fazendo com que eles lutassem pelos seus direitos. Sua última luta fora ali, na Usina de Açúcar Coimbra, um vasto território colorido pelo verde dos canaviais, com seu cheiro azedo do vinhoto, suas terras recortadas por aceiros onde as águas roubadas dos rios irrigavam o solo pródigo.

O corpo de Tavinho fora encontrado no meio das moitas de cana, retalhado a golpes de facão. Ninguém fora denunciado ou preso, aquela história que inventaram sobre legítima defesa não convenceu Jacinta. Ela sabia o marido que tinha. E com o tempo, ficou conhecendo também a história do Coronel da Usina. Decidiu que já era hora de agir. E como se tivesse pedido a Deus, a oportunidade caiu em suas mãos. Estava sozinha, caminhando pelas ruas da Vila, quando uma figura feminina lhe chamou a atenção. Aproximou-se e ficou surpresa ao ver uma mocinha, quase menina, segurando o rosto com as mãos. Viu que ela chorava baixinho e se aproximou devagar, oferecendo ajuda.

— Obrigada, moca, mas ninguém pode me ajudar. Eu só queria morrer, mas nem para isso tenho coragem.

— Não fica assim, menina, você é tão jovem. Tudo tem jeito nessa vida, me deixa te ajudar. Me conta o que te machucou desse jeito...

E depois de certo tempo, com muito jeito e paciência, Sandra conseguiu arrancar da menina o motivo de suas lágrimas. Nada muito diferente do destino de muitas mocinhas do lugar. Soube que o Coronel Afrânio se julgava dono de tudo que havia em suas terras, inclusive das pessoas, principalmente as mulheres. Quando botava os olhos em alguma do seu agrado, mandava que os seus capangas a buscassem para suas ideias, não importava se pagasse o preço com dinheiro ou com o sangue de vingança.

Sandra soube também que quando as vítimas eram virgens, a cobiça era maior. Encurralada a família, oferecia emprego, moradia, dinheiro e muitas vezes, quando achava que valiam a pena, levava muitas daquelas mocinhas para trabalharem nas suas empresas na Capital. Já era quase uma cultura do lugar, os pais venderem a virgindade das filhas — por medo ou por vontade de melhorar de vida, numa oportunidade de sair daquela miséria infernal. E a escolhida da vez era ela, a pobre Isabel...

Num instante, uma ideia diabólica passou pela cabeça da Jornalista. Era a Sandra de dentro despertando... Descobriu que a menina deveria estar às dez horas da noite na praça da Vila, sozinha, quando um jagunço viria buscá-la para levar até a casa do Coronel. Ninguém deveria ver, ela iria sozinha. Sandra combinou que iria trocar de lugar com ela. Pediu que a encontrasse em seu barraco, onde trocariam de roupas e ela a esperaria ali, até voltar. E que além do dinheiro do Coronel, ela também lhe daria mais, para que ela fosse embora daquele lugar, sem precisar se vender para o maldito velho.

Tudo combinado, Sandra foi para casa e arrumou algumas coisas. Uma última olhada no facão, que achou grande demais para usar sob a roupa. Mas ainda tinha o seu bom canivete, arma pequena, mas cortante como uma navalha. Na hora combinada, Isabel chegou trêmula e assustada, mas se encostou no velho colchão, tremendo como um coelhinho. Sandra vestiu suas roupas, ajeitou o cabelo igual, amarrou um lenço cobrindo boa parte do rosto e se dirigiu para a praça no lugar combinado. Não esperou muito e o velho caminhão logo parou ao seu lado.

— A mocinha aí é a Isabel, fia do Mané Doido?

Sandra apenas concordou com a cabeça, e sem mostrar muito o rosto, fingiu estar com medo e sem saber o que fazer.

— Entra aí. O Coronel tá lhe esperando... Mió fazer as coisa direito sinão seu pai paga o pato. Num vai se arrependê. Muié nova, o patrão paga bem, cê vai vê.

Ela ficou em silêncio até chegar à Casa Grande, onde o dono da Usina morava. Só ouviu latidos fortes de cães, mas percebeu que deviam estar amarrados. Seguiu o jagunço até a porta, quando este deu batidas fortes na madeira. A porta se abriu e ela vislumbrou o vulto masculino do outro lado. Ouviu quando o velho dispensou o jagunço, dando algumas ordens, inclusive a de levar dinheiro para o pai de Isabel. De repente, um frio lhe percorreu a espinha. Enfiou a mão no bolso da saia para ver se tudo estava lá. Então o Coronel voltou...

Sabia, pelas conversas no canavial que ele era chegado em bebidas. Que cada mulher que buscava tinha que servir na cama, com o corpo entre os lençóis e as taças de vinho. Esperou para ver. Quando ele se aproximou e tentou tirar o lenço, ela pediu bem baixinho que diminuísse a luz. Ele pareceu ter gostado. Pegou uma garrafa sobre a mesa e lhe ofereceu a bebida. Ela apenas meneou a cabeça. Sentiu seu corpo gelar e seu estômago virar quando ele a pegou pela mão e lhe mostrou o caminho do quarto. Viu quando ele sentou-se para tirar as botas e deixou a taça de vinho sobre um móvel ao lado da cama.  Nervosa, disse que precisava ir ao banheiro.

— Fique à vontade, menina, não precisa ter medo. Nada do que eu fizer com você vai ser diferente do que algum moleque um dia vai lhe fazer também. A diferença é que se eu gostar, você pode se dar bem.

Sandra não disse nada e foi ao cômodo que ele apontou. Era um banheiro exótico, cheio de espelhos e uma banheira enorme. Tirou seus apetrechos do bolso e escondeu numa gaveta do armário. No bolso deixou apenas um vidro de remédio. Saiu depois de alguns minutos e já o encontrou de roupão, sentado como um rei na poltrona que fazia de trono. Pediu que ela tirasse a roupa. Seu corpo tremeu da cabeça aos pés, mas com voz doce e delicada, disse que talvez bebesse uma taça de vinho, para se acalmar um pouco.

— Mas é claro, coelhinha! Como não pensei nisso antes? Espere só um minutinho que vou buscar a garrafa. E dizendo isso, se dirigiu até a sala, enquanto Sandra apressada, despejou todo o líquido do vidro na taça que ele deixara sobre a escrivaninha. Sentou-se numa cadeira ao lado e de cabeça ainda baixa, viu quando ele se aproximou com uma taça cheia na mão e lhe entregou; na outra mão, a garrafa para completar a própria taça.

— Então, já que você resolveu me acompanhar, vamos fazer um brinde a essa noite — ele disse. Espero que ela seja inesquecível, se não para mim, pelo menos para você.

Dito isso, virou toda a bebida que havia no copo. Sandra, simulando timidez, bebia aos pouquinhos, deixando o tempo passar, enquanto ele a olhava com um jeito estranho, entre intrigado e impaciente... Fez um gesto ordenando que ela tirasse a roupa. Ela se encolheu na cadeira, o que fez com que ele avançasse em sua direção, com as mãos estendidas como se fosse lhe arrancar as vestes. Mas, de repente, ele parou no caminho, com o olhar assustado, quando perdeu o equilíbrio e rolou para o chão.

Sandra ficou uns minutos em silêncio para ver se realmente não havia mais ninguém em casa, pois sabia que era assim que ele gostava, quando tinha suas companhias. Rapidamente pôs seu plano em ação. Foi até o banheiro e pegou o canivete que havia escondido junto com uma pequena tesoura e outros pequenos objetos. Puxou o corpo desfalecido para perto da cama, tirou a blusa e friamente começou a tirar as calças do homem. Intimamente pensava consigo: “Não foram em vão os três anos que eu fiz veterinária, antes de fazer jornalismo.  Castrar animais sempre foi o que mais gostei de fazer nas aulas.  Só que esse animal de hoje não me causa nenhuma compaixão. Nada na vida é em vão. Você não vai acabar com a vida de mais nenhuma mocinha, seu velho imundo. Esse será o preço por ter tirado a vida do homem que eu amava”.

Quando o dia amanheceu, Sandra ainda caminhava entre as fileiras do canavial que parecia não ter fim. Sob as roupas de Isabel vestia uma camiseta nova e uma bela calça jeans, onde guardava dinheiro e seus documentos no bolso. No final das fileiras do canavial, ficou feliz quando viu que Tião a esperava no lugar onde havia pedido a Isabel que lhe desse o recado.

Sandra achou estranho sentir seu coração apertado ao pensar que Tião pudesse não atender ao seu pedido. Mas ali estava ele! Ela sorriu o mesmo sorriso do primeiro dia, só que com um olhar diferente: nele existia paz e uma esperança que antes não havia. Jurou esquecer o passado, principalmente aquela noite. Deixara ao lado da cama do Coronel, uma página onde escrevera: “Lembrança de uma de suas vítimas. Nossas cicatrizes serão iguais”. Era um modo de preservar a vida de Isabel. Sorriu para Tião e estendeu sua mão, oferecendo uma vida nova, em um novo lugar. Ele simplesmente aceitou a sua mão estendida.

Saíram dos caminhos de cana e ganharam a estrada de chão, no sentido oposto ao da Usina. O dia já vinha amanhecendo e os primeiros raios de sol começavam a iluminar o céu. Um carro surgiu de repente, envolto na poeira vermelha e ofereceu-lhes carona. Os dois aceitaram agradecidos e sentaram-se em silêncio no banco de trás.

De repente, o silêncio do dia, foi quebrado pelo ronco inesperado de um pequeno avião.

— Uai, o Coronel hoje está indo embora mais cedo — disse Tião. Deve ter acontecido alguma coisa...

O motorista do carro olhou para o avião que sumia no céu e comentou:

— Já ouvi falar horrores do dono dessa Usina. Dizem que compra tudo com o dinheiro que tem, a honra das famílias, a virgindade das filhas, toma a terra dos coitados e ainda dá fim em quem se nega a vender. Fico pensando se algum dia não aparece um cabra macho e dá jeito nesse demônio.

— Quem sabe — disse Sandra. Um dia talvez apareça. Quem sabe...

Tião e Sandra olhavam o brilho do sol, que há muito não viam, surgindo no meio das árvores. Tião olhou o infinito do azul se encontrando com o asfalto lá na frente e de repente percebeu que havia um outro destino além dos canaviais esperando por eles no final da estrada.


Autores: Marina Alves, João Batista Stabile, Maria do Rosario Bessas e Celêdian Assis de Sousa.