quarta-feira, 26 de julho de 2017

Um Escritor e Tanto!

Meu sincero agradecimento ao amigo e colaborador do Blog Gandavos, Augusto Sampaio Angelim. Foi uma grande satisfação recebê-lo no meu ambiente de trabalho, quando falamos a vontade do nosso livro atual: Gandavos – A alegria de Contar. Angelim demonstrou satisfação pela qualidade do livro e levou uma quantidade de exemplares considerável para o seu município, São Bento do Una, localizado no fértil Vale do Ipojuca, aqui mesmo em PE. A presença do escritor foi essencial e fundamental, pois colegas no meu trabalhos tiveram a oportunidade de conhecer o escritor que se habituaram a ler, ao longo dos últimos sete anos, quando adquirem livros Gandavos,  onde Augusto Sampaio Angelim publica textos, vindo a ser um dos escritores fundadores da Coleção. Que venha o livro de 2018, Gandavos - Histórias de Assombração.
Carlos A Lopes
Blog Gandavos

domingo, 23 de julho de 2017

O Caminho de Machu Picchu

Autor: Willes S Geaquinto

Lá pras bandas do Sobradinho em São Thomé das Letras nas Minas Gerais, o povo é muito cordato, bem humorado, acostumados à contação de causos e acontecidos mesmo que inusitados. Por isso é que dizem que existe história e estória, causos e casos. E quando alguém conta um causo ninguém fica perguntando se é vero ou não, um causo é um causo e pronto!
Verdade ou invenção, o caso é que quem me contou esse acontecido foi um caboclo muito do sabido conhecido por compadre Irineu. Alias, é bom saber que no lugarejo é comum chamar os homens de compadre e as mulheres de comadre, já que todos ali se conhecem de muito tempo, menos compadre Irineu que ninguém sabe de onde veio ou quando ali chegou.
À boca pequena, comentam alguns que ele é meio como um ET só que ninguém sabe em que nave ele veio, já que é mais antigo que o ET de Varginha. É, digamos assim, um personagem envolto em mistério, que parece já ter andado pra todo o cafundó desse mundo de meu Deus. Ouvindo das suas andanças, acho até que já teve lá pros lados de Atenas, já que filosofa como poucos. Pra ter uma ideia do estou falando, tempo desses a caipirada da vizinhança passou horas a fio o ouvindo contar duma tal de Odisseia, onde um caboclo chamado Odisseu viveu mil e uma aventuras até voltar pra casa depois de 10 anos, onde a mulher dele Penélope tinha ficado um tempão esperando a sua volta e resistindo as cantadas da homarada que até brigavam de porrete por ela.
Mas deixemos de trelelê pra ir direto ao causo. Tudo começou quando, numa noite de lua cheia no mês junho de 2001, compadre Irineu acometido de insônia resolveu fazer uma caminhada pra desanuviar a cabeça. Sabe-se lá como, quando ele percebeu já tinha andado tanto que deu de cara com a Gruta do Carimbado, um lugar cheio de mistérios e lendas, que só quem já foi a São Thomé sabe dos causo. Dizem até que o caminho da gruta leva até a antiga cidade Inca de Machu Picchu que fica no Peru.  Surpreso com o lugar onde fora parar, mas, seguindo uma força misteriosa que o empurrava para dentro da gruta, Irineu foi se embrenhando cada vez mais naquele buraco sem fim.
Suando que nem cavalo no arado, foi andando, segurando o chapéu na cabeça cada vez que tinha que desviar da ponta duns cristais que escorregavam do teto da gruta. Não bastasse isso, toda hora tinha que espantar os morcegos que passavam voando rente à sua cabeça. Seguindo cada vez mais para o interior da gruta, levado pela tal força misteriosa foi se embrenhando pelos vãos que iam surgindo e seguindo adiante. E o calor, que era infernal, só foi aumentando até que quando sentiu chegar uma onda de vertigem percebeu que estava levitando em vez de caminhar. E foi assim, como se mergulhasse numa nuvem muito poderosa que o carregava, que quando deu por si estava na boca de saída da gruta, “onde o sol brilhava um brilho de dar dor nos olhos”.
Ali todo sujo de terra e saibro, cansado, com muita sede e ainda atordoado depois daquela que parecera uma estranha e interminável viagem, permaneceu deitado por um tempo na grama. Ouviu o alarido dos pássaros e ao longe uma espécie de gritaria. Pensou: “Será que cheguei a Macchu-Pitcchu? Só pode ser. Que outro lugar eu chegaria vindo por essa gruta desde São Thomé? Afinal é isso que as pessoas de lá acreditam”. E entremeio a essas divagações, tentou se levantar, mas a cabeça ainda girava. Ouviu o som parecido com um borbulhar de água e o seguiu arrastando-se até encontrar um pequeno córrego onde mergulhou de roupa e tudo. Sentiu-se como se tivesse encontrado um oásis em pleno deserto...
Saiu da água e deitou na margem do córrego. Ainda estava confuso. Adormeceu pensando em organizar uma expedição pelo lugar desconhecido. Passado um tempo, acordou com uma forte sacudida na cabeça e ao seu redor estavam meia dúzia de homens vestidos como se tivessem saído de algum livro de história, com seus chapéus de couro, lenços coloridos e muitas bordaduras nas vestes. Aquele que parecia ser o chefe do bando dos cangaceiros, perguntou: “de donde vem o cabra com essas roupas esquisitas?” Irineu, já refeito do susto, ainda pensou: “eu de roupa esquisita?”. “Vamo lá, abestado, responde o chefe”, falou um que parecia mais atazanado com aquele estranho ali naquela cercania. Compadre Irineu levantou, colocou o chapéu, e respondeu: “Eu sou de São Thomé das Letras”. “São Tomé do que? isso tá cheirando espião chefe. Vamo leva pro acampamento, lá o Capitão decide o que fazer com esse abestado; quem sabe nós esfola o danado pra conta tudo que sabe” O chefe olhou pro compadre Irineu, passou o punhal na mão como que estivesse afiando e deu a ordem: “vamo leva o cabra”.
Compadre Irineu tava abestalhado com o que estava acontecendo, já ouvira falar de cangaceiros, mas isso fazia parte da história. Não podia estar acontecendo de verdade. Pelo caminho foi observando ao redor, para ver se desvendava o lugar onde estava. Parecia tal qual uma daquelas cidades fantasmas que se via nos antigos filmes de cowboys. Um lugarejo em ruinas, uma igrejinha caindo aos pedaços, algumas casas abandonadas. Ao longe, onde divisou o que seria uma rodovia, dava para ver até os restos de um posto de gasolina. Nenhuma viva alma no lugar, só aqueles que o conduziam que iam conversando numa linguagem difícil de entender. Única coisa que entendeu é que eles estavam ali de passagem e que o lugar aonde viera parar chamava-se Brejo do Encantado.
Passado algum tempo de caminhada quando pensou em perguntar se o tal acampamento estava longe, viu que chegaram ao que parecia ser uma torre feita de tijolos e entraram por um vão onde tudo ficou escuro. Enquanto era puxado por um dos cangaceiros que lhe servia de guia, tropeçou no degrau de uma escada que parecia ir levando para baixo. O tempo ia passando enquanto pensava: “isso só pode ser um pesadelo, onde já se viu encontrar um bando de cangaceiros em pleno terceiro milênio, será que tinha alguma coisa naquela água que bebi? Não pode ser, devo estar delirando, deve ter sido o sol na cabeça...
Saiu dos pensamentos quando uma claridade um tanto difusa lhe veio aos olhos, percebeu que estavam ao ar livre e lá estava o acampamento. Era noite de lua cheia. Ouviu o som de uma sanfona e viu homens e mulheres que dançavam em volta de uma fogueira e cantavam uma cantoria que mais parecia um xaxado ou baião. Sentado próximo da fogueira viu aquele que parecia ser o Capitão, era ele mesmo o Lampião, o Capitão Virgulino Ferreira, ali igualzinho nas fotos que já havia visto, “vivinho da silva” como diz o pessoal lá do Sobradinho.
Foi empurrado para junto da fogueira e o chefe do bando que o trouxera falou: “Capitão, encontramo esse cabra com esse chapéu almofadinha dormindo lá na beira do Córrego das Almas. Como disse o Severino, tá parecendo que é um espião vindo não se sabe donde”. O Capitão Virgulino levantou, olhou olho no olho no Compadre Irineu, como que quisesse adivinhar de onde tinha saído aquele cabra ali na sua frente... Por sua vez Irineu olhava para cangaceiro à sua frente como se estivesse vendo uma assombração, mas, ao mesmo tempo, parecia reconhecê-lo, mesmo naqueles trajes disparatados. Enquanto se perguntava de onde conhecia o dito cujo, Lampião estendeu-lhe a mão e disse: “Só pode ser você Irineu, cabra da peste, há quanto tempo? O que faz aqui pras bandas de Pernambuco?”. Irineu estava embasbacado com a descoberta: “Como é que viera parar em Pernambuco, se ainda ontem estava lá em São Thomé? e como é que o Lampião sabia o seu nome? devo estar ficando louco, ou ter tomado algum chá de cogumelo sem saber”.
Enquanto conjecturava sobre como fora parar no Brejo do Encantado, àquele lugar único e parado no tempo, conhecido pelas histórias que corriam mundo afora, na voz dos cantadores de cordel, repentistas e contadores de causos, compadre Irineu ouviu o som do que pareciam tiros e um alarido sem fim. Num instante viu tudo sumir à frente dos seus olhos, Lampião, cangaceiros, fogueira, cavalos, tudo. Quando novamente deu por si estava sentado numa pedra na entrada da Gruta do Carimbado em São Thomé, rodeado por um grupo de turistas que lhe perguntavam se era verdade que aquela gruta levava à Machu Picchu. Ao que ele respondeu: “Se leva a Machu Picchu eu não sei, mas a Pernambuco isso lá é verdade”. Dito isso, pegou seu chapéu de cangaceiro e saiu andando rumo a Sobradinho.

Autor: Willes S Geaquinto - Varginha/MG

Página do autor:
http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=30362

sábado, 22 de julho de 2017

Ode à América do Sul - Autor: Jorge Tufic

Que o boné de Pablo Neruda
e a lágrima fluvial de Santos Chocano,
e o grito de Allende
(enquanto os fuzis do terror e do medo
repetiam o massacre da liberdade),
venham flocar este chão consagrado
por tantos modos e cantos diferentes,
oh América do Sul.
Os cravos de tuas noites mergulham
na plumagem das Cordilheiras,
e os ramos da paz que te ilumina
e o relincho das pedras que desenham
bisontes e tempestades,
pousam como fósseis alados
em tuas crinas de esmeralda.
De Santa Marta à Terra do Fogo
tuas espigas rebentam colares de jade
e cintilam nas máscaras de ouro
roubadas aos templos do sol
e às pirâmides da lua.
E ao sopro nativo da flauta
exilada entre colméias,
um tesouro de vasos, borboletas
e animais de uma fauna imaginária,
sacode o pó da argila e do granito
em suaves movimentos.
Atlantes e Laoccontes
vigiam tuas muralhas indormidas,
mas deixam livres as fronteiras do sonho.
                                             
II

Com a espada de Bolívar
e a prosa rubra e latejante de Sarmiento;
com as vestes de Antonio Conselheiro
e a nervura semântica de Euclides da Cunha;
com a suavidade de um verso de Lugones
e os contos gauchescos de Simões Lopes Neto;
com os arcos e flechas dos incas e aimarás
e a clepsidra das ruínas de Zaculén;
com as cinzas do uirapuru do Amazonas
e os depurados muirakitãs do Espelho da Lua,
eu te louvo, América do Sul,
agora que revejo tua cerâmica do Marajó,
tuas matas e teus rios,
tuas cidades e tuas pontes,
teus barcos possantes, tuas fábricas
e tuas manchetes; e ouço a voz
dos teus regatos, as canções de teus povos
e vejo, deslumbrado,
que uma ciranda feita de arrulhos e girassóis
te enlaça, constantemente,
do Atlântico semeado de praias
ao Pacífico de pássaros
e fontes azuladas.

III

Quantos martírios e sucessos
pontilham tuas manchas ocres
em cada solo ferido ou conquistado!
Lembras-te, por acaso, dos gestos em forma de dança
de teus ancestrais caribenhos?
Do milho cor de cereja dos Aruakes?
Dos artefatos barrancoides dos Walpés?
Dos dialetos tecidos com a envira do silêncio
e a toada dos riachos verdejando os caminhos?
Da antigüidade seletiva dos tucanos,
muras e cambebas?
Lembras-te, por acaso,
da bola de sernambi que estes últimos
te deram, ainda em pleno século XVII,
e do jogo que eles jogavam
num campo sem traves e sem torcidas?

Numa rede de dormir
os brancos degustam  teu massacre
mas olvidam o teu legado,
esse imenso legado que sucedera ao jugo,
impiedoso e cruel,
daqueles teus primeiros habitantes,
plantadores de sombras,
raízes da terra.
Guitarras, malária, devastação e confisco,
eles trouxeram de tudo.
Mas tomam caxiri no delicado suporte
de uma cuia rústica ou pitinga;
alimentam-se de farinha de mandioca
e têm muito de si no caboclo que se espreguiça
para não ir ao trabalho;
e têm muito de si na mestiça que se vende
por las calles y los pueblos;
e têm muito de si, também,
nessa fusão de sons e melodias
que fizeram do nheengatu das águas pretas
a língua franca dos mitos
e do lendário esquecido.
                        
IV

Imitas um coração populoso e tranqüilo.
Tens a forma de harpa ou alaúde
com doze cordas festivas.
E ainda podes ser vista como um rosto enigmático
voltado para si mesmo.
Desigualdades e semelhanças predominam
assim, de um lado e de outro,
entre vales, planícies e altiplanos.
Em qualquer Atlas se lê, por exemplo,
que há fome na Bolívia,
que há tango, festas e greves na Argentina,
que o Chile exporta minérios e vinhos,
que o Brasil é o maior destes países,
que o Equador tem reservas de prata e ouro,
que o Peru não se expande,
que o Paraguai continua bloqueado
sem saídas para o mar.
Em teu próprio nome, oh América do Sul,
e em nome da história que te deram,
hás de entender, no entanto,
que ninguém pode ser feliz
quando está cercado pela miséria,
seja a miséria do egoísmo,
seja a miséria das guerras;
que ninguém pode ter paz
quando há golpes e matanças
do outro lado de suas fronteiras.
Hás de saber entrementes que,
por cima da fala dos caudilhos,
paira a linguagem fluida ou tormentosa
daqueles que te celebram;
inclusive daqueles que apodrecem em tuas mansardas
ou se debruçam nas torres de vidro;
ou daqueles, ainda, que se confundem 
com os traços das telas que azedam em teus sótãos
e em tuas águas-furtadas.
Estes homens de letras ou picassos anônimos
entregues à corrosão que desfigura
e ao abandono que mata.

V

Quantos equívocos te cercam
antes e após a descoberta, por ti,
do torno do oleiro, da roda e do arado?
Que simpáticas figuras transoceânicas
poderiam ter-te doado,
oh América do Sul,
carrinhos votivos de cerâmica,
travesseiros de barro
e selos em forma de bujarronas?
E as tuas escritas?
Terão sido trazidas por quem
- fenícios, gregos, romanos –
se colocam na origem de teus índios?
Fascina acreditar, em vez disso,
que provenhas, isto sim,
de alguma centelha que se fez Avalon,
Atlântida ou Atlas,
segundo escrevem as aves migratórias
quando te buscam nos pélagos,
e adivinham teus ecos profundos
nas cavidades do espanto.

VI

A cidade perdida dos incas
são tantas cidades quanto as portadas
que levam à presença do sol;
e dali ao rio de espelhos e cardumes intactos,
e dali às cavernas talhadas a ouro,
e dali aos túmulos daqueles que sucumbiram
ao peso dos colossos que protegem a montanha
das patas ecoantes de Espanha.

Em cada milímetro quadrado
das alturas que saltaram de mares incalculáveis,
Amarus confundem a inteligência
dos homens de Pizarro.
Labirintos ficaram, boiunas coleiam
na ouriversaria das auroras.
E ninguém poderá decifrá-las.

Para Iucay se evadira Manco.
E uma das primeiras guerrilhas da história
consegue fazer das trilhas enganosas
o desgastante baralho das Cordilheiras.
A imagem de raios solares
com mais de cem toneladas,
em que leito de Vilcabamba
terá se consumido em miríades de estrelas?

Em Cajamarca, enfim, morrera Atahualpa.
Em Viticos, chega a vez de Manco Inca.
Sayri Tupã e Tito Cusi também foram imolados.
Tupac Amaru expira em Cuzco
levando no olhar a música do império.
                                        
VII

Grande é o solar do tempo nesta aldeia
onde um galope nunca se interrompe.
Este chão de Pizarro em Guamachucho
de lavas contraídas pelo medo.
Escarpas traçam rápidas figuras,
pousam brilhos de séculos vencidos.
E um velho terremoto, agora fóssil,
arroja um tigre do alto de um penedo.
A noite é um vinho branco. Mas o sangue
que transborda do lago, não descansa:
quer vingar a cobiça, o fogo e a traição,
estes três assassinos de Atahualpa,
daquele em cujo peito o sol dos incas
despedaça o seu último clarão.

VIII

Nos porões soterrados debaixo 
das cidades, deuses animais de terracota
aparecem ao lado da serpente,
e ao lado da serpente
paradigmas antropomórficos.
Foi assim que teus nativos,
pescadores de Valdívia,
dominaram os ornatos circulares:
perfis abstratos,
bizarras entidades híbridas
sobressaem nos relevos celestes;
e ao lado destes, ardósias cônicas,
traçados olmecas.

Um portal contendo símbolos xamãs
e sarcófagos dourados,
torna visível o silêncio dos mortos  
na estática de teus músculos altivos
prateados de neve.

A Quinta Era, afirmam ali,
pertence a Tonatiú, o deus Sol,
habitante dos leques das palmeiras;
e há de ser confirmada por graves,
extensos abalos.
Pumas alertam para as ameaças que sobem
das Ilhas Arqueanas.

IX      (a lição dos rios)

Tentando lavar este sangue
inutilmente derramado,
de cinco mil metros de altura despenca o Vilcanota;
ele vai mudando de nomes
até unir-se às águas revoltas
do lendário Urubamba.
Este, por sua vez, se socorre do Apurimac,
quando formam, juntos,
o Rio Amazonas.

Muito tarde, porém.
Um grande exemplo despercebido.

Esses rumores até hoje incessantes,
este chamado das vertentes comuns,
somente os poetas o sabem distinguir
na diversidade que amalgama
e na dor que ensina.

X     (balada enquanto seja)

Ao contrário de outras águas,
nosso rio é movimento,
serpe andina em debandada
vai ele em busca do mar;
desde que nasce de um fio
por ondas rola barrento,
vem à tona e vira vento,
é estirão que sai do nada.

Rio de lendas ficou,
matreiro, curvo e norato,
seu berço de concha e lua,
com três nomes de batismo,
três caminhos sete bocas
por onde bebe a tormenta;
mas tem mágicas, puçangas,
e a cada estória, se aumenta.

Pântano cósmico, diz-se
por quem o lê pelo avesso,
por quem ouve a queixa inata,
por quem adentra seus peixes,
por quem taboca faz beiço
e sopra o fogo da enchente,
pois este rio é começo
da febre que torra a gente.

Ao contrário de outras águas,
o Amazonas, como um todo,
pode tornar a seu fio
como náufrago do lodo.

XI     (Thiago de Mello)

Por caminhos de San Tiago,
volta o poeta das angras
a quem doara o seu canto
pela causa dos humildes.

Levara o corpo sadio,
como quem leva a esperança
marcada a fogo no brigue
que, novo, se lança ao mar.

Os Estatutos do Homem
riscando o teto da noite
com seus mastros decididos,
quantos vilões não cegaram!

Mas, igual à copa náutica
das sapopemas gigantes,
que pelas vias de Tiago
desprendem flocos de sonho,

retorna, depois da luta
para o feno das raízes:
a copa – rica de estrelas,
o tronco – de cicatrizes.

XII   (a Pedra do Reino)

Como então esquecer,
neste painel de teus milagres,
oh América do Sul,
a oficina armorial desse múltiplo Ariano Suassuna,
a poesia e a prosa que se deixam fundir
em seu romance d´A Pedra do Reino?
Assim também, igualmente,
como esquecer os poemas de Carlos Newton Júnior,
a cerâmica de Côca,
as lâminas e os palimpsestos de Virgílio Maia
ou a tenda  agreste, mística e versátil de Audifax Rios?
E como esquecer as andanças dos ¨padeiros¨cearenses
em busca das cacimbas,
do aboio crepuscular,
do alpendre de seus avós e da espada
de algum rei com sua túnica de abelhas?
Pois é das artes desse Ariano vulcânico
e de seus valerosos cavaleiros,
as surpreendentes iluminogravuras,
diante das quais apenas o arco-íris, o novilúnio
e as doze talhas apócrifas da Via Dolorosa,
não são réplicas inúteis.

XIII     (entrefala e louvação)

Deixemos, portanto, as amoras,
o etéreo veludo celeste, o filme vazio,
a novela das oito
e as ruas por onde não passaram
bandeiras despedaçadas por um grito maior
que a esperança dos mortos.

Deixemos de lado as violetas
que ardem nos versos prematuros
daqueles que nunca percebem o gemido
das salamandras
nem a fuga dos girassóis alucinados.

Deixemos de lado o jarro de Matisse,
a gôndola que imita o cisne de Isolda,
as olheiras roxas das janelas caiadas
pelo terror dos massacres.

Louvemos Neruda que, em sorvos miúdos,
provara do vinho amassado com a terra,
o suor e as lágrimas de quantos,
no Chile, na Espanha e na Turquia,
conseguiram, em seus momentos finais,
erguer a face do entulho e da lama,
cuspir na bota dos tiranos.

Louvemos Neruda pelos gestos perenes
de salvar um carneiro da morte,
uma rosa da escuridão e muitos,
centenas de amigos,
do cárcere infecto e da bofetada humilhante.

Saudemos Neruda
com uma taça de beija-flores.

XIV      (sursum corda habemus)

O giro vesperal das andorinhas
sobrevoa os transcursos das cordilheiras;
paira, depois, sobre os telhados gastos
pelo mofo dos armários vazios
e o esquecimento das chuvas.
Elas tomam as sereias de tuas falanges,
dedilham a ira dos terremotos.
Mais do que nunca teu coração vacila,
mas sente-se pleno em curtir a polêmica união
entre o Ocidente dos filósofos
e a pátria dos cardos ensolarados.
Terá sido esta a pausa dos monumentos,
o tremor que se estabiliza nos ossos,
a reflexão que se deixou cair das pálpebras de água
no enterro dos navios.

Uma sombra te acompanha desde que nasceste,
orográfico e triste,
de pais que vestiam a paisagem dos trens de ferro
com os andrajos da mulher de Bolívar,
a insepulta de Paita.
Teus versos são lições de uma geografia da alma,
rochedos floridos de ternura.
Soltos na  madrugada,
eles rastreiam  fragrâncias,  matizes,
números e signos gravados na espuma
e no cansaço das festas.
São metáforas da hora incalculável,
a incrível marca do passageiro.

Depois das estradas, Neruda,
o amor te concedera uma pausa,
um silêncio neutro que irrompe dos tanques
cobertos pelo trigo;
uma pausa que pergunta a cada coisa
se tem algo mais. E a cada palavra
endereça uma rosa. Neruda épico, lírico,
e que tampouco deixa de seguir os passos noturnos
de Lautrèamont, de Pascal e dos Três Mosqueteiros.
Teus cantos são cantarias de luar,
pólens de ouro e neblina.
Oh América do Sul
(Publicado no jornal O PÃO de Fortaleza-CE, Ano V-No. 36-em 13-12-1996). Atualizado em 2008).

Autor Jorge Tufic - Fortaleza/CE
jorgetufic@hotmail.com
http://www.revista.agulha.nom.br/jtufic.html
Publicação autorizada pelo autor