domingo, 30 de agosto de 2015

Parabéns aos vencedores:

Chegamos ao final do "Terceiro Concurso do Blog Gandavos," cujo objetivo sempre foi incentivar a leitura, recompensar autores e publicar em livros de papel, os melhores textos. 

Parabéns aos autores vencedores:


Primeiro lugar: Texto 36 - VENTOS DE ABRIL (206 pontos)
Marina Alves - Lagoa da Prata/MG


Estou muito feliz com o resultado. Muito feliz também em ver contos tão bons dos amigos Lucevan, Maria Mineira e Alberto Vasconcelos sendo reconhecidos.
Parabéns a você por mais essa realização. A literatura agradece, todos nós agradecemos. Poucas coisas na vida são tão gratificantes como ver um projeto deste teor se concretizar. Estamos aí com mais uma finalização, e para mim, de maneira especial, esta é mais uma marca que guardo com muito orgulho, pois sei da importância, amplitude do Gândavos.

Marina Alves




Segundo lugar: Texto 15 - IGUAIS NAS DIFERENÇAS (205,80 pontos)
Charles Lucevan - Ji-Paraná - Rodonia/RO 


Parabenizando antecipadamente a primeira colocada Marina, e a todos os colegas competidores, manifesto a minha alegria e satisfação por ter participado do concurso e minha gratidão pelos votos recebidos. A todos vocês o meu muito obrigado!
Charles Lucevan




Um certame diferenciado, que foge do habitual  em propostas do gênero. Uma competição sadia e enriquecedora em que o autor tem a  oportunidade de transpor obstáculos construtivos.
Aqui falamos de algo incrível chamado LITERATURA. Ser escritor é desafiar-se o tempo todo, no que tange à sua própria capacidade de superar prazos, críticas negativas; ter a consciência de que a inspiração pode não visitá-lo e, acima de tudo, ter humildade suficiente para aceitar uma derrota, pois este revés pode significar o impulso para conquistas futuras.


Terceiro lugar: Texto 02 - A ÚLTIMA REVELAÇÃO (204,60 pontos)
Maria Mineira - São Roque de Minas/MG


Quarto lugar: Texto 12 - AMOR IMORTAL (204,30 pontos)
Alberto Vasconcelos - Santo André/SP


Agradeço de coração, a todos os autores  que assimilaram a proposta inovadora no âmbito dos concursos literários e aproveitaram a chance que este concurso, deste modesto blog, ofereceu  a todos os participantes. Agradeço de coração aos autores: Geraldinho do Engenho; Nêodo Ambrósio de Castro, Denise Coimbra, Defranco (Dermeval Frossard), Charles Lucevan, Conceição Gomes, Gerson de Carvalho Silva, Alberto Vasconcelos, Anajara Lopes, Maria Tereza Maith Moreira, Rosana de Pádua (in memória), Michele Calliari, Alice Gomes, Viviane Rodarte, João Batista Silva, Magnu Max Bomfim, Carlos Costa, Patrícia Celeste Jesuíno, Neusa Gomes, José Bueno Lima, Oliveiros Martins de Oliveira, Suzo Bianco, Celêdian Assis de Sousa, Samanta Geraldin, Kevin Talarico, Willes S. Geaquinto; e também a autora e colaboradora neste projeto Maria Mineira.

A grade de notas dos autores será encaminhada a cada participante nas próximas horas.

Obrigado, a autores e leitores.

Que venha o livro: 

GANDAVOS - Amores: Idos, Vividos e Queridos

Carlos A Lopes
Coordenador do Projeto






sábado, 29 de agosto de 2015

Iguais nas diferenças

Autor: Charles Lucevan

Como acontecia todos os dias o cascudo veio, só que dessa vez veio pelas costas, na nuca, a traição, mas dessa vez foi tão forte que o rapaz franzino foi lançado para a frente onde tropeçou e bateu forte a cabeça numa das quinas do bebedouro da escola de alfabetização de adultos da zona rural, do município de Mulungu. O rapaz franzino, tímido, de aparência frágil e delicada era Laércio, cujo sangue começava a escorrer agora pela têmpora esquerda. Não era aceito pelos colegas grosseiros cheios de testosterona que o agrediam diuturnamente fazendo dele brinquedinho da hora dos intervalos escolares.
A dor foi tão intensa que Laércio pensou que iria desmaiar e chegou a desejar isso. O desmaio não veio, mas, fingiu-o, na esperança de que não iriam bater novamente em alguém desfalecido. Por isso, onde estava, ficou, caído de bruços no piso molhado pela água derramada, com um dos braços sobre o bebedouro que caíra junto consigo. Laércio tinha já 35 anos nesse dia. Morava na roça, sozinho, sem pais, já mortos em acidente com o caminhão pau-de-arara, indo trabalhar numa propriedade vizinha num desses mutirões que aconteciam todos os anos onde todos se reuniam para ajudar o vizinho a realizar todas as tarefas da sua terra, sabendo que o próximo passo seria que esse mesmo vizinho estaria no próximo mutirão vindo ajudar na realização das tarefas de sua própria terra. Ninguém naquela terra pobre tinha condições de contratar trabalhadores, e, apesar das disposições e coragem pra enfrentarem o serviço, nunca dariam conta de fazer tudo. O mutirão era solução boa demais pra resolver o problema de todos. Por essas e outras, como já dito, Laércio vivia só, saboreando sozinho todas as suas amarguras.
Levanta, maricas! Ouviu enquanto seu agressor testava a sua inconsciência dando lhe pequenos chutes em sua costela. Achou melhor continuar “demaiado” na esperança de que o deixassem em paz em sua agonia.
Ouviu um baque surdo e abafado e um grito de dor enquanto que seguidamente um braço forte cujas mãos calejadas agarraram-no na parte de trás do seu pescoço fino e o ergueram do chão sem fazer qualquer esforço aparente. Pela rudeza do gesto receou que morreria caso o sujeito desconhecido resolvesse também lhe bater. Teve a certeza de que não escaparia vivo do próximo golpe.
Ousadamente, desafiando seu medo interior, abriu o canto dos olhos para saber quem seria o responsável pelo seu desencarne. Chegando no céu, assim poderia apontar pra Deus o responsável por tal ato e exigir Dele a justiça. No entanto, para a sua supresa, que não sabia ser boa ou ruim, quem lhe segurava com apenas uma das mãos com a mesma facilidade que se segura um frango depenado pelo pescoço, era uma mulher extremamente robusta e segura de si que o erguia e sacolejava na direção dos seus algozes e bradava em alto e bom som, como trovão reverberando em ecos graves nos azulejos do ambiente da cantina:
Quem tocar nele de novo vai se ver comigo! Quem o agredir verbalmente vai se ver comigo! Vai apanhar de mulher e quero ver quem vai ser o “machão” da escola depois disso!
Quem assistia a tudo em volta, podia jurar ter visto um leve sorriso se fazer no canto dos lábios do “incosciente” Laércio.
Alguém ofereceu uma cadeira para nela pousar o corpo dele enquanto sua salvadora levantava o bebedouro caído e dele lhe tirava água gelada para lhe molhar o rosto e lavar os ferimentos enquanto ele recebia tapinhas nas bochechas para recobrar os sentidos.
Muito obrigado! Você foi a única pessoa que me defendeu em toda a minha vida!
Não tem de quê! Você foi o único homem da escola que nunca me maltratou!
E porque eu te maltrataria?
As mulheres não me aceitam por ser “macha” demais pra elas. Os homens não me aceitam por me acharem feia demais pra ser mulher, forte demais pra ser feminina.
Por meu lado, os homens me julgam bonito demais pra ficar perto deles, frágil demais pra ser homem, delicado demais pra ser “macho”...
Qual o seu nome?
Laércio! E o seu?
Jovina!
O respeito nasceu ali. Laércio e Jovina passaram a andar sempre juntos, trocando experiências. Viraram confidentes. Ambos viviam sós em seus mundos. Foram se descobrindo aos poucos. Ele, apesar de conhecer o ofício, não tinha forças para trabalhar muito na enxada ou no facão, ou na foice, ou na lida com o gado. Cansava logo. Mas, morando sozinho, o pouco de forças que tinha era suficiente para se manter com a sua mandioquinha, o seu milhinho, as suas poucas galinhas, numa agricultura de subsistência. Mas, a sua renda mesmo era tirada dos bordados e tricôs que aprendera a fazer com a avó já falecida. Eram-lhe serviços leves e agradáveis para serem feitos entre quatro paredes, ouvindo o rádio e na solidão do seu quarto. Depois vendia o resultado dos seus trabalhos na cidade sem revelar “a fonte” de quem os fornecia a ele para revender, por mais que insistissem:
Segredo de Estado!” Se eu revelar vocês não compram mais de mim... E assim ele conseguia ir mantendo o seu “segredo de Estado”.
Jovina e Laércio se deram tão bem em sua amizade que um começou a frequentar a propriedade do outro em visitas cada vez mais frequentes. As desculpas sempre apareciam  das mais diversas.
Trouxe-lhe um bolo de fubá!
Estava passando aqui por perto e vim te visitar!
Você tem galinha pra vender?
E assim foram ... foram... até que um dia, em uma das visitas da Jovina ao Laércio, o tempo fechou, escureceu e ficou tarde e perigoso demais para que ela voltasse pra sua casa em sua charrete.
Dorme aqui!
Ôxe! E minha casa?
Sua casa não vai sair de lá!
Sei não! E tem lugar?
A gente ajeita! Não tem luxo, mas a gente ajeita!
E assim, naquele dia, se ajeitaram. Ambos no quarto de Laércio. Uma goteira no quarto da “visita” a expulsou de lá. Também, quem poderia imaginar que naquela terra seca poderia cair chuva tão intensa. Laércio, um pouco envergonhado com a situação, se viu obrigado a colocar o colchão da amiga ao lado de sua cama, no seu próprio quarto.
Não se preocupe! Eu não poderia te atacar nem se quisesse... sou franzino demais pra isso!
Riram. Se ajeitaram. Ela já estava quase pegando no sono quando ouviu dele um pequeno comentário que lhe deixou desperta:
Você é bonita!
Levantou-se sobressaltada:
O que você disse!
Com medo de apanhar pelo pensamento alto demais, mas já sendo tarde pra voltar atrás, repetiu se justificando:
Disse que você é bonita! Mas falei com respeito! Me desculpa se por acaso te ofendi.
Ninguém nunca me chamou de “bonita”. Você está me gozando? Nesse mundo, o que menos sou é bonita!
Engana-se! Você é corajosa. Você é carinhosa. Defensora dos fracos e oprimidos. Tem garra, autoconfiança. É amiga, humilde. Se faz presente em minha vida. Só vejo beleza em ti.
Você que é bonito, aliás, o homem mais bonito da escola.
Sou um completo fracasso! Não posso nem me defender. Sou inteligente, mas o que posso fazer com a minha inteligência? Apanho todos os dias, sou discriminado, fraco como um graveto, me chamam de todos os nomes vexatórios, não me aceitam como sou, sou rejeitado no círculo de amizades tanto por homens quanto por mulheres. Se quer saber, - confessando o inconfessável -  nunca me envolvi com nenhuma mulher em minha vida!
Aquilo a deixou boquiaberta!
Mesmo?
Mesmo! Meu único envolvimento é com os meus bordados... sim, sou eu quem os faço! Os tricôs também. Lavo, passo, cozinho, pinto e bordo, coisas de mulher, mas não sou o que falam de mim.
Também não!
Também não o quê!
Também não sou o que dizem de mim. Trabalho na lavoura, tenho as mãos calejadas, enfrento qualquer serviço pesado de igual pra igual com qualquer homem, mas sou avessa a serviços delicados. Sou mais macho que muito homem pra enfrentar a vida, mas sou mulher e sou discriminada por ser assim tão bruta e rústica. Por isso, também confesso que nunca me envolvi.
Ficaram reciprocamente pasmos. Aquelas eram declarações muito íntimas de ambas as partes. Ficaram sentados, se olhando, se analisando vendo que ambos tinham histórias diferentes, mas, no âmago da situação, eram exatamente iguais na dor e no sofrimento. Um viu que entendia perfeitamente o outro. Choraram! Primeiro, tentando esconder suas lágrimas na penumbra do quarto. Depois, sentiram-se mais confiantes e deixaram as lágrimas rolarem de forma que o outro visse. Por fim, estavam abraçados aos soluços chorando juntos as dores de toda uma vida solitária e incompreendida por todos. O amor nasceu ali. Nasceu como num parto! Primeiro vieram as dores, depois, as lágrimas pelas dores, as contrações geradas pelos soluços, e por fim, o amor nasceu. E, lá fora, os trovões rompiam os céus como a festejar a descoberta naquele encontro de amores tão iguais nas suas próprias diferenças.
Jovina vive hoje na casa de Laércio, para onde se mudou. Casados, todos os dias ela chega do trabalho, com a enxada nas costas, vindo da lavoura e dos serviços pesados, suada, rija em toda a sua musculatura adquirida ao longo de anos na lida rural:
Meu bem, o almoço está pronto?
Está sim, já vou servir, mas antes, vá se lavar e por favor tire as botas antes de entrar em casa... acabei de limpar o chão!
E, naquele dia, a casa, como sempre, estava lindamente arrumada e, na roça, estava tudo como deveria estar:
Perfeito!
Assim como as suas vidas:
Perfeitas!

Autor: Charles Lucevan - Ji-Paraná - Rodonia/RO

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Terceiro Concurso do Blog - Texto 44: Lunático

Eu o amei por todas as manhãs. Ele só ansiava a noite para poder flertar com a Lua.
Quando o conheci, sabia que havia algo diferente nele. Seus olhos azuis e a forma como adorava discutir astrofísica, psicologia e todos os outros assuntos que minha mente pouco conseguia acompanhar. Sua boca macia e a forma que ela me beijava, me colocando para dormir e me acordando também. Suas mãos precisas e talentosas, sempre escrevendo um texto novo, sempre criando uma invenção absurda. Sua loucura tão bela, mas tão distante da filosofia de qualquer humano.
Ele se dizia humanista, e talvez realmente fosse. Sua paixão pelo ser humano, no entanto, era superada apenas por seu desejo compulsivo de pisar na Lua. Na época, quando o convenci que o amava e o fiz pensar que me amava também, eu achava bobeira me preocupar com qualquer outro lugar que não fosse a Terra.
Tínhamos tanto à nossa disposição! Flores, árvores, frutos e energia! Nosso quintal era recheado de natureza, nossa casa era recheada de amor. Eu o amava como ele sempre amou a Lua, mas quando ele me amava também, eu simplesmente me sentia a mulher mais querida do mundo.
Pelas manhãs, fazíamos banquetes e gastávamos nossas energias com festas, danças e tudo aquilo que nos trazia prazer. Conforme o anil do céu era dominado pela escuridão da noite, porém, eu também era trocada pelos astros. Ele se sentava na varanda de casa, ao lado de uma luneta e um computador de colo, fazendo previsões distópicas e escrevendo os mais metafóricos dos poemas.
Por muito tempo, não suspeitei de nada. O apoiava e o incentivava a perseguir seus sonhos e continuar produzindo sua arte todas as noites. Fingia que não sabia, mas aos poucos ele deixou de dormir comigo, apenas para ficar estudando as brilhosas entidades celestes. Enquanto ainda haviam manhãs ensolaradas e repletas de vícios, eu estava contente. Enquanto eu soubesse que escutaria seu “Bom Dia”, eu dormiria feliz.
Aos poucos, fui percebendo que as árvores frutíferas de nosso jardim não eram tão cheias de vida assim. A grama, antes tão verde e brilhante, foi se tornando um caminho de terra. As cabanas vizinhas se tornaram casas, e as casas se tornaram prédios. O mais assustador foi perceber que todas aquelas mudanças repentinas condiziam exatamente com as profecias que meu amado fazia.
Diversas foram as vezes que senti medo. Seus braços, que não eram colossais, mas suficientemente grandes, me cobriam com a ilusão de que tudo ficaria bem. Suas palavras, por outro lado, sempre questionavam a qualidade de nossas vidas, a sanidade de nossas mentes e a veracidade de nossos sentimentos. Era uma tortura deliciosa e antitética, ele me abraçava apenas para dizer que o mundo poderia desabar a qualquer momento.
Eu me fiz de forte enquanto pude. Aproveitei enquanto pude. Vivi o máximo que pude, não percebendo que cometia os mesmos erros que o resto da humanidade. Eu drenava os bens preciosos da Terra, poluindo-a em prol de meus vícios. Eu drenava o amor precioso daquele que eu amava, poluindo-o com minha simplicidade.
Um dia ele se cansou de me alertar sobre os malefícios que causávamos ao nosso planeta. Decidiu que iria apenas falar da Lua e eu, em minha ingenuidade e cegueira forçada, não percebi que aquilo que era um aviso também. Fingia estar encantada com suas descobertas quando, na verdade, eu nada entendia. E ele sabia disso. Ele sempre soube.
Quando finalmente entendi que seus poemas trágicos eram para me alertar, e que os românticos tinham como musa o satélite terrestre, senti um calafrio desumano percorrer minha espinha. Passei todas as manhãs seguintes implorando para a Lua que o deixasse todo para mim, rezando para os deuses que nunca estiveram a favor de meu amor.
A cada vez que eu pedia, no entanto, ele parecia mais distante de mim e, ao mesmo tempo, mais próximo dele mesmo. Gastei mais e mais recursos, vi a terra empobrecer, vi os mares secando, causei maremotos e furacões com minhas imprudências, cavei meu túmulo esperando conquistá-lo com minha fragilidade.
Tentei causar ciúmes, tentei tirá-lo da cabeça, tentei tudo o que podia, me negando a aceitar que já o havia perdido. Quando ele se deitava sobre a mesma cama que eu, podia vê-lo observar sua verdadeira amada pela janela. Tão belo, banhado pelo brilho daquela que passei a odiar.
Numa ensolarada manhã, como de costume, recebi seu beijo de bom dia, e aquele seria o último. Quando me levantei da cama, ele estava arrumado, vestindo um traje espacial improvisado. Seu protótipo de nave estava do lado de fora da casa, em nosso quintal de concreto, esperando por seu comando para viajar para o espaço.
Primeiro implorei para que ficasse, sendo reprimida impiedosamente pelo silêncio. Depois tentei pedir para que me levasse junto, para que me amasse enquanto amava a Lua. Foi então que se voltou para mim, com o mais lindo dos sorrisos, e disse: Um dia eu posso voltar para te buscar.
Eu acreditei naquelas palavras, em lágrimas e me afogando em tristeza, quando nem ele mesmo acreditou que aquilo seria possível.
Hoje eu entendo. O mundo só era belo porque eu estava com ele. Sua presença foi minha cegueira o tempo todo e, agora, sua ausência se tornou um veneno para minha visão de realidade.
Mas tudo bem. Alguns homens nasceram para se tornarem astronautas e encontrar seus sonhos entre os astros. Eu? Eu nasci para amar o homem que me trocou pela mulher que mora na Lua.

Terceiro Concurso do Blog - Texto 43: Poligamia

Na manhã passada, acordei cedo, bem cedo, para encontrar uma de minhas namoradas.
Ela é uma pessoa virtuosa, em paz consigo, em contato com a natureza e cheia de espiritualidade. Sua casa é uma grande mansão recheada de artefatos e livros sagrados, numa organização única e bela, de arquitetura clássica e impecável. Seu quintal começa num lindo jardim e se estende numa trilha tomada pela vegetação natural que adentra uma magnífica floresta.
Adorava visitá-la e aventurar aquela trilha ao seu lado. Ontem não foi diferente. Ela me recebeu com um sorriso lindo e um beijo puro. Segurou minha mão e me levou até o começo da trilha, onde encontraria umas sacolas contendo os alimentos para nosso piquenique. Seu ânimo era tão contagiante que quase me fazia esquecer do trajeto de uma hora de estrada que havia acabado de fazer.
Caminhamos do jeito de sempre: ela um pouco na frente, eu um pouco atrás. Ela abria o caminho com coragem e cuidava dos insetos, grandes e pequenos, que apareciam em nosso caminho. Sua tranquilidade me fazia tranquilo até mesmo quando avistava as imensas aranhas em suas teias no meio do caminho. Ao seu lado, eu me sentia seguro, confiante e amado.
No fim da trilha há esse grande lago rodeado por imensas árvores de um lado e um campo plano do outro. Foi lá onde estendemos a toalha de mesa e depositamos nossas sacolas e nossas consciências. Ficamos a observar a beleza das inúmeras borboletas, os uivos dos lobos, os gritos dos macacos, o coaxar dos sapos, os nenúfares multicoloridos e, talvez mais importante que isso, a beleza um do outro.
A natureza parecia sorrir para nós e, ainda que os insetos caíssem sobre nossos braços esporadicamente, nenhum mal nos atingiu. Era uma aventura estar ali, mas a vida, em si, é uma grande aventura. Ela me fez enxergar isso. Embora consiga sempre encontrar inspiração para continuar em minha arte de viver, uma mudança de ambiente não era nada mal.
Ela parecia muito feliz em me ver e, quando parti, demonstrou esta mesma felicidade em me deixar nos braços de uma pessoa que me ama tanto quanto ela, minha segunda mulher. Para ela, o que importava era minha felicidade. Ainda consigo me lembrar de seu sorriso enquanto acenava para mim no começo da tarde.
Quanto à minha segunda mulher, esta é um pouco mais ocupada. Estava voltando de uma viagem de negócios e decidiu que me levaria para casa antes de voltar para uma séria reunião com pesquisadores das maiores universidades brasileiras. Talvez aquele fosse o único momento do dia no qual poderíamos conversar decentemente, e a saudade estava gritante.
Discutimos, pelo caminho, algumas de nossas teorias comportamentais. Falamos sobre interesses humanos e sobre o estilo de vida da humanidade. Planejamos projetos mirabolantes, contamos as novidades sobre o mercado e o mundo acadêmico. Gozamos plenamente da intelectualidade um do outro e, para completar, até contamos algumas piadas espertas que instigam o pensamento sobre nossa estrutura cultural.
Disse que estava a sentindo meio distante e perguntei se ela, em algum desses dias de extrema correria, sentiu-se assim também. Chegamos a uma conclusão que muito diz, mas nada explica: que é impossível dizer se ela realmente se distanciou. Primeiramente porque minha sensibilidade emocional estava elevada e talvez não estivesse acostumado àquela rotina louca ainda. Segundo porque, no olho do furacão, você não consegue ter a exata dimensão da sua tempestade.
Em seguida, ela me contou sobre alguns pensamentos pessoais que, potencialmente, poderiam me deixar chateado. Mas logo os explicou melhor e, como eu sempre penso, é impossível me magoar ao seu lado. Ela faz eu me sentir tão fascinado, esperançoso, determinado e amado com seus discursos e com o compartilhar de suas ideias! Sinto-me como se fosse seu sócio nesse empreendimento constante que é a vida.
Aliás, se tem uma coisa que foi alavancada no decorrer dos últimos tempos, essa coisa foi minha vida. A determinação dessa mulher me faz determinado e, se não fosse por isso, acredito que minhas filosofias não estariam tão bem formadas hoje. Sinto que, ao seu lado, nada é impossível. Nada é distante e difícil o suficiente para me manter longe de meus objetivos.
E durante uma introspecção e outra, foquei meu olhar para fora da janela do carro e me assustei ao avistar minha casa. O tempo passou tão rápido! Então ela virou para mim, num olhar cansado, mas cheio de vida, e me deu um beijo.
"Dizem que tempo é dinheiro", eu disse a ela enquanto abria a porta do carro, "E quando estou com você, sinto que estou fazendo um dos maiores investimentos de minha vida".
Nos despedimos vagarosamente, como se ela já não estivesse prestes a se atrasar para seus compromissos. Eu abri o portão e, antes que pudesse colocar o pé para dentro de casa, recebi um forte abraço de felicidade.
Era minha terceira mulher, a mais jovem, alegre e caseira de todas. Ela, assim como todas as outras, tinha a chave para a minha casa e, também, para meu coração.
"Bem vindo de volta!", ela disse extremamente feliz. Seu entusiasmo se refletia na entonação das palavras. Me puxou para dentro e me pediu pra contar sobre meu passeio, logo em seguida me contando sobre seu dia.
Ela trabalhava muito e o mundo cinza fazia muito mal à sua ingenuidade natural. Seu bom caráter é sempre visível, assim como sua fadiga em tentar resistir à poluição social e cultural dessa podridão urbana. Ainda assim, muitos tinham a audácia de dizer que ela trabalhava pouco e que sua vida era recheada de mimos, que ela desconhecia o verdadeiro peso das responsabilidades. Sempre achei ridículo comparar uma realidade a outra, então sempre tratei seus problemas e dilemas de forma tão séria quanto trataria quaisquer outros.
Nos deitamos sobre a cama de casal e ficamos a pensar em histórias fantásticas e imaginárias. Ela sempre teve essa aptidão absurda para contar histórias enquanto eu, bem... eu tentava acompanhar seu ritmo da melhor maneira que podia.
Logo, sua cabeça estava sobre meu peito e estávamos transitando suavemente pelo mundo dos sonhos, um lugar bem mais puro e receptivo do que esse em que vivemos. Não conseguia dormir de fato e cair num sono mais profundo. Queria tanto ficar acordado para apreciar sua inefável beleza enquanto dormia, que só consegui, no máximo, cochilar. O problema é que ficar transitando muito entre sonho e realidade acaba causando espasmos involuntários, o que foi motivo para ela ficar debochando de mim o resto da tarde.
Brincadeiras à parte, aquele foi um momento único, sabe? Eu me senti grande, capaz, confortável, renovado e amado. Era como se eu pudesse fornecê-la esse mundo fantástico com o qual ela sonha e sobre o qual ela tanto escreve. Como se eu pudesse ser o príncipe encantado de seus contos de fadas. Como se o "felizes para sempre" sempre tivesse existido.
A reciprocidade daquele conforto era satisfatória e revigoradora. Mas então meu celular começou a tocar uma melodia peculiar, uma música sobre sonhos e astronautas, o toque de chamadas da minha quarta mulher.
Acordei suavemente minha pequena, com beijos carinhosos em seu pescoço. Ela sorriu, como quem diz "Já está na hora?" e pede para ficar na cama mais uns cinco minutinhos. Mas após alguns poucos segundos, ela se virou para mim, me abraçou, agradeceu pelos cochilos da tarde, pegou a bolsa e saiu. Pude escutar, ao longe, o portão se abrindo e as duas se conversando. Elas sempre tiveram uma relação muito próxima, e eu gostava disso.
Minha quarta mulher é a mais sedutora, atraente, cheia de charme e paixão de todas. Seus movimentos são sempre tão precisos que parecem previamente calculados e seu senso de oportunismo está cada vez mais incrível.
Ela chegou no quarto com uma expressão de satisfação e desejo, deixando sua bolsa sobre a poltrona e deitando-se comigo na cama. Seus braços me envolveram rapidamente e suas pernas foram trazendo meu corpo para mais perto. Era um envolvimento tão gostoso que fazia eu me sentir como se aquele fosse o lugar que eu sempre deveria estar.
O fogo de nossa paixão arde de diversas formas. Ora é o toque intenso e íntimo, ora o beijo lento e carinhoso, ora apenas um olhar da mais pura admiração pela essência humana.
Seu corpo me encantava como a mais bela obra de arte, seus movimentos graciosos dançavam a mais delicada dança, seus olhos recitavam as mais lindas poesias. E queria poder pedir que ficasse ali, deitada sobre a cama, apenas para apreciar aquele magnífico conjunto de expressões artísticas e biológicas, mas temo que não iria me conter por muito tempo. A vontade de apreciar varia numa nuance delicada entre algo inalcançável e algo que jamais deveria sair de você. Juntos nós éramos um, juntos nós éramos o infinito.
E quando estou nos seus braços, sob o feitiço de sua existência, sinto-me vivo, invencível, completo, satisfeito, capturado, livre e amado. Como se eu fizesse parte do universo e o universo fizesse parte de mim. Num efeito alucinante e recheado de prazer. Nas mãos daquela que parece conhecer meu corpo melhor do que eu mesmo.
E no final daquela combustão de essências, que foi apenas uma fração da explosão que podemos causar, devido à falta de tempo, mas ainda assim foi capaz de fazer tão bem, ela se agarrou em mim. Um momento lindo de vulnerabilidade. Não estava mais utilizando suas armas de charme, mas me envolvendo na promessa subliminar da eternidade. Apreciamos o tempo que nos restava da forma mais simples e calma. Levantamos da cama devagar e caminhamos lentamente na direção do portão.
No caminho, as demais mulheres da minha Vida foram aparecendo. Pouco a pouco, nos acompanhando alegre e silenciosamente. A aventureira e espiritual, a determinada e ocupada, a caseira e inocente, a sedutora e apaixonada, e todas as outras mais.
Algumas pessoas encontram parceiras para momentos específicos e um dos maiores desafios cotidianos é equilibrar e administrar esses relacionamentos. Já eu, ouso dizer que encontrei todas as mulheres para cada uma de minhas fases dentro de uma única pessoa. A monogamia, para mim, é o mais lindo ato de poligamia.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Terceiro Concurso do Blog - Texto 38: Amor com cheiro de mato e cor de céu

Um cavaleiro solitário segue viagem comprida na estrada poeirenta. O vento sussurra na copa das árvores enquanto o casco do cavalo faz barulho nas folhas secas do jequitibá. À margem de suas saudades, os ramos pendem e as águas refletem a luz da primeira estrela. No instante em que ouve o trinado de um canarinho, recorda-se da voz de Maria Piedade.
Abatido e vazio por dentro, Zé Justino baqueia, segura a rédea e o barulho da porteira o joga de novo no colo da saudade e um vento frio vindo das furnas arrepia sua pele. A Lua cochila com um brilho apagado, enfumaçado pelas queimadas do mês de agosto. Os curiangos piam tristes, um boi perdido berra cortando a escuridão. O homem olha o céu, sabendo do prolongar da seca até os meados de setembro.
Tenta recobrar os pensamentos ausentes, enquanto sua vida escorre devagar pelo antigo caminho. Busca na memória o dia em que Maria Piedade voltou à fazenda do pai. A menina se fizera mulher durantes os anos que passara no colégio das freiras. Pele clara, cabelos louros, braços roliços, belas curvas sob o vestido branco, uma fala doce e andar ligeiro de bicho assustado.
Desde o primeiro dia, o jovem Zé Justino sentiu a presença dela entrando sorrateira pela sua vida afora. Confuso, estranhava a si mesmo. Nunca fora de falar muito, agora a presença da filha do patrão lhe provocava aquela enxurrada dos mais variados assuntos. Enquanto falava via na mocinha um olhar úmido e azulado de interesse e gosto. Seus pensamentos buscavam o sorriso de Maria Piedade, queria sentir de perto o perfume de rosas, queria aquele olhar de céu sem nuvem só para ele. Nunca tinha visto uma moça tão bonita, tão amável, tão tudo!
Os dois não sabiam ainda, mas já estavam unidos. Um pulsar de corações, mãos e pés frios, andar descompassado. Gostavam dos esbarros das mãos, quando ele vinha do curral lhe trazer o caneco de leite. A mando do patrão a acompanhava nos passeios pela propriedade. Sentiu o calor de seu corpo quando a amparou nos braços. Ao tropeçar no caminho ela veio lhe cair de encontro ao peito.
Naquele momento, Piedade viu o peão da fazenda de seu pai entrar de uma vez na sua vida. Ele tinha jeito simples, fala de sertanejo, chapéu de couro, camisa aberta no peito, um cheiro de mato no corpo moreno, um sorriso tímido ao mesmo tempo malicioso... Vivia apanhando flores nos pastos para enfeitar sua janela, colhendo os frutos do cerrado que ela mais gostava. Suspiros, um prazer ao lembrar, um sofrer na ausência. Zé Justino enchia sua vida de esperança.
Quando ela caminhava em sua direção, ele só enxergava os cabelos anelados, imaginava-os se emaranhando em seu peito enquanto ela lhe abraçava o pescoço falando-lhe ao ouvido. Sentia uma alegria aquecendo seu coração, também uma urgência, uma loucura...
Léguas os separavam da sonhada liberdade. Então ele fugiu pelo Chapadão levando-a na garupa. O capim gordura florido punha uma mancha arroxeada na pastagem. No espigão pelos morros umas florezinhas miúdas amarelavam o chão pedregoso por onde passavam os dois fugitivos.
Sabiam que um filho de escrava e uma moça branca, seriam perseguidos até o fim do mundo... Tinham um longo caminho pela frente. Juntos enfrentariam chuva, sol, vento e tempestade, até ninguém mais ouvir falar deles. Sertão afora os dois iriam desaparecer sem deixar sinal, como se fossem assombração a vagar pelo mundo cercados de sombra e mistério.
Sob a luz da lua pararam à beira de um rio... Cheiro de capim, frescor de água escorrendo mansa sobre as pedras. Apearam do cavalo respirando fundo todos os cheiros e perfumes da noite. O orvalho da manhã ainda não viera apagá-los, quando tudo voltaria a inebriar abelhas, pássaros e bichos...
Juntos só viam alegria e felicidade, começo de vida. Pés que não sentiam o chão, porque ainda não era dia e só as estrelas seriam testemunhas, dois corações disparados, olhares inquietos de iniciantes, mãos entrelaçadas, bocas coladas em meio a suor e febre. Ali ao som da natureza se jogaram nos braços um do outro, se esquecendo dos perigos. O fogo por dentro só se abrandaria após uma batalha sem tempo e espaço...
A vida lhes parecia leve, o peito estava cheio de ar e de ilusão. Adormeceram quando o barrado no horizonte prenunciava o dia. Não viram cavaleiros apressados descendo a serra... Na vida nem sempre se vive conforme os sonhos de uma noite de amor...
De volta ao presente, Zé Justino saúda o dia com uma pequena oração. Dirige o olhar para o céu, o dia azul e o sol muito claro. A saudade de Maria Piedade ainda dói, seu coração está como uma árvore que ainda balança as folhas muito tempo depois de o vento ter passado...