sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Bexiguento

A palavra já não é das mais simpáticas. Segundo os dicionários, trata-se do significado daqueles que são atacados pela varíola, doença que foi causadora de uma epidemia famosa, no Brasil, na transição dos séculos XIX e XX.
Por não ser conhecida sua origem, e a possibilidade de sua transmissão, as pessoas que dela faleciam eram enterradas em cemitérios diferentes dos tradicionais existentes.
Desse modo, em todas as cidades, vilas, lugarejos da época, raros os locais onde não havia um “cemitério de bexiguento”.
Não fugindo à regra, Santo André possuiu o seu. Perfeitamente localizável. Ficava onde, hoje, está a primeira unidade da Casa da Esperança, estabelecimento de saúde administrado pelo Rotary Clube de Santo André. Rua Alberto Benedetti, bem em frente ao Hospital Cristóvão da Gama. Lembro-me, inclusive, que nesse local existiu até os anos 50/60 do século passado, uma capela, em homenagem a certa Nossa Senhora que não me recordo qual.
Volta e meia sou questionado sobre a existência dessa necrópole. Dias atrás, necessitando comprar carne, fui ao açougue situado na esquina da Avenida João Ramalho, com Guilherme Marconi, na Vila Assunção, e conversando com uma velha amiga do bairro, que sabe de minha atividade como escritor, especializado em coisas antigas da cidade, fui interpelado pela caixa do estabelecimento:
- É verdade que existiu em Santo André o cemitério dos bexiguentos?
Onde ficava?
Prontamente, respondi localizando a antiga necrópole, deixando-a espantada pela proximidade do mesmo de onde estávamos, a duas quadras dali.
Que a localização causa um certo incômodo ao ser denunciada, isso é verdade. Todavia, não podemos fugir da verdade.

Autor: José Bueno Lima - Santo André/SP

Já fui atingida por um raio...

Autora: Maria Mineira

Mais que um espetáculo aos olhos, os raios guardam em si a prova que a eletricidade existe em nossa atmosfera. Este fenômeno tem estreita relação com princípios e conceitos físicos, particularmente elétricos.
Temia a chuva quando era criança, me apavorava quando os raios e trovões, em fúria, brigavam no céu feito Titãs, desferindo golpes luminosos, formando um aterrorizante espetáculo, na hora que a chuva desprendia-se das nuvens em rajadas raivosas, açoitando a terra sem piedade.
As goteiras brotavam do velho telhado me acordando com pingos gelados no rosto, nesses momentos eu chorava de pavor, então, implorava à minha mãe que cantasse rezas para abrandar a tempestade. Enquanto queimava ramos bentos, desfiando as contas do Rosário, ela recitava:
—Valei-nos, São Jerônimo e Santa Bárbara! —Protetores contra raios e trovões.
Há pouco mais de dez anos fui atingida por um raio. Não sei ao certo... Me acertou a cabeça, alcançou o corpo todo ou caiu perto de mim?
Aprecio desde menina, subir em árvores para comer fruta no pé. Nunca me arriscaria a fazer isto com temporal a vista, naquela tarde, o céu estava azul. O problema é que a fazenda fica ao pé da Serra da Canastra e quando vem, a chuva pega a todos de surpresa. Parece que foi ontem... Lá estava eu, no alto de uma jabuticabeira daquelas antigas bem grandes, colhendo frutas. Lembro-me do barulho parecido com uma explosão, um clarão incrível, frente aos meus olhos, parecia fogos de artifício com milhões de faíscas e uma luz intensa que cegava, perdi controle dos movimentos, senti que saía de mim... Pensei que havia chegado minha hora...
Dor não senti. Apenas um choque intenso. Não vi mais nada...Soube que despenquei lá do alto, fui jogada longe.     Quando acordei vi um buraco no chão, de onde saia fumaça.
Fato curioso é que os pelinhos dos meus braços ficaram torrados, eu cheirava à galinha caipira sapecada no fogão a lenha. O raio chamuscou meus cabelos, queimei as pontas dos dedos que segurava no galho da árvore, voltei a mim com o corpo dolorido, cheio de hematomas, penso que foi do tombo, não sei ao certo.
O médico que me atendeu disse que foi um milagre, a jabuticabeira pegou fogo e morreu. Não tive coragem de voltar à fazenda do Senhor Chico Chagas até hoje. Por três anos não consegui chupar jabuticaba, sentia choque nos dedos quando tocava nelas.
Estranho o tal destino... Às vezes quase nos tira tudo só para nos apontar o que ainda nos resta. Sobrevivi e comecei enxergar a vida como algo imenso, acreditando ter ganhado uma oportunidade de fazer de novo. Tive essa chance! Estou aqui hoje contando sobre esta experiência incrível.
Xangô, entidade do candomblé, é o senhor dos raios, julga os ladrões com um raio na cabeça. Na mitologia, Zeus também fazia o mesmo julgamento. Se me julgaram naquele dia, fui absolvida por Deus!
Não sei se é pela experiência de quase morte, ou pela descarga elétrica que me percorreu o corpo, despertei e vi a vida de uma nova forma. Hoje em dia uma tempestade de primavera me acalma o espírito. Sinto prazer ao ouvir a chuva gerando eletricidade, cheia de trovões e raios luminosos em céu noturno. Perdi o meu medo da chuva.




* Aconteceu de verdade!









                                    Autora: Maria Mineira - São Roque de Minas/MG

Ilustração: Edmar Sales - Custódia/PE



Publicações autorizadas pelos  autores

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Autorretrato da mulher de turbante azul

Autora: Anajara Lopes

Todos os dias pego o ônibus para o trabalho nesta rua. Muito movimentada, poluída, gente que não acaba mais. Sento no banco a espera que geralmente é interminável. Há momentos em que quinze minutos se tornam tempo demais. Principalmente o de esperar. Esperar é sempre uma angústia, um sentimento noturno de incompreensão com o mundo, com as pessoas. Porém há algo interessante nisso sim porque nesses poucos minutos podem conter horas também intermináveis.
O que me chama atenção, além das pessoas que passam sem parar, é uma placa. Sempre leio a mesma placa como se procurando uma novidade, uma palavra nova nos dizeres velhos, sujos pela poluição e desgaste do tempo. Parecia que aquela placa estava lá há mais de duzentos anos, com os seguintes dizeres, somente:
PERDEU ALGUMA COISA? ENTRE! CELULAR: 91996644.
A casa sempre fechada. Como se fechada para o mundo. Antiga, com janelas e portas de madeira talhada, com eira e beira. Cores de azul desmaiado e amarelo claro, situada bem na esquina e do outro lado uma farmácia e um supermercado.
Entravam homens engravatados, mulheres chiques e elegantes, de óculos escuros ou não. Jovens, idosos e até crianças de colo. Estudantes com seus uniformes branco-azuis. Não dava para ver a senhora que atendia a campainha. Aquilo tudo era uma incógnita, não sei se para todos, pelo menos para mim era. Por mais que eu tentasse entender pela leitura do texto não conseguia decifrar aquele enigma. Só tinha uma saída: ir até lá, tocar a campainha e pagar para ver, ou então, ligar para aquele número do anúncio.
Hesitei por muitos dias. Cheguei a perguntar para uma senhora que sempre sentava ao meu lado do banco do que se tratava aquela casa e aquela placa. A mulher não me deu confiança, aliás respondeu com monossílabos que “não”, não sabia do que se tratava. Achava até que não morava ninguém ali...
Tive coragem digitei atentamente o número do celular e para minha surpresa ouvi uma voz de secretária eletrônica que dizia: “se você concorda com o dia e hora (segunda-feira, às sete horas) digite 1, se quer escolher outro dia digite 2, se quer escolher outro horário digite 3, se quer falar com um de nossos atendentes digite 4. Não responda nada, apenas escolha o número de seu interesse, você está falando com uma máquina, portanto não obterá nenhum êxito na tentativa de conversar”, se você concorda com o dia e hora (segunda-feira, às sete horas) digite 1, se quer escolher outro dia digite 2...
Ouvi muitas vezes aquela gravação até resolver desligar. Achei, a princípio, que não passava de uma brincadeira. Bom, fiquei pensando naquilo por muitos dias e não tive coragem de comparecer àquele dia e horário marcados. Continuei por um tempo observando aquela casa estranha e aquelas pessoas entrando e saindo discretamente. Pude perceber nos rostos das pessoas um ar de satisfação, como se entrassem carregando um peso e saíssem sem ele, um rosto ameno, sereno, com um pequeno sorriso estampado. Essas feições me deixaram mais intrigada ainda.
Um certo dia saí de casa meio chateada com alguns problemas familiares e me sentei no cativo banco de espera do ônibus para o trabalho com um ar angustiado esperando pelo momento de assumir o meu posto de telefonista na empresa em que eu trabalha há mais de 12 anos. Todos os dias fazia as mesmas coisas. Chegava, abria a gaveta e retirava os malotes para serem entregues ao Correio Central; preparava a mesa telefônica para então ficar durante 8 horas por dia, sem direito a sair para tomar um cafezinho, a não ser que alguém ficasse no meu lugar, que era um pouco difícil, às vezes, pois cada um cumpria a sua rotina sem se preocupar com os outros.
Foi justamente nesse dia que resolvi pegar de novo o telefone e ligar, dessa vez ouvi até o final da primeira etapa da gravação (a que marcava dia e hora) e então, criei coragem e compareci na primeira hora do dia seguinte. Bati na porta, suavemente, até com um pouco de receio. A porta se abriu e uma voz disse: entre e feche a porta! Fiquei com medo. Mas, naquele momento não dava mais para recuar. Obedeci, entrei e fechei a porta...
Uma mulher de turbante azul encaminhou-me para dentro da casa. Olhava para as paredes vermelhas como se tivesse entrando em um útero. Dividia-me entre olhar para o turbante azul (da cor do céu) e as paredes almofadadas de vermelho (sangue). Havia também um tapete que conduzia a um outro cômodo da casa. Essa era a surpresa! Deparei-me com um telão enorme, e de repente eu já me encontrava dentro dele. O final do tapete dava na entrada dessa tela. Era como se a partir daquele momento eu fizesse parte daquele quadro. Eu não me sentia mal. Ao contrário, estava me sentindo muito bem. Um certo ar de aconchego. Parecia estar cercada de pessoas das quais gostasse muito. Era só uma impressão, pois, olhava para os lados e não via ninguém, nem a mulher de turbante azul. Ela havia desaparecido de perto de mim.
A partir daquele momento a cada passo mudava o cenário em que estava inserida, como num quadro que ia se renovando no meu caminhar não sei para onde.
No primeiro passo, olhei para dentro de mim e só conseguia perceber um coração, como seu eu fosse composta somente por sentimentos. Estava num CTI comum de hospital. Olhei e vi uma criança respirando por aparelhos depois de uma cirurgia no crânio. Uma cena de horror! Parecia um quadro de Salvador Dali. Mas, ao mesmo tempo uma sensação agradável, acho que de esperança. Havia a mão de Deus depositada em sua cabeça. Eu via essa mão de Deus abençoando aquele garoto. Ela fazia parte de mim enquanto a senhora de turbante azul esperava invisível pela criança, do lado de fora do hospital.
No segundo passo, uma angústia terrível, pois tentava a todo custo que uma pessoa falasse o que estava sentindo. Um menino gritava muito e não dizia o que havia. Levantei a sua cabeça e vi que ele não soltava uma lágrima sequer, apesar dos gritos poderem ser ouvidos longe. Eu perguntava, perguntava, e nada de resposta. Havia em mim um sentimento de impotência. Eu não sabia quem era aquele garoto e porque estava ali no meu caminho. Olhei para o lado e vi uma casa cheia de doces. Levantei o menino pelo braço e conduzi-o àquela casa e então ele aceitou doces e biscoitos. Calou-se. Mas não disse palavra. Quando olhei nos seus olhos azuis vi ao fundo um céu, um mar e um coração que batia num peito do tamanho da tela. Acho que esse menino era um anjo, ele desapareceu quando dei o terceiro passo.
Eu estava agora, com uma forte falta de ar . O ar não adentrava ao peito, apesar de abrigar pulmões sadios. O ar chegava na garganta e voltava. A sensação era de morte. As pernas foram ficando descontroladas e os lábios roxos. Até que senti uma agulhada no braço. Passados uns quinze minutos já respirava um pouco melhor.
No quarto passo continuava sem ar. No quinto passo também. E assim foi sucessivamente até achegar ao décimo passo. As crises de falta de ar foram muitas durante a vida toda.
No décimo passo deu-se num rio de águas límpidas, uma fresta de luz e um céu azul claro. Ao canto uma lua partida e uma estrela ao lado. Havia água, muita água. Pisei e continuei caminhando por algum tempo, como se tivessem sido por durante dias, meses, anos... até chegar a uma porta. Abri essa porta; saí e a fechei normalmente. Percebi que estava na rua lateral à casa perto do ponto do ônibus. Tropecei. Quando olhei para o chão estava lá a minha carteira de identidade. Eu não sabia que havia perdido a minha identidade.
Descobri que eu era a mulher do turbante azul, porque me vi dentro dos olhos do menino que comia doces, assim que levantei o seu rosto eu estava lá. Eu sempre estive lá.

Autora: Anajara Lopes - Itapecerica/MG
Publicação autorizada pela autora

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Parabéns aos vencedores do Concurso


Primeiro Lugar 
(174,90 pontos):
O valor de uma amizade
Autora:
Alice Gomes - Porto Velho/RO

Alice Gomes...
Saiu o resultado da votação na mostra de contos do Gandavos! Muito, muito feliz e grata aos que votaram no meu! Parabéns também à Marina Alves, com o seu belo conto que me fez chorar de emoção nas duas vezes em que o li. Um agradecimento especial ao Carlos Lopes pela amizade e pela oportunidade que nos dá de mostrarmos as nossas criações.  E que venha o livro, e ele será lindo!




Segundo lugar 
(174 pontos):
Peninha, meu sabiá
Autora:
Marina Alves - Lagoa da Prata/MG


Marina Alves disse...
Carlos, mais uma vez parabenizo-o por todo esse trabalho bonito à frente do Gandavos. Parabéns pela organização de mais essa obra preciosa que será "Um Bicho pra Chamar de Meu". Sei de todo o carinho e trabalho envolvidos na escolha da capa, na escolha do título, em todos os detalhes, enfim. É sempre um prazer muito grande participar de seus projetos e sem dúvida uma alegria imensa ver o resultado de tudo isso. Estou aqui surpresa com a votação em "Peninha, Meu Sabiá" e agradeço de coração a todos, os companheiros e avaliadores que olharam meu conto com tanto carinho e atenção. Parabéns à Alice Gomes por "O Valor de uma Amizade", conto lindo, que muito me tocou e emocionou . Parabéns também a todos os participantes, pois li e acompanhei com muito carinho e interesse cada conto publicado e pude ver trabalhos maravilhosos. Que venham outros projetos! É isso! Vamos levando nossas Letras por aí afora, fazendo um pouquinho do que a gente gosta que é escrever. 
Abraço a todos


Agradecemos aos avaliadores convidados: 

Sérgio Camach, Helena Frenzel, Dalva Molina Monsano, Tatiana M Auad e Lemos, Nancy Gonçalves Dias, Arthur de Andrade Afonso Ferreira e Maria da Glória de Souza Farias.

O arquivo magnético contendo as notas atribuídas aos textos pelos autores e pelos avaliadores convidados; também o total de pontos de cada texto e a posição de cada um deles, será enviado diretamente a cada um dos participantes do Concurso de Texto do Blog gandavos nos seus respectivos endereços.

O valor de uma amizade

Autora: Alice Gomes

Tudo o que ele mais ambicionava era ter o dorso livre. Sonhava todas as noites com um verde prado onde corresse, pelos ao vento. E toda manhã, ao vestirem sua incômoda armadura, lá ia ele para a sua batalha cotidiana.
Às vezes, uma lágrima silenciosa marejava  os seus grandes olhos cansados, quando da lembrança de sua infância feliz, do leite quente da mãe, dos exercícios diários, da musculatura se desenvolvendo depressa, e depois a adolescência arrojada, onde se esmerava em ser o melhor, o mais rápido, o mais forte. Quem sabe quem seria se não tivesse se esmerado tanto? – Hoje, talvez mais feliz – pensava . A vida cobra caro de quem se propõe a tanto e falha em tudo...
Uma chicotada o arrancava sempre desses torpores temporários. Apressava o passo, esticando as pernas que já bambeavam. O calor escaldante e a carga pesada deveriam lhe doer, mas já não doíam. Quase nem sentia mais o próprio corpo. Nem sabia dizer se vivia a realidade ou algum dos frequentes pesadelos. Comia quando lhe deixavam e bebia de águas quentes e sujas, mas nem isso lhe importava. Via, quase indiferente, os músculos cada dia mais flácidos, a pelagem rareando, feridas abertas pelas picadas de insetos. A velhice não o amedrontava, o fracasso  sim. O medo de morrer sem sentir a plenitude de ser, ao menos por um dia, livre. Trabalhara tanto na vida e nunca o fizera  para si mesmo, nunca por prazer. Quando jovem fora muito requisitado, pela sua força e agilidade, a executar tarefas que agora lhe pareciam todas despropositadas.
- Se eu pudesse recomeçar o faria mais docilmente – ponderava, nas poucas horas de descanso que lhe permitiam. – Quanto mais dócil o escravo, mais discreta e consequentemente mais leve  é a sua escravidão, porque não se exige muito de quem nada ambiciona. Os  seres como eu, rebeldes,  intempestivos, indomáveis, são os mais exigidos, mais testados nos seus limites.
Lembrava-se de quantas vezes ouvira gritarem, das arquibancadas: -  Campeão! Campeão! -  E era bom, mas efêmero o prazer, porque sabia que depois das corridas viriam treinamentos mais e mais pesados. Um campeão deve estar sempre preparado para batalhas maiores e ele sempre estava. Até o fatídico dia em que se rebelou, e derrubou de cima de si, quem lhe fincava sem dó as esporas. Ele não conseguia entender porque lhe machucavam para que corresse mais, se ele sempre soubera executar muito bem o seu ofício.  – Tão desnecessárias certas  demonstrações de poder que os humanos têm – ressentia-se.
Depois do primeiro vieram outros e ninguém mais conseguia permanecer nas suas costas. Apanhara muito dos que pensavam que desta forma o domariam, mas quanto mais apanhava, mais certeza tinha de não mais  permitir que humanos o cavalgassem. Enfim, desistiram dele e o venderam a um humano que decidira usar contra ele mesmo a sua própria rebeldia. Passou a integrar um estranho grupo de  escravos supostamente indomáveis, que se sujeitavam a simular grandes espetáculos de derrubadas de humanos. A admiração pela valentia dos colegas, no primeiro dia de casa nova caíra por terra, ao perceber o artifício usado pelos humanos, para despertar nos pobres aquela reação. Não era valentia, era dor. É certo que passou a se alimentar melhor, sem aquelas dietas sofridas, pois se no passado se fazia necessária uma silhueta delgada nesta nova a aparência deveria ser a de robustez.  Porém, só ele e os colegas sabiam o quanto lhes custava cada refeição e cada pinote.
Quando já estava muito famoso em seu novo ofício de derrubar humanos, acontecera um triste fato que, de um lado o libertaria daquela prisão mas, por outro o jogaria definitivamente na roda dos excluídos: um humano, mais atroz que os costumeiros, fincara tão fortemente as esporas em seu baixo ventre, que o tiraria para sempre daqueles humanos espetáculos de horror. Nunca mais o campeão das corridas! Nunca mais o invencível dos rodeios! E pior, nunca mais o precioso reprodutor que se orgulhava de ser. Agora tornara-se um qualquer, abandonado às mais terríveis provações.  
Passara a puxar carroças e, em cima delas, os humanos, juntamente com as mais variadas e pesadas tralhas . Não havia mais como espernear, não adiantava mais empinar o dorso, nenhuma manobra o livrava dos seus grilhões. Daquela valentia toda só lhe restara o cansaço.  Pouco a pouco fora perdendo todos os seus desejos, sobrando-lhe apenas dois: o de ainda poder correr livre, nem que fosse no seu último dia de vida,  e o de conseguir vingar-se de um só humano que fosse.
Como tantas coisas inexplicáveis, com ele acontecia sempre que as guinadas de sua vida  fossem à custa de intenso sofrimento físico. Desta vez não fôra diferente: o seu atual humano sentira-se mal durante uma das descargas e fôra socorrido por uma multidão, assustando-o tanto que ele saíra em disparada pelas ruas, carregando consigo a carroça vazia. De repente, o silêncio e a escuridão. Soubera depois que um caminhão o atropelara, atingindo fortemente as suas patas traseiras e destruindo completamente a carroça. Depois o arrastaram para a calçada e o  jogaram numa caçamba. As patas doíam muito, mas a sensação de liberdade lhe enchia de louca euforia. Tanta, que a sua vontade era a de sair correndo naquele mesmo instante. Não pôde.  Adiaria ainda um pouco mais, até que estivesse em condições de andar.
- Acho que teremos de sacrificá-lo – disse o veterinário à jovem que o assistia no engessamento. – Muito dificilmente ele voltará a andar. Uma fratura como esta pode impossibilitá-lo para sempre de trabalhar.
- E porque ele deveria ainda trabalhar? – respondeu a jovem. Não vê que ele já está velhinho, e o seu dono já está morto? Ele não tem mais ninguém no mundo. Vamos fazer o que for possível por ele e deixar que a natureza decida o seu momento de partir.
Ah! Sensações desencontradas passavam pela sua cabeça agora! Tudo o que ele queria era fugir e nunca mais ouvir a voz humana e, no entanto, era uma humana quem decidia se ele viveria ou não! – O que ela faria com ele, depois que sarasse? De que maneira ela o machucaria ainda?  Sim, estava claro para ele que ela estava lhe dando uma chance de viver para, evidentemente, tornar-se a sua dona, e machucá-lo, de alguma maneira. Mas, se houvesse uma só chance dele ser curado, então ele faria qualquer coisa para cooperar e, no momento, permanecer imóvel era a atitude mais sensata. Depois pensaria num modo de fugir dela. Ou de derrubá-la, na primeira oportunidade.
Os meses seguintes se arrastaram, penosamente. A jovem humana conseguira que ele fosse levado para um haras abandonado e o visitava, todas as manhãs. Colocava-lhe uma coleira, não muito apertada, e o obrigava a fazer curtas caminhadas, depois o deixava pastar tranquilamente, enquanto ambos tomavam sol.
– O sol é bom para fortalecer os ossos – dizia-lhe, com voz suave.
– Sim, eu sei –  ele pensava, nunca desgrudando os olhos da baia, onde permanecia preso o restante do dia. – Eu sei pra que serve o sol e sei pra que serve um haras. Mas ela está muito enganada se pensa que eu ainda trabalharei para ela de alguma forma. Nem posso mais e nem quero. Antes, eu a matarei. – E olhava nos olhos dela, como a implorar que o deixasse viver em paz os seus últimos anos de vida. Ele não era um assassino. Não queria ser!
Um belo dia (sim, aquele dia estava muito belo) ele, já completamente curado, a esperava em pé e disposto, na porta da sua baia, quando ela chegou. Aquele seria o seu último dia ali, estava decidido. Iria embora, sem nem saber para onde, mas iria. Deixaria, desta vez, como agradecimento, que ela o alisasse, como vinha tentando há meses e, assim que ela virasse as costas, adeus. Tamanha ansiedade fez com que não se apercebesse que naquela manhã ela não vinha só. Quando deu pela presença do outro visitante, ele já estava próximo demais. A primeira reação foi a de pensar num grande coice, mas esperou para ver o que ele pretendia, porque, afinal aquele humano lhe pareceu ainda mais apavorado do que ele. E além do mais, era ainda um filhote, e ele jamais faria mal a um filhote, fosse de qual espécie fosse.
O filhote humano, assim que o viu, começou a emitir uns grunhidos agradáveis de se ouvir, e a dizer coisas, com olhares e gestos, que nenhum outro humano conseguira lhe dizer com tanta clareza e suavidade! – Quem é este? Perguntou, surpreso,  à jovem humana, esquecendo que ela não poderia entender a sua pergunta. A jovem humana afastou um pouco o filhote, apreensiva. – Cuidado, meu filho! Ele tem o olhar bondoso, mas ainda não é confiável. Nunca me deixou acarinhá-lo. Devemos ter paciência, até fazê-lo entender que pode confiar em nós.
Naquela manhã nem sentiu que a coleira estava  ainda mais frouxa que o costume, pela dificuldade que a humana tinha em segurá-la, com o filhote no colo. Na verdade, nem sentiu quando lhe tiraram a coleira, em algum dos dias seguintes. Também não percebeu quando e porque decidira ficar. Não se questiona intuição. Aos poucos, à medida em que ia se permitindo acarinhar, ia também ganhando a liberdade de caminhar sozinho, a cada dia um pouco mais, enquanto os dois humanos  se sentavam no chão (às vezes até se deitavam) felizes da vida.
Um dia, eles trouxeram um terceiro humano. Não se assustou, nem se esquivou. Por algum estranho motivo confiou, afinal, estava solto e não via nenhum laço nas mãos daquele humano, que estava naquele dia segurando o filhote. Daria tempo de correr, se necessário.
- Viu, meu amor? A alegria do nosso filho quando está ao lado dele? Nem parece aquele serzinho tão perdido em seu próprio mundo, numa vida quase vegetativa, de alguns meses atrás. Ele se agita tanto quando o vê, que às vezes me dá uma esperança louca de vê-lo andando, engatinhando que seja, como uma criança normal. Sei que é ilusão minha ainda, mas quase posso sentir que suas perninhas estão se enrijecendo. E veja como eles se comunicam com o olhar. Parece que se tornaram grandes amigos. A mesma doçura, a mesma sintonia.
- Sim, eu  vejo. Agora entendo porque você se dedicou tanto a este cavalo, já desenganado. Você sempre me dizia que ele era um verdadeiro campeão e conseguiria. Conseguiu mesmo. Os dois conseguiram.  Você pressentiu que ele poderia ser a salvação para o nosso filho e estava certa. Será que ele deixaria que eu o colocasse no seu dorso, só um pouquinho? Só uma voltinha, bem devagar?
- Sim! Eu deixo! Eu deixo! Diga a eles que eu deixo! Você pode, meu amigo, você pode me cavalgar quantas vezes quiser.
E foram muitas. E são muitas.  E depois das cavalgadas, quando humanos voltam às suas casas, todo o haras é só seu, todo o chão e o verde prado são seus,  e todas as corridas, pelos  ao vento, são suas.

Autora: Alice Gomes - Porto Velho/RO

Texto: 13 (do concurso) - “Peninha, Meu Sabiá”

Ela o encontrou semimorto debaixo da goiabeira. Penas encharcadas, olhinhos cerrados, asa quebrada. Pobre Sabiá! Flagrado pelo temporal da noite não pudera escapar. Condoeu-se do bichinho. Catou-o do chão e o aqueceu no calor das mãos. Subitamente, num movimento quase imperceptível, viu-o abrir os olhos, e uma alegria imensa tomou conta dela: ele ainda tinha vida!
Carregou o animalzinho para a cozinha. Enrolou-o em paninhos quentes e pensou “Hei de salvá-lo!”. Desde que o mundo é mundo não há melhor remédio que o amor para curar feridas e outras dores. Foi o que ela fez com “Peninha”, seu mais novo companheiro. Durante dias tratou-o como quem trata uma joia delicada. Comidinha pelo bico, água gota a gota na pontinha de colher, unguentos para a asinha ferida. Aos poucos Peninha ia ficando bom...
Ela o tinha em vigilância e cuidados, sem cessar. Dedicou-se ao bichinho de corpo e alma. Também, aos oitenta e tantos não tinha mesmo muito do que se ocupar. Os filhos morando longe, só vinham de visita breve. A solidão doía por dentro. Mas, agora tinha Peninha, amigo que a sorte lhe mandara, em noite de chuva... O passarinho, já mais animado, acompanhava a dona pela casa, sempre aos pulinhos, pois que a asa ainda amarradinha não lhe permitia maiores movimentos.
Ela se apegava a cada dia. E já pensava na hora em que Peninha, de asa sarada, alçasse voo para os infinitos do quintal. Ah, ia ser duro! Tinha se acostumado aos olhinhos buliçosos sempre a procurar pela sua presença na casa. Como seriam os dias sem o bichinho dando sentido à sua vida, fazendo da casa um lar de gente normal? Pensava, mas não queria pensar...
Num domingo de manhã, ela deu por falta de Peninha ao rabo do fogão, onde ele tinha por costume se encolher ao calor das últimas brasas. Fora embora! Enfim tinha tomado o rumo do arvoredo, que para isso ela sempre deixara aberta a janelinha de pau da cozinha. Não impediria sua vontade de partir. Jamais o obrigaria à gaiola de suas paredes. O mundo de Peninha era o espaço, os ares perfumados e sem fim da Natureza. Lá sim, era seu lugar por mais que lhe doesse a falta...
Abriu a porta e olhou o céu azul. Estava triste. Nem mesmo quando os meninos rumaram pra São Paulo, sentira aquele buraco por dentro. Também, naquele tempo era mais nova, não tinha a solidão de agora. Com o dorso da mão limpou uma lágrima que teimava em lhe escorrer pelo rosto sulcado pelo tempo. De repente... O canto! Como numa mágica, a melodia a guiou para o ponto exato de onde vinha: o galho da goiabeira! Era ele!
Tomada de emoção profunda ela demorou os olhos na avezinha de penas marrons e murmurou tremulamente “Peninha, meu sabiá!”. Peninha e seu canto mavioso! A primeira vez que o ouvia! E era como se cantasse para ela, só para ela! Caminhou em sua direção. A ave não se moveu, não voou... Não fugiu. Ao contrário, soltou no ar o seu canto ainda mais forte! Era sim para ela, só para ela que Peninha cantava! Longos e doces momentos de um cântico sonoro e terno! Depois... O silêncio. Vencido pelo esforço, a avezinha silenciou, apenas tombando a cabecinha de um lado para outro, como quem olha com esmerado carinho o ser mais amado... Seriam beijos de gratidão?
E quando o passarinho alçou vôo e sumiu no meio das folhas, confundindo-se com as árvores do pomar, ela não mais se entristeceu. Entrou leve e em paz. Sentiu que ele não a deixaria mais sozinha. E assim foi: pelas manhãs, Peninha sempre voltava para a serenata matutina que ela já esperava. Com a suavidade de seu canto, ele lhe adoçava a velhice, enchia de alegria e alento a varandinha da cozinha onde ela tomava o café matinal.
Pelos meados de setembro, ela partiu. A vizinha, na falta dos barulhos rotineiros da casa, estranhou. Rodeou pelos fundos e deu com o corpo caído de borco na mesinha da varanda, junto ao bule de café e um pratinho de biscoitos. No fim da tarde, entre réstias de sol e cheiros de primavera, o corpo desceu à terra. No galho de uma quaresmeira que despetalava seus roxos sobre a cova, cantava um sabiá. Cantava só, um canto triste como nunca se viu...

Texto: 16 (do concurso) - Black Jack

“É dura a vida de quem não é macho-alfa!” Diria Black Jack, se falar pudesse. E se falasse, eu lhe responderia: e como sei, garoto! Pobre, baixinho, gordo e corno, como eu, entende muito bem dessas coisas... Mas outro dia eu lhes conto a minha história, hoje vou lhes contar a vida deste gato preto que um dia conheci:
Quando cheguei à empresa onde até hoje trabalho ele já vivia por lá. Alimentava-se dos restos de carne do almoço do pessoal que come por lá mesmo. Só que era magrinho de dar dó, porque tem dia que vem carne tão dura na marmita,  que a gente desiste dela e joga algum pedaço fora, mas tem dia que não e, nesses dias, o coitado não comia. Nunca fui de muito chamego com gato, prefiro cachorro, mas,  não sei porque, fui com a cara dele. Para sua sorte e meu azar, a minha carne danou a vir dura quase todos os dias e o bicho foi engordando, à minha custa. E foi  se apegando a mim, porque não era alfa mas também não era burro; sabia muito bem que comigo a coisa rendia.
Como eu sabia que ele não era alfa? Eu não sabia, fiquei sabendo um tempo depois, quando apareceu um outro gato, este malhado de branco e cinza, a quem dei o nome de Tigrão. Na verdade o nome era pra ser Tigrinho, porque ele se parecia mesmo com um tigre, só que em miniatura, mas achei que ele ia se aborrecer com o diminutivo e acabou ficando Tigrão. Não se brinca com o ego de um macho. Pois bem, quando chegou o Tigrão, já foi logo dando um chega-pra-lá no Black Jack, no momento em que eu ameacei jogar os pedaços de carne pra eles. Como ele não reagiu e só me olhava com olhar suplicante, ali eu entendi que o negócio não era só cortesia com o visitante. O bicho se borrou de medo do outro, e o outro comeu a sua carne e foi-se embora, para só voltar no dia seguinte, ao contrário dele, que nunca ia para lugar nenhum. Resumindo: o Tigrão tanto voltou que acabou ficando também. Com o tempo e a minha constante intervenção eles acabaram tendo uma convivência pacífica. Sustentar dois gatos com a minha parca carne não dava, então resolvi comprar ração para eles. Pensando bem, acho que a convivência pacífica foi por não terem que disputar comida, já que, na fartura, até os homens convivem bem. Os machos de todas as espécies  só se enfrentam por dois motivos: por comida e por fêmea, o que dá no mesmo, dependendo da interpretação de cada um. A comida não era mais problema, mas um dia apareceu a Mary Jane e... bem, digamos que não foi um bom dia para Black Jack.
Mary Jane era uma gatinha amarelinha, novinha ainda, mas já bem saliente. Como toda fêmea, já chegou nariz empinado, dona de si, como se os machos tivessem a obrigação de lhes ceder a primeira porção. Black Jack, cavalheiro e certo de que também comeria ( a ração ) não se incomodou, porém com o Tigrão ela teve que negociar muito. Com macho-alfa não tem essa de cortesia fora de hora com fêmea não.  Mary Jane, devido à personalidade altiva e taciturna de Tigrão, acabou se entendendo melhor com Black Jack e formamos, os três, o bloco dos fracotes assumidos. Onde comem dois comem três, a ração aumentou e a vidinha deles continuou tranquila. Continuou tranquila até o dia em que ela entrou no cio...
Desta vez digamos que não tenham sido bons dias para Tigrão. Apareceu macho-alfa de tudo quanto foi lado e todos eles brigando com ele, por causa dela. E ele, ao invés de aprender com a sabedoria de Black Jack, que saíra de cena na primeira arranhada, arcou com as consequências do seu machismo. “Defender território não é mole não!” ele gritava pra mim, no seu idioma. E Mary Jane se fazendo de lady, só esperando o vencedor. Black Jack e eu, só observando. Eu, curioso e torcendo por Tigrão, e Black Jack atrás e embaixo de mim, não sei se torcia pelo amigo ou se só queria que aqueles dias passassem rapidamente. Tigrão lutou bravamente e conseguiu expulsar todos eles mas, no momento em que ia desfrutar da merecida recompensa, esbarrou num viking, recém chegando e já dando voadora.  Olha, até eu fiquei com dó do Tigrão, porque foi uma luta desigual: de um lado do ringue, um enorme gato branco de olhos azuis, unhas afiadíssimas e pulmão ainda fresco e de outro, um gato grande também, mas cansado e todo estropiado das lutas anteriores. Não deu pro Tigrão, infelizmente. Ainda me lembro de vê-lo se urinando todo: de dor, de medo, de humilhação e com um dos olhos imprestável para sempre. Fugiu e nunca mais o vi. “Bobo”, pensei. Podia ter ficado aqui com a gente, mesmo não sendo mais o macho-alfa do pedaço. Quem de nós iria criticá-lo?
O viking, a quem chamei de Jack White, praticamente só pernoitou e também se foi. Eu vi, pelo olhar de Mary Jane, que ela preferia que o vencedor tivesse sido Tigrão, talvez porque com ele ela teria como dividir as tarefas da criação dos filhotes que viriam, mas, sabe como é,  teve que servir comidinha e agasalho ao vencedor. As coisas são assim no reino felino, fazer o quê... 
Durante a gestação a paz voltou a reinar e, não sei se foi impressão minha, ou se realmente Black Jack estava até mais tranquilo que o normal e ela, amorosa com ele. Todos os dias eu os observava, um ao lado do outro. Às vezes até caminhavam juntos, como se conversassem por telepatia. E não é que formavam um casal simpático? Até decidi que quando ela parisse eu ia mandar esterilizá-la, em homenagem ao meu amigo, que se revelou um bom partido.  Ele me ensinou muito da vida, tanto que, se hoje estou noivo, devo a ele a minha coragem de me declarar. Aprendi com ele que carinho e atenção também podem cativar uma fêmea. No dia do parto foi ele quem me chamou para me apresentar aos seus filhos adotivos.  Mary Jane assustou-se com a minha presença, porque é de praxe que as mães escondam seus filhotes até que eles estejam desmamados; mas não ficou tão surpresa quanto eu, ao conhecê-los. Cinco rebentos: dois brancos, dois amarelinhos como a mãe e um todo malhado, com as cores amarela e preta, bem mais franzino do que os outros... “Black Jack, seu danado, cê veio lá das bandas de Minas, foi?”  

Texto: 53 (do concurso) - Norte, o cão boiadeiro

Corria o ano de 1955. José, o meu irmão mais velho entre os dez que éramos, certa feita, montou seu cavalo altivo, malhado de três cores e partiu mundo afora. Nos seus 18 anos, poucas vezes, saíra porteira afora da fazenda de meu pai. Naquele dia, com mais oito companheiros, rumou de Bom Despacho para os sertões inóspitos de São Gonçalo do Abaeté. Esse município, então desconhecido e inexplorado, ficava muito além do São Francisco e de outros rios das Minas Gerais. Vizinhava com Patos de Minas. Missão: levar trezentas reses que meu pai vendera para um amigo dele, que acabara de comprar muitas terras por lá.
Aquele foi o batismo de fogo do primogênito de Domingos Leite e Dona Neném. Seu Tiro de Guerra. Seu passaporte para a maioridade. Ele atravessou serras e cursos d’água. Cerrados e matas. Estradas e povoados. Dormia ao relento ou em paióis de milho das fazendas, onde conseguiam licença para pousar. Aí se recuperavam da longa e cansativa viagem. Arrumavam pasto e descanso para os bois e os cavalos.
Dia seguinte, quando o rei dos terreiros contava pra  acordar o sol e fazê-lo levantar-se, a comitiva de boiadeiros  estava de pé. O cozinheiro já partira na frente, com suas panelas e mantimentos. Ia esperá-los numa parada qualquer, lá pelo meio dia. O almoço já pronto pra ser servido.
Nos meus 10 anos de idade, achei a viagem do Zé muito longa. Ela durou meses. Ouvia minha mãe dizer chorosa que estava com muita saudade dele. Eu, embora não o dissesse, também estava.
Uma tardezinha, quando o sol se avermelhou, no horizonte, com a friagem de junho, ele chegou.
Meu jovem irmão apeou de seu belo cavalo pampa, suado e emagrecido pelo rigor da viagem. Puxou a guaiaca cheia de dinheiro da paga dos bois e entregou-a a meu pai. Naqueles tempos, banco era coisa rara e ladrões, também. Não havia perigo. Nem existia outro meio de transportar dinheiro que não aquele pelo qual meu irmão trouxera alguns contos de réis lá do outro lado do mundo, por caminhos ermos dos sertões mineiros. Hoje, contudo, mais de 60 anos depois desse acontecido, o que ficou guardado em minha memória com mais nitidez é a lembrança do Norte.
Norte, um cachorro que o Zé ganhou de um boiadeiro de outra comitiva que pousara com ele e seus companheiros, numa noite escura, em uma velha tapera, na volta do sertão.
Ele não possuía nada de especial. Tamanho de um policial comum. Mas de pelo curto e branco, com grandes manchas vermelho-claras espalhadas por todo o corpo. Dócil, porém na lida com o gado, um gigante fenomenal. Nunca se vira por aqui, e nem em lugar nenhum, alguém jamais viu fazer-se o que o Norte era capaz de fazer com cavalos e reses.
O boi estava bravo e você queria vê-lo no chão, era só mandar. Estivesse o animal parado ou em desabalada carreira, o Norte entrava sob seu ventre. Enfiava-se entre suas patas dianteiras. Puxava-os pelo focinho. Aí era fatal: aplicava-lhe um balão. Como num golpe de judô e jogava-o de costas. As quatro patas viradas inapelavelmente pra cima. Invariavelmente os bichos se levantavam mansos e cordiais. Novilhas ariscas, vacas pegadeiras, rês desgarrada, garrotes ou touros descomunais e nervosos se tornavam mansos depois da primeira pega do Norte.
Para nós, meninos, o Norte chegou como um anjo que caiu do céu. Nas lidas das roças, sobravam pra gente os serviços menores: dar milho às galinhas, tratar dos porcos, guiar boi, apartar bezerros das vacas leiteiras. A gente achava mais difícil, contudo, a missão inglória de buscar cavalos no pasto.
Bastava haver entre eles um animal de mau caráter e velhaco e a tropa toda se punha a segui-lo em disparada para longe da porteira do curral. Por coivaras espinhentas, por ladeiras e subidas íngremes, por alagados e atoleiros, o menino os perseguia. Empurrava-os rumo à sede da fazenda. Acontecia de, no momento final, próximos de cruzarem a porteira, eles soltarem longos relinchos e livres e soberbos correrem pasto afora. Parecia afastarem-se conscientemente dos cabrestos, dos freios, das selas e dos serviços pesados que sabiam estarem à espera deles. O menino cansado, ofegante e irritado tinha de começar tudo de novo.
Graças a Deus, apareceu o Norte. A gente já saía para a invernada, em sua companhia. Se os malandros iniciassem suas carreiras fugindo de nós, açulávamos o bravo cão contra eles. Norte entrava intrépido no meio da tropa em disparada e heroicamente derrubava um, dois, três cavalos. Depois disso, saía milagrosamente ileso do meio das patas perigosas do bando de equinos. Um espetáculo magnífico e emocionante. Dele não me esqueço jamais. E até me arrepio, só de lembrar as memoráveis façanhas desse cão.
Mas tudo que existe se acaba, num dia cinzento de agosto, picado por uma cascavel, o Norte morreu.
Hoje, ao trazer à memória a sua figura, não houve como recordar-me também de Suassuna, no Auto da Compadecida:
“Ele cumpriu sua sentença, encontrou-se com o único mal irremediável, a marca de nosso estranho destino sobre a terra, que iguala a todos num só rebanho de condenados. Porque tudo que é vivo morre.”
Mas Norte sobreviveu por muito tempo ainda. Nos pastos da fazenda, o grito de seu nome fazia os cavalos ariscos dirigirem-se obedientes para o curral. Era a sua alma ajudando-nos a campear, embora ele já estivesse no além, no paraíso preparado pelo deus dos cães para os cachorros valentes.                  

Texto: 32 (do concurso) - Tina - Uma cadela inesquecível

Num repente pelo portão aberto ele adentrou à nossa casa, porte médio, pelos amarelecidos, um cachorro, mas nem parecia um cachorro, mais parecia um amontoado de ossos articulados, dava até para contar todas as suas costelas tamanho era a sua magreza, imensas cicatrizes pelo corpo, e estas eram denunciadas pela falta de pelos no local, parece que ele fora atropelado para que portasse tamanhas escoriações, foi entrando casa adentro afora, rabo por entre as pernas, uma humildade cativante e dilacerante ao mesmo tempo, ficamos com pena dele, ou melhor, dela, pois ao examiná-lo mais detalhadamente vimos que se tratava de uma cadela!
E ela com aquela tristeza no olhar, aquele olhar pedinte, pedia, ou melhor, implorava para que fosse aceita em nosso convívio, meu pai a princípio foi contra, nós outros suplicamos para que ela fosse adotada, que fizesse parte da nossa vida!
Contra todos, meu Papai se absteve, e para alegria de todos concordou com a adoção, e ele que era contra cachorro em nossa casa, logo logo se mostrou solícito, no dia seguinte providenciou a construção de um pequeno canil, coberto de telhas, no seu interior foi colocado um estrado de madeira para que ela não dormisse no piso frio, também foram colocados vários colchonetes, cobertas, papelões sob o estrado, e outros agasalhos próprios para os cães!
Não sei por que, mas eu só sei passamos a chamá-la de Tina, e a Tina aos poucos foi tomando conta da nossa casa, das nossas vidas, matreira, inteligente, desconfiou que não gostávamos de cachorros na cozinha e na sala de jantar, e ela prontamente evitava estes locais, preferindo salas, quartos, quintal...
E passaram-se os meses, e uma melhora apresentável em seu estado físico se denunciou, depois de tomar algumas vacinas, vermífugos, e vitaminas, ela renasceu, ganhou alguns quilos de peso, tornou-se mais lisa, as costelas que antes estavam à mostra haviam desaparecido, e ela tornou-se mais esperta, mais brincalhona, mas nunca perdeu aquela humildade cativante, nunca deixou de se portar como uma verdadeira dama, dona de uma personalidade marcante, mas aos mesmo tempo submissa e carinhosa!
E o tempo foi passando e ela foi ficando mais fogosa, mais brincalhona, a todos bulia, chamava a atenção para os seus feitos, como buscar uma bola atirada a esmo pelo quintal, pular na piscina, posso dizer com toda a certeza que ela estava vivendo os melhores dias da sua vida, foi quando...
Mesmo que o portão permanecesse aberto, ela no máximo que fazia era espiar a rua, gostava de ver os carros passarem, curiosa a tudo e a todos atentava, mas neste dia um acontecimento inesperado...
Sem que ninguém notasse, ela fugiu, desapareceu, por mais que a procurássemos pelas redondezas não conseguimos encontrá-la, as buscas foram então se esmorecendo, até que definitivamente a demos por perdida, na certa sentiu saudade dos seus velhos camaradas, sentiu saudade da liberdade das ruas, talvez ela não se tenha adaptado com a disciplina em seu novo lar, parece que  simplesmente se cansou da nova morada!
Passado algumas semanas eis que surge novamente no portão da nossa casa, nada mais, nada menos, que ela própria, em carne e ossos, estava de volta a nossa querida Tina, parece que passou por dificuldades, na certa passou fome, havia emagrecido, o seu pelo estava um tanto amarrotado e sujo, denotava que havia dormido ao relento, sentiu saudades da nossa casa, e o mais importante é que não perdeu a sua humildade, nem o seu olhar terno e submisso, e ela foi recebida de braços abertos por todos, nós que a julgávamos perdida!
Decorrido algum tempo do seu regresso, notamos que a Tina estava mais barriguda, aquela barriga avantajada parece que a perturbava, e ela parecia envergonhada da arte que fizera, ficou um tanto arredia, mas nada daquilo impedia que víssemos que ela estava grávida, a sua fuga na verdade foi para atender os anseios da carne, com toda certeza a boa alimentação havia recuperado seu antigo vigor sexual, e ela se sentira novamente uma flor em botão pronta para ser fecundada, e para atender a tais vontades ela vagou pelas ruas na procura do seu príncipe encantado, e com toda certeza o encontrou...
Tamanho foi o nosso contentamento pela sua volta, que nem pensamos em repreendê-la ou maltratá-la pela escapada, nem a expulsamos pela barriga saliente, que agora mostrava a todos como que dissesse:
– Agora, eu preciso de maiores cuidados, pois eu estou grávida, preciso de carinho e de uma boa alimentação para que meus filhos nasçam fortes e sadios!
Num amanhecer qualquer, ao sair de casa ouvi francos grunhidos, atentei melhor e ouvi e vi que tais grunhidos estavam saindo do canil, e não foi surpresa alguma ver que a Tina havia dado a cria, agachado, adentrei ao canil, e ela toda orgulhosa me mostrava a sua meia dúzia de filhotes, asseadamente comia os restos da placenta e com todo o carinho do mundo lambia seus rebentos!
Concordamos que os filhotes ficariam com ela até serem desmamados, porque não tínhamos condições de ficar com todos eles! E assim foi, uma vez que os filhotes desmamaram colocamos uma plaqueta em nosso portão que dizia “Estamos doando filhotes de cão de raça”...
Pelo bem dos filhotes não informamos qual era a raça, pois se tratavam de legítimos Vira-latas, e logo em nosso portão se fez um alvoroço de pessoas indagando pelos filhotes, queriam vê-los, e uma vez visto, não tem quem não se engrace por um filhote de cachorro, e assim um a um os filhotes foram dados, um era presente para o filho, outro era presente para esposa, outro era num sei pra quem...
E por fim restou um filhote rabicó, além de rabicó mancava de uma das patas traseiras, com aquela aparência sofrida ele foi sobrando, enjeitado, mas era o xodó da mãe, mas tudo tem o seu dia, finalmente um pai desesperado com a tristeza do seu filho que viu seu cachorrinho ser atropelado e morrer, ele chegou na nossa casa e logo se engraçou com rabicó, tão feliz ficou que queria até pagar pelo filhote, o que não aceitamos, nós é que ficamos agradecidos por tê-lo levado.
Naquela noite ao regressar a nossa casa, após colocar o carro na garagem que ficava ao lado do canil, quando o motor do veículo foi silenciado, pelas frestas de um breve silêncio ouvi um gemido, aquilo era mais que um gemido, era um lamento, era um choro lastimoso, aqueles grunhidos eram de cortar o coração, e todos aqueles sons saiam do canil, curioso adentrei ao mesmo, foi quando encontrei a Tina deitada, com a cabeça entre as pernas dianteiras, até parece mentira, mas escorriam lágrimas dos seus olhos, ela chorava copiosamente sentindo a falta de seus filhos, aquela cena me marcou pra sempre, marcou mais que um ferro em brasa, ainda hoje eu carrego aqui dentro do meu peito aqueles momentos tristes vividos ao seu lado, a principio não sabia como proceder diante daquele fato inusitado, comovido abracei a Tina como se abraça em ente querido, abracei e apertei-a contra o meu peito com tamanha ternura, com tamanho respeito, que ela agradecida lambia o meu rosto, minhas mãos, e assim permanecemos abraçados por um longo tempo, tempo suficiente para que eu derramasse as minhas lágrimas, meu coração não resistiu a meiguice daquele momento, por fim, eu expliquei pra ela que os seus filhotes não poderiam permanecer ao seu lado, que era necessário doá-los, pior seria jogá-los pelas ruas, abandoná-los pelas estradas desertas, ou chegar ao extremo da crueldade matando-os, mas que tivemos todo cuidado de doá-los para pessoas que iriam cuidar deles com toda a ternura e dedicação!
Ela ouvia calada as minhas explicações, se entendia eu não sei, parece que entendia, parece que me compreendia, mas que nunca aceitaria de bom grado aquele acontecimento, não tem uma boa mãe que aceita que seus filhos lhe sejam tirados à força, apesar dos pesares ela voltou a sorrir...
Latiu, não mais um latido de tristeza, mas um latido misturado com lágrimas parecendo demonstrar compreensão...
E a Tina compreendeu até aquilo que não dissemos pra ela, nunca mais fugiu de casa, apesar do portão das vezes ficar aberto, no máximo que ela fazia era chegar até a calçada cheirar a tudo e a todos e voltava correndo para dentro da casa...
Engraçado, como tempo passa rápido, passou rápido demais para todos nós, principalmente para a Tina, que se envelheceu, adquiriu doenças e mais doenças, por fim uma hemorragia ceifou a sua vida!
Com todo carinho do mundo coloquei seu corpo na caminhonete, e ela não foi atirada numa barranqueira de um estradão qualquer, em nosso sítio, na sombra de uma imensa figueira, cavei uma cova e ali guardei o corpo da nossa inesquecível Tina, e para perpetuar por décadas afora lembranças daquela cadela inigualável, na cabeceira da sua cova cravei uma lasca de aroeira, e nela estava gravado em alto-relevo a palavra Tina!
Hoje, passado muitos anos da sua morte, a lasca de aroeira ainda esta cravada na cabeceira da sua sepultura, o tempo a ressequiu, a lasca se rachou, mas ainda da para ver o nome dela, Tina, uma cadela inesquecível!
Sentado na sombra desta figueira, fecho os olhos, clamo pela Tina, e nos meus sonhos lá vem ela pela estrada a toda velocidade, orelhas para traz, coladas na cabeça, boca aberta, língua ao vento, e ela salta sobre mim, ela esta toda feliz, sem perder aquela humildade cativante, lambe as minhas mãos, lambe o meu rosto, vivo momentos de felicidade...

Texto: 57 (do concurso) - A dupla

   Jonas olhou em volta e viu somente seus companheiros de infortúnio. Moradores de rua que se acomodavam como podiam embaixo do viaduto da Capital Paulista. Como chegara a este ponto? Sem conseguir dormir resolveu andar nas proximidades. Lembrou de Ângela, com quem estivera casado até que a falência de sua pequena franquia de roupas infantis entrasse em colapso. O amor não resistiu aos problemas financeiros. A moça voltou para a casa dos pais no interior do Estado. Os bens foram utilizados para pagamento dos credores e dívidas trabalhistas. Restou muito pouco. No início conseguia dormir e pequenos hotéis e pensões coletivas. Agora albergues da Prefeitura, quando possível. No mais, na rua.
     Ao amanhecer, foi até o boteco no qual o proprietário deixava que usasse o banheiro e lhe ofertava um café. Depois saiu puxando seu carrinho de sucata, o último investimento. Um carro freou próximo a ele e a mulher ao volante chorava muito. Em seguida empurrou para fora do automóvel um jovem e lindo cão pastor alemão.
     - Moço, cuide dele, pelo amor de Deus. Ele mordeu meu filho e meu marido vai matá-lo. Seu nome é Tobi.
     O cachorro estava desesperado e saiu correndo atrás do carro que arrancou com muita intensidade. Voltou até o atônito Jonas, que a tudo assistia. O incidente mudaria a vida de ambos.
     - Muito bem Tobi, meu amiguinho, agora somos nós dois, os rejeitados. Você é Jonas versão canina e eu Tobi, versão humana.
     Jonas chegou cursar a faculdade de Filosofia e tinha uma visão de mundo muito peculiar. Pensava – “o fundamental é manter o mínimo de dignidade”. Lavava  suas roupas com frequência na Pastoral e até Tobi tomava, às vezes, banho. Não demorou muito, dois outros cães de rua se juntaram a eles: Platão e Ari (Aristóteles). Agora formavam uma família.
     Tobi, protegia Jonas de maneira absurda. Não deixava ninguém se aproximar, dele ou de seu carrinho. Ari, não ficou muito tempo. Saiu atrás de uma cadelinha fogosa e nunca mais voltou. Platão sofria de constantes convulsões, preocupando seus companheiros. Numa das crises foi necessário pedir ajuda ao Dr. Luís, veterinário, que sempre passava a Jonas latinhas de alumínio e que conversava constantemente com Jonas.
     - Sinto muito. O cãozinho era cardíaco. Faleceu. Deixe que eu dou destino ao corpo.
     Tobi e Jonas sentados na calçada, estavam desolados. Um senhor aproximou-se dizendo chamar-se Antônio e ser o pai do veterinário Luís.
     - O senhor não descartaria uns itens velhos que tenho em casa?  Pago pelo serviço.
     Não era hábito de Jonas fazer este tipo de serviço, mas devia favor a Luís. Foi até a casa do Sr. Antônio e carregou o carrinho com os “itens”. Andou alguns quilômetros até encontrar um ecoponto para descartar o conteúdo. Quando ia saindo encontrou o Sr. Antônio que o seguira:
     - Vim me certificar de que você não descartaria em qualquer lugar. Parabéns. Além disso, o Luís falou-me do senhor: O reciclador-filósofo. Tenho uma proposta a lhe fazer...
     Jonas não acreditava, o Sr. Antônio ofereceu a ele e Tobi um lugar para morar,  numa pequena casa no terreno ao lado da sua . Seria uma espécie de caseiro e impediria invasões.
     - Eu estava para ampliar a minha casa, mas minha mulher morreu e eu desisti do projeto. O terreno ficou lá, vazio. Além disso, você poderá continuar normalmente, com suas atividades de reciclagem.
     A vida mudou, Tobi corria pelo quintal, comia ração e tomava banhos semanais. Desta parte ele não parecia gostar muito.
     Tudo mudaria numa noite quando a dupla foi acordada por gritos. Correram até a casa do Sr. Antônio. Houve um assalto. Os bandidos agrediram gravemente o dono da casa. Tobi foi decisivo: correu atrás dos ladrões, que fugiram. Chegaram a atirar, mas não o atingiram.
     A polícia foi chamada pelos vizinhos. Levaram Jonas como suspeito de facilitar o assalto.
     A detenção durou uma semana, na qual houve agressões dos policiais para obterem uma confissão, coisa que não aconteceu e , ainda,  dos “companheiros de cela”. Foi solto por falta de provas e pela intervenção do Sr. Antônio, logo após sair do hospital.
     Ao voltar para casa, Jonas resolver agradecer ao Sr. Antônio e saber de sua saúde. Na varanda escutou a voz de D.Diva, irmã do convalescente:
     - Você tem que se livrar desse morador de rua. Será que ele realmente não participou do assalto? Do cão já me livrei. Deixei o portão aberto e ele sumiu.
     “Hora de ir embora”, pensou Jonas. Por onde anda o Tobi?”
     Colocou o pouco que tinha numa velha mochila e saiu empurrando seu carrinho. O Sr. Antônio estava na varanda. Ambos acenaram. Sabiam que não era apenas um aceno, mas sim um adeus. Deixou o carrinho na cooperativa de catadores e saiu sem rumo à procura de Tobi.
     Ninguém mais viu o reciclador-filósofo ou seu cão. Numa viagem de carro a Minas Gerais, Luís afirma ter visto um homem com um cão na estrada. Tinham as mesmas características da dupla que deixou saudades. Tornaram-se andarilhos?  Não pode afirmar com certeza. Espera sinceramente que sejam eles. Seria ótimo que  fossem...