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segunda-feira, 16 de novembro de 2020

ESPECTROS

 




[Gerson de Carvalho Silva]

André nasceu e cresceu na Vila do Alto da Serra. O nome do local havia mudado fazia bastante tempo, mas alguns preferiam o original. A vila ferroviária de origem inglesa era constituída por casas de madeira, um “castelo” onde originalmente morava o engenheiro chefe e um relógio que imitava o Big Ben. O menino cresceu explorando a mata ao redor que se estendia até o mar, passando a conhecê-la muito bem, às vezes servindo de guia para gente de fora. Estudou na pequena escola do local, onde sua avó era professora. Esta lhe contava histórias do folclore indígena como a do Anhangá, demônio protetor das matas. Ouvia também lendas europeias, trazidas pelos ingleses, como o Cernunnos, o deus cervo. Além disso, segundo algumas lendas, os protetores das florestas poderiam assumir formas humanas e almas perambulavam pelas matas, tentando entender o que lhes tinha acontecido.

Certa manhã, André já adolescente, ouviu vozes vindas da mata e, aproximando-se teve uma visão pouco nítida, espectral, de um casal com roupas antigas vagando pela mata. De repente, desapareceram e ele com medo, correu e nunca falou sobre isso.

André fez faculdade e estudou no exterior. Morando em São Paulo, ficou sabendo da Festa do Cambuci, fruta nativa, sua preferida na infância. Voltando à vila, observou que a ferrovia não descia mais a serra para o litoral e seus equipamentos estavam abandonados. Seus pais e avós haviam falecido e ele passou boa parte da noite tomando cachaça com cambuci. Sentiu-se mal e foi para próximo de sua floresta querida, para tentar se recuperar. Novamente ouviu vozes vindas da floresta e o mesmo casal apareceu, encarando-o com certo olhar de surpresa.

[Alice Gomes]

André soltou um berro que se podia ouvir a um quilômetro! Ao sentir que duas mãos lhe sacudiam, retorceu o corpo e encolheu as pernas, na tentativa desesperada de se levantar e sair correndo. Sem coragem de abrir os olhos custou a reconhecer a voz de Tiago, o amigo de infância com quem bebera na noite passada.

- André! André! Acorda! O que você tá fazendo deitado aqui no meio do mato? Acorda!

Primeiro um olho, depois o outro, os dois... e o alívio!  Estava vivo! - Ou o amigo também tinha morrido - ainda pensou por um instante.

Enquanto Thiago se esborrachava de rir da sua cara de pavor, André se acalmava. Aceitou a mão estendida e tentou ficar em pé, mas as pernas fraquejaram.  Permaneceu sentado no chão por alguns minutos, tocando-se, até se certificar que ainda estava inteiro.  Tiago arrependeu-se de tripudiar do sofrimento de André ao ver seu estado e, em tom mais sério, lhe afagou as costas, para o tranquilizar.

-Não sabia que você era tão fraco pra bebida. Acabou dormindo aqui, foi?

- F...Foi... respondeu André, envergonhado ao perceber o dia claro e vários outros amigos à sua volta. Levantou-se rapidamente. Precisava urgentemente estar só, para colocar ordem nos pensamentos.

Já no hotel e com a cabeça sob a ducha fria, tentou se lembrar de todos os detalhes da noite interior. - Não foi sonho. Não foi bebedeira. Eu os vi e não foi a primeira vez. E, dessa vez, ELES me viram! - repetia para si mesmo e a cada vez que repetia um novo calafrio.- Porque,  uma coisa é você ver uma coisa, outra coisa é a coisa te ver! Agora não adianta mais simplesmente não ir mais à floresta. Quem garante que eles não venham até mim, onde eu estiver? Uma coisa é certa: uma hora terei de enfrentar, com medo ou sem medo - Encorajou-se. Tomaria uma atitude. Mas, por onde começar? Teria de falar com alguém sobre o ocorrido, mas e o medo de o ridicularizarem? - Dane-se! Vou começar pelo Tiago.

Tiago, depois de rir bastante, lhe disse que nunca ouvira nada sobre o casal de fantasmas. - Fantasmas, Tiago? Sou homem de acreditar em fantasmas? - Ora, André, temos que dar um nome para eles. Se não são fantasmas são o que? - Espectros, fica melhor. - Tá, espectros. Vamos pensar, então: Por que só você vê esses espectros? Por que os vê somente na floresta, o que fazem lá? Seriam seres raivosos em busca de vingança ou querem ir embora mas não podem? Seriam aqueles seres mitológicos, guardiões de florestas? Seriam antepassados seus, querendo te indicar um tesouro escondido na floresta? Ou te fazer algum pedido? Seriam seres de outros tempos, outras dimensões? Seriam... - Chega, Tiago! Você não tá ajudando em nada, só me deixando mais confuso! Preciso de ajuda profissional. Um psiquiatra, um padre, um ufólogo,  sei lá.

- E se você perguntasse pra mãe Cida? Lembra dela? Aquela benzedeira que morava sozinha naquela casa cheia de gatos? Aquela casa, no final da nossa rua, que a gente achava mal-assombrada? Ela tá velhinha mas ainda vive. Dizem que bugou de vez, agora fala com os mortos. - Benzedeira, Tiago? Que fala com os mortos, Tiago? - Ah, não se sabe. Nunca ouviu o ditado? Há mais coisas entre o céu e a terra, esqueci o resto. - Verdade, quem sou eu pra chamar alguém de doido, a essa altura? Doido com doido se entende. Está decidido, vamos começar pela Mãe Cida. - E lá seguiram, o cético (pero no mucho) André e o curioso amigo Tiago, em direção à casa "mal-assombrada" do final da rua...

[Maria Mineira]

Os dois rapazes caminharam lado a lado, mas não trocaram palavra.  Era dia alto quando chegaram à casa de mãe Cida, que na verdade morava bem depois do final da rua, já era quase mato fechado o local de seu casebre. Bateram na porta e ninguém apareceu. Só se via gatos de todas as cores, espalhados pelo terreiro, no telhado e janelas.

Olharam em volta e de repente, por trás de uma enorme mangueira, surgiu  uma velha corcunda, com cabelos brancos despenteados. Seu olhar era  torto e os dentes falhados, foi logo dizendo:

– Que se assucedi aqui, dois minino?

– Mãe Cida, não se lembra da gente? 

– Sou o Tiago, neto da dona Josefa  e ele é o André,  da dona  Marita! Morávamos nessa mesma rua!

– Ahhh, se alembro! Era vaçuncêis que vivia robano as manga e estumano aquele cachorrão nos meus gato! Mi diga uma coisa, minino, o Paulo, seu avô inda é vivo? 

– Infelizmente não, mãe Cida. Faleceu há mais de 10 anos. – Disse André lembrando-se com saudades de seu avó.

– Antonce só resta vassuncê mais ieu... resmungou a velha senhora para si mesma. Thiago não percebeu, mas André pressentiu algo naquela frase misteriosa.

– Viero fazê o quê na casa de uma véia? Se fô benzição pá mode curá cobrêro, pode intrá. Quebranto eu benzo só criança de colo.

Era um pequeno cômodo com apenas um fogão a lenha, uma mesa e uma cama. Em cima das cinzas se espreguiçava um enorme gato preto de olhos amarelos que se fixaram estranhamente em André. Mãe Cida mandou os jovens se sentarem e dirigiu-se ao pequeno oratório onde havia três velas acesas.

André  tentou por várias vezes, falar sobre o que havia visto na noite anterior. A benzedeira sem prestar atenção em nenhuma de suas palavras, continuou espalhando seu incenso e batendo com galhos de arruda em seus ombros, enquanto murmurava em voz muito baixa, as suas rezas. Ao terminar os conduziu até a porta, sem ao menos se despedir...

– Tá vendo, Thiago? Que brilhante ideia, heim, meu velho? Mãe Cida deve já estar com um pé na cova de tão caduca. Nem prestou atenção no que eu perguntava.

– Me desculpa, André, apenas tentei ajudar.

Thiago não viu, porque estava na frente um tanto sem graça, mas no meio do caminho, surgido não se sabe de onde, o gato preto de olho amarelo, parou na frente de André, parecia dizer algo...Naquela noite o rapaz não dormiu, voltaria sozinho no outro dia...

Foi o que fez. O dia ainda clareava quando ele chegou em frente ao casebre. A mulher o aguardava ao pé da árvore.

– Achei que não viria! – disse aquela mulher que já não se disfarçava de anciã maltrapilha, ao segurar firme a mão de André.

O rapaz deixou-se conduzir. O local evocava uma aura de floresta noturna, atingida por leve brisa misturada a uma  bruma que pairava no ar deixando-o etéreo como em um sonho. André não sentia seus pés tropeçando nas raízes da densa mata. Apenas levitava naquela atmosfera onírica sem saber para onde estava sendo levado. Quando cessou a viagem, estavam à frente de um pequeno lago, onde a mulher fez  na água, um círculo com a mão direita e abriu uma passagem.

–  Meu jovem, considera-se  pronto para ser iniciado?

[Helena Souza]

André não se lembrava de como havia atravessado aquele lugar. O estranho é que não havia molhado suas roupas e um frio percorreu seu corpo até os ossos.

Começou a seguir a estranha mulher que não era mais a figura curvada de mãe Cida.  Não havia sol. Seu relógio marcava pouco mais de 7 da manhã. As sombras encobriam  a floresta e ele viu na sua frente um  caminho que ondulava e sumia entre as  árvores centenárias.

Estava assustado, mas não tinha como voltar atrás. O jeito era seguir cada vez mais rápido aquele vulto que parecia voar e  vez em quando o chamava pelo nome, verificando se ele ainda a seguia.

Enquanto avançava  mata adentro, pensava consigo mesmo: o que eu estou fazendo aqui? Devo ter enlouquecido, ou será que Thiago colocou algo em minha bebida?

Ao ouvir um estranho barulho, André tentou chamar a mulher que o conduzia, porém não viu mais ninguém à sua frente. Escondeu-se  atrás de um grande tronco de árvore  e um suor gelado descia pela sua testa.  Nesse momento avistou  algo  oculto pelo crepúsculo. Encolheu os ombros e esperou pelo pior,  pois logo adiante,  perto de uma curva do caminho estavam ali!  Ele não conseguia entender ainda, mas o que ele viu mudou....

[Gerson de Carvalho Silva] - final

Uma densa neblina, bastante comum na região, cobria tudo. André, ainda amedrontado ouviu um som de algo que se aproximava. Levantou-se e andou alguns metros e, do alto, visualizou algo que o deixou perplexo: nos trilhos abandonados passava um trem. Não um trem qualquer, mas uma “Maria Fumaça”, que ao passar por ele, o maquinista acenou.

- Pai? Impossível. Além de já ter morrido, não era esse tipo de trem que operava.

- Não é seu pai – disse a voz da mulher que assumira ser mãe Cida – é seu trisavô. Eram muito parecidos. Vem comigo.

O rapaz a seguiu com um autômato. Com dificuldade conseguiu ver mais alguns dos espectros. A mulher lhe esclareceu que eram pessoas que de alguma forma se ligaram à floresta.

- Tá vendo aqueles índios? São da tribo dos Guaianases que foram os primeiros habitantes humanos. Haviam outros, com roupas de diferentes épocas. O casal que  você viu, ficou surpreso porque não era pra você vir agora. Os escolhidos os veem na infância, como no seu caso, e depois de certo tempo são incorporados.

- E você, perguntou à mulher,  o que realmente é?

- Sou uma espécie de espírito da floresta. Assumo várias formas. Anhangá é o nome que os índios me deram.

- Estou morto? Perguntou André.

- Não necessariamente, mas já faz parte da floresta.

- E o Thiago, o que aconteceu com ele?

- Nada. Mas também será incorporado. Depois.

O Sol chegou e a neblina começou a se dissipar. A Vila, agora turística começava despertar, sem saber que era protegida pela Floresta ao seu redor e seus guardiões. Estes podem vagar em certas noites frias com neblina pelas ruas e vielas. Alguns os veem, principalmente crianças, bêbados, pessoas com percepção diferenciada e animais domésticos.


Autores: Helena Souza, Alice Gomes, Maria Mineira e Gerson de Carvalho Silva


quarta-feira, 11 de novembro de 2020

O VISCONDE ENCANTADO

 



Carlos A. Lopes

Nos últimos dias não se respirou outro assunto na cidade. O jornal fazia e refazia alardes, enaltecia e repetia o dia e a hora do evento. Até que o dia chegou e parte da população se alvoroçou para conhecer em carne e osso o tão esbravejado visitante. 

Ninguém reclamava, pois valia a pena todos os esforços. A grande maioria queria conhecer  alguém de sangue azul, para tanto, valia deixar os afazeres de lado.

Estavam presentes no palanque, o governador, secretários e outras autoridades constituídas e  onde se destacava uma bela jovem de cabelos escuros, corpo enxuto e um quadril de fazer inveja. Era Dora. Filha única do secretário de governo e ex-prefeito da cidade. 

No mais, tudo parecia ser uma festa fora de época. Tinha a figura do galanteador, jogadores, dezenas de máquinas de tirar retrato, e pintores registrando o movimento que mais parecia uma feira de interior.

Os dias se sucediam dando lugar a resignação. A cada novo dia boatos inspiravam novas interpretações. E por aí tudo transcorria: um grito aqui, outro ali, uma coruja que piava, tudo desviava a atenção, mas cada vez despertando menos curiosidade e diminuindo a certeza de um desfecho alegre para aquela história. 

Dora, desfalecida do corpo, admitia estar de pernas moídas de tão cansada, também desiludida. Sentia arrepios, não de frio, mas por causa de uma solidão, que deixava o seu coração inquieto e perturbado. 

Fora aconselhada a não voltar ao Jiquiá, pelos perigos que agora o lugar quase deserto podia lhe causar. Ela se sentia culpada pelo que viesse de ruim a acontecer. Dora tinha em mãos cartas e mais cartas que tratavam dos perigos da ousadia de um aviador lunático. Na grande maioria delas, ela lhe enviara respostas de reprovação. Porém agora se lamentava e entendia que lhe faltava mais firmeza nas suas respostas.

Tratava-se do Visconde de Saint-Roman, um homem de virtudes e negócios recompensados, entretanto, sobre seus ombros pesavam alguns atritos diplomáticos, mas nada que abalasse a reputação familiar. A sua autoridade irresistível às vezes imaginativa e exuberante, não disfarçava suas variadas fantasias. Vez ou outra não se opunha a uma verdadeira quimera, sendo o mais lunático dos nobres.

Em todo caso, ele decolou de Saint-Louis no dia 15 de junho de 1936, às seis da manhã, em um voo descrito pelos jornais como um salto sobre o Atlântico, com data e hora de chegada. Dias depois restos do seu avião foram encontrados no extremo noroeste da região Nordeste, bem distante da rota planejada. Contam os ribeirinhos tê-lo visto se arrastando pelas proximidades dos  destroços do avião envoltos em chamas. Também contavam do movimento vítreo dos olhos que assustava pela inquietude e vontade de não se entregar ao destino.

Conceição Padilha

Era muito grande a decepção sentida por todos, com a não chegada do esperado e ilustre aviador. Foram tantos preparativos para o evento, desde  o figurino dos convidados até o feriado municipal.

Porém toda o sensacionalismo que acompanhou a  espera foi substituído pela dúvida e muitos questionamentos pairando no ar. Onde andaria o nobre Visconde?  Estaria ele se permitindo ter o comportamento de um aviador maluco  e saltado do avião nos ares? Ou teria ele escapulido de tudo, tendo para isso usado de toda a sua esperteza?

O comentário era geral, não se falava em outra coisa por toda cidade: que fim terá tido o lunático aviador? O jovem Visconde?

O coração de  Dora sofre ao lembrar da forma como conheceu o jovem Roman, quando, escondida dos pais, foi a Inauguração do pequeno campo de pouso. Quando não resistiu o olhar maneiro do gentil piloto e nem tampouco  recusou o convite para um rápido encontro nos emaranhados de arbustos de um parque próximo. Depois foram cartas e mais cartas, onde ele  descrevia suas aventuras e peripécias em suas acrobacias aéreas.

Dora chora a incerteza sobre o paradeiro do seu amor. Mas consola-se levando a mão ao ventre, lembrando que não está mais só.

Socorro Beltrão

Passados três meses, Dora não tem mais como esconder dos pais a gravidez. Estava cada vez mais preocupada com a reação deles, o pai não era problema, até a ajudaria, mas a mãe ia causar uma grande tempestade. E, também estava preocupada com o paradeiro de Roman, o seu Visconde. Conseguiu esconder os enjoos matinais. A princípio perdeu peso, mas agora, engordava a olhos vistos. Já tinha lido quase todos os livros da Biblioteca do avô, leitor inveterado, deixara um belo acervo. Herdara do avô o gosto pela leitura. Já era do seu costume passar horas ali, lendo. Onde podia ficar quietinha, "lendo", sem ter que responder aos questionamentos da mãe. Queria ficar sozinha para pensar e sonhar com o seu amado.  Ele voltaria. Foi só um acidente. O amor que os unia era mais forte e o manteria vivo... Agora, naquele recanto, o coração oprimido, fazia suas próprias conjecturas. Roman tinha sido atraído por ela. E foi recíproco.  Não podia ser falso o sentimento que os uniu. Ele não a enganou, não fez juras de amor ou lhe prometeu um futuro de princesa. Não a seduziu. Eles viveram um momento de união de corpos e almas. Foi mágico e Dora faria tudo novamente. Não estava arrependida. Mas precisava encontrar uma maneira de contar aos pais que seriam avós. Era urgente. Tinha que se decidir. Saiu para dar uma volta, estava numa loja, já próximo ao casarão onde morava, quando sofreu um desmaio. Seu pai foi chamado às pressas. Preocupado chegou ao local, para encontrar sua filhinha, sentada numa cadeira, branca como cera, chorando copiosamente. Carinhoso, a abraçou, convidando-a para voltarem para casa, antes que chegasse aos ouvidos de sua mãe, o ocorrido. Mas, Dora pediu para antes irem a cafeteria. Alegando estar em jejum. O que foi uma boa ideia, pois explicaria aos presentes o motivo do desmaio. 

Assim que chegaram ao local, o pai providenciou café e guloseimas e Dora confessou o que estava se passando. Deixando claro ao pai, não ter sido seduzida. Que foi recíproco e que Roman seria o amor de sua vida. Afirmou com muita certeza que ele estava vivo. Seu pai homem compreensivo que era, a ouviu e...

Cristhian Dias

Seu pai homem compreensivo que era, a ouviu e com muita alegria abraçou a filha e assegurou de que não deserdaria a moça, mesmo que fosse o pior de todos os pecados, ele nunca deixaria sua menina à mercê da pobreza, muito menos, a criança que Dora esperava. O pai prevendo a reação da esposa, recomendou a filha que preparasse um banquete naquela noite, para a sra. Helena,  sua mãe, e que depois de tantos agrados, ouvisse dos próprios lábios da filha, o segredo que ela já não conseguia mais esconder.

Era visível a preocupação de Dora em sua face, já em seu coração, o Criador ouvia sua prece silenciosa: “Ó Bom Deus, perdoai as minhas falhas, mas concede-me por tua graça, lábios persuasivos para com minha mãe”. Depois de um abraço, pai e filha voltaram para a Mansão, mas, infelizmente, uma das criadas, por sinal, a mais perversa, ouviu cada uma das palavras e tendo nutrido inveja, desde mocinha, pela beleza e pelo luxo que a srta. Dora possuía, foi então, procurar Dona Helena para lhe contar sobre os últimos acontecimentos.

A sra. Helena demorou-se muito para atender sua criada, pois conversava com senhoras da alta sociedade que se gabavam pelos bens que possuíam ou pelos filhos que estavam a estudar no exterior. Ao terminar a  conversa da senhora, a criada de nome Emília, se dirigiu, logo ao aposento e pôs-se  a falar, até mesmo, sem se lembrar das reverencias às quais estava acostumada a prestar para com os patrões. Quando a garota encerrou, a sra. Helena soltou um forte e estridente grito de fúria, que fez com que uma das pobres empregadas que estava a finalizar o banquete, quebrasse um dos preciosos pratos italianos, que Jorge e Helena haviam ganhado de presente de casamento.

Carlos A. Lopes

E como raiva de mãe é tão passageiro como visita de beija flor, entre prantos de mãe e filha, veio a calmaria familiar. Mas Dona Helena quis saber tim-tim por tim-tim de toda a história. Desfazendo o maço de cartas, cronologicamente, Dora ia deixando a mãe ciente dos seus segredos amorosos.

Tudo começou na euforia do carnaval de Nice. Na ocasião, Dora se impressionou com os atributos físico de Roman e em poucos dias já frequentava o belo apartamento que ele mantinha em plena Rua Boulevard de Courcelles, próximo ao Arco do Triunfo. 

Dora não adivinhava até onde aquele sonho podia durar. E nessa euforia de fins de tarde, quando deu por si, já estava envolvida demais para repensar os passos. E na solidão do seu quarto de hotel o remorso a fez encurtar sua estada em Paris.

Roman só se conformou com a ausência da amada, na garantia que por meio diplomático poderia reencontrar Dora no Brasil. Não tardou a vir ao Recife. Numa visita do casal ao Jequiá, quando conhecia a torre de atracação de Zepelins, juntos puderem  reviver  momentos de paixão e foi justamente nessa ocasião que Dora engravidou.

Depois da partida do Visconde, Dora parecia uma boneca sem corda. Após o escândalo do tal banquete, Dona Helena só se alterou com a leitura da última carta lida, sob a condição de morte imposta a Dora caso ela não retornasse à França na companhia de Roman. Dizia que estando ele vivo ou morto, trataria de arrancar-lhe o filho, mesmo que fosse igual a um lobo selvagem. Afinal, este filho faz parte da  sua premonição, seria o responsável pela redenção social da nobreza familiar. 

A leitura da carta foi interrompida pela zoada da explosão de um motor em frangalhos, sobre o telhado da casa. Momentos de silêncio quebrados apenas pelo tilintar da campainha no portão da rua. Tocou uma vez, duas vezes e parou. Dora se dirigiu até a janela do seu quarto e não avistou ninguém, apenas sentiu uma rajada de vento vindo diretamente ao seu encontro. De repente escuta-se o ranger do portão a abrir-se lentamente. Algo se apossou do ar. Uma invasão de misteriosa fumaça escura. Por mais que tentasse não entendia se tratar de algo natural. O cheiro de enxofre e aquele som esquisito de alguém arrastando correntes, deixou a todos em pânico. O inusitado se aproximava cada vez mais, até que finalmente Roman se apresentou na porta do quarto, favorecido pelo luz vinda da janela. Parecia igual a história contada pelos ribeirinhos no momento do acidente com o avião: seu rosto tinha a cor de chumbo, o brilho dos olhos apagara-se e de tão queimado, o branco dos seus ossos era percebido na pele. Restava-lhe um sopro de vida, uma tentativa de encontrar em alguma brisa mágica, o acalanto final, que o devolveria às condições de almejar o seu último propósito.

E se alguém quer saber o que houve com o  casarão depois dos fatos acontecidos, diria que quase nada. A enorme moradia vive às ruínas. Depois daquele 1936 poucos ousaram viver ali, mesmo assim por pouco tempo. Há quem conte de portas que se abrem sozinhas, de sangue escorrendo em  retratos e imagens de gesso. Além de tantas aberrações, ainda vez por outra, ouve-se aquela maldita zoada de um avião em destroços sobre o telhado. E por fim, sobre o destino do filho de Dora, extraído do seu corpo enquanto a mãe agonizava, possivelmente é um francês bem sucedido, cuja missão nesta vida seria alavancar a dignidade de uma nobreza em ruínas.


Autores: Maria Conceição Padilha, Socorro Beltrão, Carlos A. Lopes e Cristhian Dias

terça-feira, 10 de novembro de 2020

EXCESSO DE AMOR, ATRAPALHA?

 - Cléa Magnani

 

Quando Ivo nasceu, Júlio e Eulália, que já eram os pais de Ana de 2 anos, a família estava completa. Júlio aos 35 anos herdara a empresa de seu pai, com quem trabalhou desde os 16 anos, e achava que seus filhos teriam uma vida mais tranquila do que a dele. Estudariam, e jamais teriam de trabalhar, como ele, que deixou seus estudos assim que terminou o ginasial para ajudar ao seu pai. Mas foi a falta de responsabilidades e do valor do trabalho, que transformou seu filho no maior problema de sua vida...

Ao terminar o Colegial, Ivo não quis continuar seus estudos. Tinha tudo o que quisesse... carro do ano, motos, roupas de marca, saía todas as noites, passava semanas na chácara em uma cidade próxima à Ribeirão Preto, ou na casa de praia, no Guarujá. Tinha muitos amigos de noitadas, mesada farta, e muitas namoradinhas.

As relações entre Júlio e Eulália não iam muito bem. Ela não se conformava com a excessiva liberdade que ele dava ao filho, e Júlio acabou se envolvendo com a melhor amiga da própria esposa e ela teve um filho dele. Quando soube, Ivo ficou muito revoltado contra o pai, e ainda mais contra a mãe, que aceitou a traição; o que o fez sair de casa. Foi morar na chácara onde terminou por engravidar uma das garotas que fazia parte do grupo de amigos da cidade. Não assumiu a paternidade do bebê, mesmo depois da prova do DNA haver confirmado ser ele o pai de Luiz Henrique. Eulália então passou a cuidar do netinho, que a namorada do filho não teria condições de criar sozinha.  Ivo entrou em profunda depressão; tentou o suicídio várias vezes, e em todas as vezes foi socorrido por Eulália. Foi internado para tratamento, fugiu do hospital, reencontrou a mãe de Luiz Henrique e teve outro filho com ela. Os tratamentos para a Depressão o tornaram bipolar, e as alterações de seu humor o impediam de arrumar trabalho...

 

– Alberto Vasconcelos

 

Ainda reverberavam dentro da cabeça de Júlio, o som intermitente do monitor cardíaco instalado no braço de Ivo, inerte naquele cubículo do CTI para onde fora levado depois de mais uma tentativa frustrada de suicídio, assim como as duras palavras de sua filha. Era madrugada e a sala de espera estava vazia, como vazio estava sua vida depois de rememorar esses 24 anos desde o nascimento do filho, tão querido, tão amado, mas que desde a mais tenra idade só havia dado desgostos à família. Quanta diferença entre ele e Ana. Sempre estudiosa. Jamais havia aceitado ajuda para fazer as tarefas escolares. Médica pediatra, sempre arredia às amizades estreitas ou a sair de casa sem hora para voltar. Estivera no hospital para ver o irmão, mas negou-se a agir como médica. Foi bem clara com o pai, quando disse que ela não fazia parte da equipe de plantão, nem era neurocirurgiã para retirar a bala alojada no crâneo do seu irmão. Um sujeito tolo, arrogante e irresponsável, resultado da criação que ele, seu pai, havia dado, justificando todos os malfeitos e assumindo a responsabilidade por quaisquer atos, como a criação de Luiz Henrique ou as remessas de dinheiro para o sustento de Leonardo, o outro filho de Ivo que ele não teve a decência de registrar nem eles o conheciam. Lamentar-se não iria resolver a situação. Sabia-se responsável, ou pelo menos, coautor da maneira de ser do filho. Ele também havia abandonado o filho bastardo que nunca vira nem sabia o nome, não sabia sequer se menino ou menina. Mas algo definitivo precisava ser feito. Se iria servir para remediar ou não, aquela situação incômoda só o tempo diria.

 

– José Bueno Lima

 

Veio-lhe logo no seu íntimo, a vontade de salvar Ivo. Sabia da existência de um ótimo neurocirurgião carioca, famoso por seus casos de cirurgia cerebral, e tendo condições financeiras para tanto, em menos de três horas, lá chegava o profissional, vindo de helicóptero. Depois de oito horas de duração, em uma operação magnífica, Ivo voltava para a UTI, com um quadro sensivelmente cheio esperanças. A bala fora retirada sem atingir partes essenciais do cérebro. Algo definitivo precisaria ser feito, Júlio voltou a pensar. Seu primeiro passo foi procurar o rebento que tivera com a melhor amiga de Eulália.  Não foi difícil, pois a menina e a mãe moravam na mesma cidade dele. Chamava-se Simone. Assumiu a paternidade e passou a remeter verba necessária para seu sustento, educação e saúde. Tinha idade na mesma faixa de Leonardo, o segundo filho de Ivo, que também foi localizado. Este com a aquiescência da mãe, passou a viver também em sua casa, juntamente com Luiz Henrique. Ali cresceram, estudaram, e se formaram. Ivo passou a viver com a mulher que lhe deu os filhos, teve uma melhora com a ajuda de psicólogos, remédios, e na medida do possível auxiliava o pai a administrar a empresa. Luiz Henrique formou-se engenheiro, e Leonardo economista. Júlio, já com a idade avançada, fez um testamento determinando a divisão de seu patrimônio, de acordo com a lei. Tudo caminhava normal, até a morte de Júlio. Quando menos se esperava, estando o inventário já em fase de encerramento, numa perícia contábil feita na empresa, foram encontrados diversas falhas e desvio de dinheiro.

 

– Gabriel Ellos

 

A família de Júlio quis saber o que estava acontecendo e quais eram as razões para todos aqueles erros. A surpresa veio logo, tudo aquilo tinha explicação.
Na época em que Ivo fora baleado, Júlio acabara repensando toda sua vida e se empenhou em ser melhor, aos poucos foi conhecendo Simone e captando detalhes que mudariam e muito sua vida, nessa aproximação, Júlio se deu conta de que Simone era a linha tênue entre seus filhos. Ivo era inconsequente, Ana era extremamente centrada, um não tinha vida e o outro não valorizava a que tinha, mas Simone era diferente, não teve a vida de seus irmãos e, no entanto, não reclamava de nada, a garota era só doçura. Júlio sentia a necessidade de ajudar a filha, apenas as contribuições já feitas não bastavam, ele queria provar que havia mudado, mas sabia que só tinha dinheiro e então aí surgiu a terrível ideia de desviar dinheiro para beneficiar Simone, que de nada sabia. O pai não agia sozinho, Ivo sabia das ações e ajudava, para ele era o correto. Abriram uma conta secreta para garantir o futuro da doce Simone. Óbvio que tais ações chegariam ao fim com a morte de Júlio e então após a perícia contábil, Ivo precisou contar tudo e foi assertivo ao dizer que tudo havia sido planejado pelo pai e que os desvios não causariam grandes problemas, foi firme ao afirmar que, se fosse necessário, assumiria toda a responsabilidade das ações cometidas por ele e seu pai. Eulália e Ana não diziam sequer um A, não por desaprovação, mas sim por orgulho, foram poucas as vezes na vida que Ivo tomara atitudes corretas. Tudo parecia ótimo até que Simone ficou sabendo dos fatos que haviam escondido dela.


- Cléa Magnani

Ao conhecer a família de seu pai, Simone não conseguia compreender como Eulália, uma mulher tão resignada e preocupada com o bem-estar de todos, que sempre esteve presente nos piores momentos da vida de Ivo, poderia ter sido traída por Júlio, sem reagir. As comparações entre a legítima esposa de seu pai, dedicada ao extremo à família, e seu pai, tão omisso na educação de Ivo, onde o dinheiro substituía o carinho, a atenção, as conversas educativas, a sua presença enfim, eram gritantes. E sua primeira reação foi de indignação. Jamais aceitaria que seu pai e seu irmão houvessem retirado dinheiro da fábrica para ajudá-la a ser criada por sua mãe irresponsável, que traiu a melhor amiga com seu marido. A jovem, revoltada pediu que se reunisse a família e disse que restituiria centavo por centavo, tudo o que Júlio e Ivo desviaram para o seu próprio sustento e educação. Depois de longa conversa com Ivo, Júlia Luiz Henrique e Leonardo, decidiram que não era o momento de tentarem reverter a história. Compreenderam que Júlio apesar de nunca procurar trazer Ivo para o seu lado quando menino ou adolescente, o amava muito, e que por não querer que o filho tivesse a vida de trabalho que ele teve, extrapolou numa liberdade exagerada, onde o jovem sempre teve o que quis, e que sem o freio que a Educação ensina, resolveu seguir os seus instintos, e acabou fazendo tantas coisas erradas na vida. Os frutos dessa irresponsabilidade, seus dois filhos, hoje estariam sabe-se lá como, caso Júlio, não os houvesse acolhido em sua casa. E o mesmo aconteceu com Simone, que se não fosse ajudada secretamente por Júlio e Ivo, também poderia ter-se perdido pois sua mãe já provara que responsabilidade era uma coisa que ela não tinha ao trair a maior amiga. Decidiram então colocar uma pedra sobre o passado, e partir para a ajuda a entidades beneficentes de atendimentos às mães solteiras, e crianças órfãs ou abandonadas, com parte da herança de cada um.

O Amor é um sentimento sem limites. Porém quando desorientado, demasiado e obsessivo, pode atrapalhar...



AUTORES: JOSÉ BUENO LIMA, ALBERTO VASCONCELOS, GABRIEL ELLOS E

CLÉA MAGNANI

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

TÍTULO: TROPEÇO

 – José Bueno Lima

Assim que desceu do taxi, e retirou suas malas, Everardo notou a casa abandonada. As janelas cerradas, com aspecto sujo, a porta, igualmente empoeirada, tinha seu rodapé cheio de folhas secas. Ficava num bairro de classe média da capital de São Paulo, na Saúde. Tudo aconteceu há um ano. Executivo de uma multinacional, Everardo chegou a esse posto galgando degrau por degrau. Começou como simples escriturário, no setor de compras.  Inteligente, e mais que isso, voluntarioso, demonstrava grande interesse em aprender tudo o que fosse útil. Assim, angariou a simpatia de seus superiores. E, foi crescendo na empresa. Supervisor, chefe, assessor da diretoria e, finalmente, conquistou um cargo de diretor. Além de respeitado como profissional, sempre teve um procedimento muito simples, tratando seus subordinados com muito carinho, sem nunca perder a autoridade. Ademais, como a matriz da empresa se situava na Alemanha, a cada mês, mês e meio, havia necessidade de para lá viajar. Paralelamente, a vida social de Everardo se modificou de forma total. Por ser o executivo da empresa, sentia-se obrigado a frequentar os eventos sociais. Vindo de família simples, e tendo se casado com uma mulher que como ele vindo do interior, não acostumada a participar desse tipo de eventos, ele sempre comparecia aos mesmos desacompanhado. Com 25 anos, boa aparência, simpático, bem-posto profissionalmente, não foi difícil despertar o interesse do sexo feminino. Everardo resistiu por um bom tempo. Pensava na mulher, fiel companheira, no filho. Chegou um momento, todavia, em que a fortaleza sucumbiu.

 – Cléa Magnani

Num evento de final de ano, quando a Empresa promoveu um jantar regado a vinhos alemães, após os aperitivos, e brindes ao sucesso do ano que se findava, a chuva costumeira, de dezembro em São Paulo, caiu forte, e não estava com jeito de parar tão cedo. Passava muito da meia noite, e Janete Müller, a escultural secretária do Diretor, com quem Everaldo havia dividido a mesa durante o jantar, e se divertido bastante com o bom humor da jovem de um sorriso cativante, e um decote alucinante, ia pedir um taxi para voltar ao seu apartamento, nos Jardins, quando Everardo, um tanto quanto alegre com os drinques e muito mais alegre pela presença de Janete, cavalheirescamente se prontificou a levá-la para casa. O trânsito nas primeiras horas da madrugada, por causa das festas de encerramento de várias empresas, e pela chuva, estava bastante complicado, mas a presença da jovem ao seu lado, o perfume inebriante que a envolvia, seus longos e muito bem tratados cabelos, que ela jogava, de um lado para outro, cada vez que ria, a sombra dos pingos da chuva no para-brisa que pareciam brincar de escorregar pelo seu rosto e iam se perder em seu colo, fazia com que Everardo se sentisse profundamente atraído por ela, e sem o  menor controle, colocou a mão em seu joelho enquanto esperava o farol abrir. Na verdade, ele queria que o farol não abrisse tão cedo... Janete, sem saber do estado civil de Everardo, simplesmente colocou o braço em torno do ombro dele e sorriu, como a consentir o carinho.

– Alberto Vasconcelos

Durante as reuniões da diretoria, Everardo ouvira Herr Leonard Günther, Presidente Executivo da Empresa para as três Américas, a frase que caracterizava a sua personalidade – ‘se a família atrapalha seu desempenho profissional, troque de família”, com voz tonitruante e com o fortíssimo sotaque de quem aprendeu a falar o idioma Português depois de adulto. Talvez fosse aquela a oportunidade dele ver-se livre daquele casamento falido, daquela indiferença por tudo o que ele representava. Talvez fosse a oportunidade de trocar a falta de diálogo por um incentivo de alguém com os mesmos objetivos. Luís Filipe permaneceria com a mãe até a adolescência, depois iria para uma escola na Alemanha para receber os ensinamentos que lhe garantiriam vida boa na Europa, no Brasil ou em qualquer parte do mundo aonde seus conhecimentos fossem necessários, portanto a existência dele não era empecilho para o divórcio. Pelo celular a defesa civil avisou que a maioria das ruas estavam inundadas e que era recomendável a população permanecer em locais seguros. Não foi difícil convencer Janete de que eles deveriam se abrigar, só por aquela noite, no hotel cuja lâmpada rotatória da entrada do estacionamento coloria de amarelo o vidro da janela do carona. Entraram, deixando as chaves com o manobrista e se dirigiram à recepção. Não havia bagagem e a previsão de saída era para quando a chuva permitisse.

Everardo abriu a garrafa de um champanhe Veuve Clicquot, entregou a taça de cristal a Janete que havia sentado na cama e massageava os pés, agora livres dos torturantes saltos altos. Abriu as cortinas para que pudessem ver o espetáculo dos raios e sentou-se na poltrona estofada de veludo azul marinho.

– José Bueno Lima

 

Não, positivamente, não! Everardo tomado por um sentimento de dor de consciência, e também movido pelo excesso de álcool ingerido, fez ver a Janete que a noite não iria passar de um escape, obrigado pelo mau tempo. Então, esperaram a chuva passar, ele pagou a conta do hotel, e levou-a para casa. Mariana, sua mulher, o aguardava com ares de poucos amigos, notando seu estado alterado. Houve discussão bem séria, tendo a mulher declarado que aquela vida não poderia continuar, que o casamento estava acabado. Everardo retrucou dizendo que deveria ela ter paciência, afirmando que, daí poucos dias ele iria para Alemanha, e quando voltasse eles conversariam com mais calma. Passados uns dias, ele já em Hamburgo, sempre demonstrando sua enorme capacidade e conhecimento do trabalho, começou a ser visto com bons olhos pelo presidente da empresa, Franz Joachin Walters, e após uma reunião, pediu que Everardo ficasse em sua sala. Declarou estar muito satisfeito com a sua performance na empresa, devendo ele permanecer na Alemanha, por mais uns três meses e convidou-o para um jantar em sua residência naquela noite. Conheceu a família do presidente, sua mulher Gertrudes, e sua filha Hertha. Ficou impressionado com a beleza da moça, simpática e que correspondeu aos seus olhares. Não foi difícil um se apaixonar pelo outro. Paixão fulminante! Durante o tempo em que permaneceu em Hamburgo, foram muitas as declarações de mútuo amor, projetos de casamento, com a aquiescência da família de Hertha. Everardo, já havia esquecido da família. Iria para o Brasil somente a fim de falar com Mariana e providenciar o divórcio.

Mariana já sabendo de tudo através da Janete, abandonou a casa onde moravam...


AUTORES: JOSÉ BUENO LIMA, CLÉA MAGNANI E ALBERTO VASCONCELOS