sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O suicida (A Rubens Braga)

Autor: Ronaldo Trigueiros Lima
 
Seu Nico, viúvo e aposentado, poeta “sem orelha”, acorda sempre por volta das seis e meia. Faz o café, toma os remédios obrigatórios, devidamente colocados de véspera sobre o “criado mudo”, assiste o noticiário pela televisão, e de repente, sufocado pela solidão, resolve acabar com tudo.
 
Olha para o teto do quarto, para as paredes precisadas de tinta, para o escasso mobiliário, como se pedisse trégua. A idéia era essa... Não há o que se fazer! Nem pedir. Nem ouvir. Já se faz tempo. Já se faz hora. Para que continuar quase aos oitenta anos, se nada mais espera? Se nada mais seduz? Esperar o quê? Que o telefone toque? Que alguém o ajude a atravessar a rua? Que um primo indique um novo oftalmologista? Que tudo fique cada vez pior e se desintegre?

Coloca os óculos, consulta, novamente seu caderno de anotações, para estar convicto, para ter certeza que providências essenciais tinham sido tomadas.

A idéia de ser um peso morto, sempre o incomodara... Sempre fora para ele um verdadeiro martírio Um constrangimento que precisava libertar-se, a ponto de se ter tornado uma obsessão fantasmagórica.

-Não quero dar trabalho! Nem ter que sentir pena de mim mesmo! Já chega...! Respira fundo para enganar as lágrimas, e queimar os pensamentos.

- Não quero ser estorvo para ninguém!

Relê a carta que escrevera para as filhas já algum tempo, averiguando com cuidado, no caso de ter esquecido alguma coisa, algum detalhe aparentemente irrelevante.

-Tudo certo... !

Em seguida coloca a carta no envelope, deixando-a em destaque perto do telefone.

Abre o guarda roupa, retira uma pequena maleta cinza onde guardara o revolver “Smith, calibre 32”, que pertencera a seu pai, e por mais que freasse o pensamento, o todo parecia inevitável.

Durante dois anos, poupara o suficiente para as despesas do funeral. Portanto, tirando o seu próprio peso, e alguns contra tempos, o trabalho que daria, seria o menor possível. E no mais, que todos perdoassem o seu gesto de aparente covardia.

Repentinamente, fala e gesticula, como se alguém bem próximo o censurasse por atitudes antigas e futuras, pelo conformismo e passividade diante da vida. E por isso, gritava gesticulando, como se respondesse as interpelações aleatórias, com a dor contida de suas mágoas.

Subitamente, pensa nas filhas... Uma internada com doença psiquiátrica crônica, e a outra, desempregada, sem chance de receber qualquer pensão, caso ele faltasse.

Agora não era hora de pensar. Ao contrário, tinha que esvaziar a cabeça. Tinha que evitar os atalhos “ braços” que levam ao arrependimento de quem não tem de que se arrepender.

Tira o revolver da caixa, coloca as balas vagarosamente com extremo cuidado e frieza, solta a trava de segurança, direciona o cano curto junto a cabeça, coloca o dedo no gatilho, e quando estava condicionado a apertá-lo, de repente o telefone toca!...

Era do hospital.

Do outro lado da “linha”, sua filha cheia de saudades queria que ele a visitasse!

Trêmulo e assustado, responde carinhosamente:

- Está bem meu amor...

-Já estou chegando!...
 
 

Autor:
Ronaldo Trigueiros Lima - Niterói/RJ
Página do autor:
Publicação autorizada pelo autor


Comentários:


Carlos Lopes:

Seja bem vindo ao blog Ronaldo Trigueiros Lima.
Um abraço

Maria Mineira:

Ronaldo, meu amigo e irmão de coração. Estou muito feliz ao ler um de seus textos aqui no blog Gândavos. Sem dúvida, esse espaço que Carlos Lopes gentilmente divide com autores de várias regiões, só tem a ganhar com sua presença. Seja bem vindo!
Um abraço.

Ana Bailune:

Salvo pelo gongo! A vida sempre vale a pena! Estou aprendendo isso ultimamente. Mudando paradigmas. Adorei o conto!
Feliz 2013 a todos!


 


quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Tela para o livro: Gandavos - Contando outras histórias

 
Atelier do Artista Edmar Sales, em Custódia/PE, que fará os desenhos e a capa do livro: Gandavos - Contando outras histórias, a ser lançado em março/abril/2013, sob a coordenação deste blog.
 
Foto: Edmar Sales dando os últimos retoques na tela que fará parte da capa do livro.
 
São autores do livro:

Carlos A. Lopes, Fernando José Carneiro de Sousa, Jorge Farias Remígio, Sevy Oliveira, Jussara Pereira Burgos, José Soares de Melo, José Carneiro, Celêdian Assis de Sousa, Maria Olimpia Alves de Melo, Maria Mineira, Marina Alves, Geraldinho do Engenho, Ana Soares, Adriane Morais, Ana Bailune, Fábio Ribas, Rangel Alves da Costa, Carlos Costa e Augusto Sampaio Angelim.

Celêdian Assis, disse: 
 
Venho aos poucos conhecendo o trabalho deste artista fenomenal, Edmar Sales, através das ilustrações de capa e miolo que fez para os livros de Carlos A. Lopes (Saga de um Pedro e Dedos de prosa) e na coletânea Gandavos - Os contadores de histórias, além de belíssimas telas expostas em seu blog e Facebook. Não há como furtar-me de render a ele um sincero elogio, pois a sua obra é realmente admirável. O artista é fenomenal e isto é indiscutível e o ser humano Edmar, com quem tive umas poucas oportunidades de conversar, é uma pessoa adorável, pela simplicidade, sensibilidade e pelo conhecimento que agrega da sua vida ao seu trabalho. Recomendo que conheçam o trabalho deste jovem e talentoso rapaz.
Um abraço ao Edmar e você Carlos que oportuniza para que o mundo o conheça.
 
Um pouco sobre Edmar Sales:
Sales é pintor paisagista, pernambucano, sua arte é interpretada como impressionista, alternando o abstrato e concreto em vários temas. Mais de vinte anos de experiência profissional, com algumas exposições realizadas no Brasil e no exterior. Sua obra é interpretada com grande sensibilidade e maturidade: as paisagens tipicamente brasileiras, natureza morta, retratos, interiores e outros temas, trazendo o valor merecido a cada motivo, com qualidade em todos os detalhes, na combinação da luz e das sombras, nas cores e nos contrastes. É também, desenhista, ilustrador, artesão e músico.
Contato:
Site: http://edmarsales.blogspot.com/

Telefones: (87) 3848-1780 e 8807-2566
 


terça-feira, 18 de dezembro de 2012

A afinidade entre o espinho e o pé

Autor: Rangel Alves da Costa

Por mais contraditório que possa parecer, algo assim como a paz e a guerra, a tristeza e a alegria, mas a verdade é que o espinho e o pé possuem muito mais afinidade entre si do que possa imaginar nossa vã filosofia.
 
Verdade é que os dois se aproximam, se buscam, guardam entre si um complexo relacionamento de amor e ódio. Daí serem tão próximos um do outro e tão distantes, viverem se buscando e se afastando, estando ou passando pelo mesmo caminho, sabendo que estarão juntos e evitando o encontro.

Mas é realmente um relacionamento complicado, cheio de exageros. Tomando o exemplo da relação amorosa, o espinho seria apaixonado e o pé dando uma de difícil e evitando sempre a aproximação, ainda que saiba da possibilidade de qualquer dia ser alcançado pela flecha pontiaguda do outro.

O espinho é amante, apaixonado solitário que passa os dias esperando o seu amor. Quase sempre no mesmo lugar, sofre debaixo do sol e da chuva, de vez em quando é enxotado dali, e tudo na expectativa de que a qualquer momento comece a ouvir os passos na estrada, comece a sentir a chegada do pé. Pé ante pé, a aflição no coração tão amante.

O relutante pé - querer que vive fugindo do seu amado - não procura se afastar sem grandes motivos para tais. Como qualquer ser, teme que a proximidade, o encontro, a relação, seja difícil demais. Sempre teme a pontada, a dor, a vontade de chorar, o grito, até mesmo o sangue jorrando de suas entranhas.

Muita gente poderia achar o contrário, mas a verdade é que o espinho possui mais fama de perigoso do que merece. Nasceu para ser daquele jeito e ninguém pode mudar isso; veio ao mundo para ficar jogado, abandonado e esquecido pelo meio dos caminhos e ninguém procura compreendê-lo.

O espinho não nasce na estrada, no caminho, na vereda ou em qualquer outro lugar que seja encontrado. Está ali porque trazido pelo vento, porque alguém passou com um tronco de árvore e o fez cair, porque caiu de uma planta ali existente. Nessa condição de desalento passa os seus dias, tendo ainda de suportar o medo que causa aos outros sem ter a menor culpa.

Muitas vezes é mais ferido do que pode ferir. Costumeiramente passam por cima com botas ou botinas esmagando tudo; não é difícil que rodas estraçalhem até a alma; quase sempre caminham dando pulinhos para evitar o encontro. Mas o mundo vem abaixo quando um pé desatento e descalço pisa bem no lugar que está repousando. Então começa o xingamento desde a sua primeira geração.

Mas isso é feito pela pessoa, pela dona do pé, e não pelo próprio pé. Como já afirmado, todo pé sente um desejo escondido pelo espinho que encontra. Num jeito masoquista de ser, finge não querer encontrá-lo, se treme todo diante da aproximação, mas gosta da pinicada, da pontadinha, da ponta afiada entrando na pele, da dor diferente causada.

Dependendo do impulso com que o pé vá de encontro ao espinho, dificilmente este não ficará grudado. O pé gosta, permite que ele lhe atinja, avance e vá além da pele. A dor ainda não é sentida, mas apenas uma pontadinha igual àquela que o coração sente quando amorosamente se assusta. Mas depois, assim que a fisgada alcança o ponto sensor cerebral começa a reviravolta.

Igual a pai que não quer filha namorando, se sente ofendido quando encontra a sua mocinha com outro, bem assim faz o cérebro com o pé. Imediatamente transmite a dor para o local e faz com que o pé se revolte com a atitude do espinho. Se a dor era fininha, torna-se intensa, se a pinicada não afetou quase nada tudo se torna num escarcéu.

Mas a verdade é que o pé faz isso forçadamente. O desejo de todo pé é conviver bem com o espinho, um acolhendo o outro sem problemas maiores. É amor, e outra coisa não é. E tanto é assim que as lágrimas de sangue só ocorrem depois da separação, quando o espinho é tirado do pé.



Autor: Rangel Alves da Costa - Aracaju/SE
 
Poeta e cronista
 
Publicações autorizadas pelos autores

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Casa de Vó

Autora: Ana Soares
Veio do Interior da Bahia ainda moça, casou-se, teve seis filhos, e trabalhou durante anos e anos em restaurantes industriais, o que fez dela, uma cozinheira de mão cheia!

Hoje a casa dela, é também casa de vó. E na casa de vó não falta nada, muito menos amor.
 
Benfeitora de pratos simples e muito saborosos, porém, de um requinte inconfundível quando o quesito é amor e dedicação aos seus...
São as batatas fritas para os netos;
A galinha caipira para o mais novo genro a integrar à família;
É o pudim de leite de todos nós;
O biscoito de polvilho (receita da sua mãe) e os bolos simples e deliciosos para os nossos cafezinhos...
Ah e por falar em café, acreditem:
Sou acordada com ele até os dias de hoje... Uma espécie de mimo, eu bem sei e gosto muito!
Assim, ela, Dona Dudu, minha mãezinha, vive à adoçar nossas vidas.
Sem ela, a casa é vazia, o nosso quintal fica sem graça e as nossas vidas também!
O que faz dela, uma pessoa tão simples, ser assim, tão especial?
- Creio que seja mesmo o amor...
Muito amor!



Desenho: Edmar Sales



Publicações autorizadas pelos autores


 




domingo, 16 de dezembro de 2012

Assalto ao Banco

Autora: Marina Alves
 
Segunda-feira, dez da manhã. Muita gente à porta do banco, esperando abrir. A fila já dobra a esquina. Pelo jeito a moçada andou exagerando no fim de semana. O cheque sem fundo não pode bater. Isso dá uma baita dor de cabeça, né não? Quem já passou, sabe. O cartão? Perdido, Deus sabe lá onde. Também, quem abusou nas dosagens etílicas pelos botecos da vida, vai dar notícia de onde andou?
Diante da grande porta de blindex, o povo se espreme. Pra quê isso? Medo de quando a portona se abrir, algum espertinho se infiltre na fila. Zé Madrugador defende a posição conquistada com unhas e dentes. Pulou cedo da cama à toa? Jamé! E se um fura-fila-sem-noção lhe dá uma rasteira? Bem capaz de só sair do banco lá pelas duas... Se sair. O sol já tá fervendo, mas quem liga pra isso? Concentração total e olho no relógio esperando a ordem de largarda... Deus nos acuda!
Zockblumplaplum BUM!!! É tudo tão rápido que ninguém dá conta de acompanhar: certa dama de peso (literalmente) da cidade, chega meio atarantada, se desequilibra no saltinho e não consegue fazer a devida “brecagem”: sai catando cavaco até bater com tudo no blindex. Zockblumplaplum BUM!!! Bate, a porta treme, o vidro estronda! E o povo? Achando que é assalto, e seguindo o exemplo do guardinha, de imediato se joga no chão... São José Padroeiro, que situação!
Cadê mais tiro? Cadê o anúncio de assalto? Nada. Passado o equívoco, com que cara levantar do chão? Fácil não é, mas os mais corajosos acham por bem enfrentar logo de cara. Refeitos do susto e do ridículo optam pelo bom humor. Fazer o quê? O jeito é levar na esportiva. O que era palco de quase “tragédia” vira diversão. Baixa o, já famoso, espírito brasileiro e todo mundo cai na gargalhada. Superadíssimo, o malogrado assalto ao banco! Menos pro Agenor do Mercadinho! Rígido e imóvel lá está ele estirado no exato lugar em que se jogou. Nossa, morreu? Que nada! O fato é que o “precavido” não é bobo de facilitar. Só na viatura da Polícia, a caminho do hospital, ele abre um tiquinho assim o olho esquerdo, e sonda:
— Cumé que é?... Já prendero os bandido, gente?
 
Autora: Marina Alves - Lagoa da Prata/MG

Página da autora:

http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=64920



Desenho: Edmar Sales

Publicações autorizadas pelos autores

 
 

sábado, 15 de dezembro de 2012

Em algum lugar...

                                                Autora: Maria Mineira

Aconteceu no momento em que eu estava sozinha à meia luz do quarto...
No silêncio descuidado e livre quando a lua invadia o ambiente com os sons e aromas da noite.
Distraí-me. Fechei os olhos para melhor sentir o jasmim perfumando o ar...
A menina saiu de mansinho igual o farfalhar mudo das asas de um beija flor...
Lembro-me apenas, que usava chapéu de palha cobrindo uns olhos brilhantes e sonhadores.
Ela foi para onde podia andar e sentir a terra sob os pés, quando os pingos de chuva começam a cair do céu molhando os campos e enchendo os rios.

          Sei que gosta de pisar descalça no capim, roçar as pernas nas folhagens úmidas e ásperas do caminho.
Tímida e ousada...
Fugiu porque queria ser parte desse ambiente agreste e puro.
Desejava abrir os olhos para os mistérios da vida.
Na aragem de um sonho ser menina e mulher, música e poesia, alma amanhecendo.
Talvez a encontrem dormindo num canteiro orvalhado de lírios da Serra.
Sentindo no corpo a umidade fresca que a noite deixou na relva.
É quase certo que esteja visitando as nascentes do meu passado.
Se alguém achar a menina que eu fui, avise-me, por favor...
Preciso saber dela para reconhecer-me.


Autora: Maria Mineira - São Roque de Minas/MG

Página da autora:

http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=86838

Publicação autorizada pela autora




COMENTÁRIOS

 
  Belo Horizonte/MG

          Olá, Maria Mineira!

Diante de seu texto emocionante, quem de nós (os já maduros) não se identificaria com a menina que você busca, mesmo que em contextos de vida diferentes,tamanha é a nossa ânsia de retomarmos à pureza e simplicidade da infância. Belo texto.
Um abraço de sua conterrânea,

          Celêdian Assis
 

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Três mulheres e um segredo



Autora: Maria Mineira

A menina o sonhou chegando antes das chuvas da estação e o florir de setembro. Ele viria para lhe ensinar lugares cercados de luz que ninguém mais conhecia. Os dois sob a sombra de um ipê florido no meio do campo, onde os pássaros partissem em revoada ao menor ruído.
A moça acordou de um transe ao sentir o abraço de alguém, um sussurro a chamar-lhe querida ao ouvido, um roçar de lábios muito levemente nos seus, causando-lhe um turbilhão de emoções até então desconhecidas.
Apenas na imaginação percebia os braços e a boca, mas já os desejava. No deslumbramento silencioso de minutos que se transformavam em horas, se dedicava cuidadosamente a ler suas cartas e entregar-se a cada uma de suas palavras.
A mulher sentiu um total atropelamento de ideias e emoções desde que se conheceram. Ela não se atrevia a confessar nem às paredes, todas as sensações que aqueles beijos lhe provocavam. Sentia um prazer sem medidas, a impressão de pecado era fogo no qual ela se deixava consumir.
Após aquele dia, ela quis adormecer todas as noites de sua vida naqueles braços fortes, quentes e protetores. Desejou para sempre ouvir a voz macia e doce, a boca exigente a lhe percorrer o corpo como uma corrente elétrica, deixando-a sem ar.
Amou em vão! No silêncio do quarto tudo se apagou a sua volta. Na escuridão, só ela e as paredes vazias, só ela e seus devaneios, só ela e seus segredos... Entontecida pela saudade, ainda murmura um nome... Nesse instante chega a sentir o cheiro dele a cortar-lhe a respiração. Sabe que isso a fará enlouquecer.
 
Autora: Maria Mineira - São Roque de Minas/MG

Página da autora:

http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=86838

Publicação autorizada pela autora


Comentários:

Lenapena:

Boa noite, Querida Maria Mineira. Que belo conto. Um lindo devaneio, um sonho, um romance, uma paixão, bem retratada pela sua sensível inspiração. É sempre uma viagem deliciosa ler seus textos. Um bj carinhoso a vc.

Marina Alves:




Ai que segredo bonito esta mulher em três guardou para si, ao longo de seus dias. Romântico, de uma sensualidade delicada e intimista. Alma de Maria cheia de nuances, plena da Literatura em seus mais variados ângulos. Gostei demais! Abraço Marina.

 



 

Hehu (velho) - Dias de Índio (XXI)

Autor: Professor Wanderley Dantas
 
O velho caipora vai sempre lá em casa. Aliás, caipora visita todas as casas da aldeia todos os diaspela manhã. Caipora é um índio com uns 80 anos de idade, que se arrasta com seu andar bem vagaroso ajudado por um pedaço de pau que funciona como muleta. Ele está quase cego. Para falar conosco, costuma se aproximar bem para conseguir distinguir nosso vulto. O médico da cidade falou que caipora ficara cego por causa da sífilis. Sim, doenças venéreas são um problema grave enfrentado pelos povos indígenas e elas têm deixado sua triste marca.
Os outros índios brincam muito com caipora, uma vez que ele já não enxerga bem e também já não se lembra mais de muita coisa. Os índios gostam de contar para o caipora que ele tem mulher em outra aldeia e que ela está esperando por ele. Ele acredita nessas histórias e começa a contar outras: diz que já foi casado há muito tempo com uma mulher branca e que teve filhos com ela. Os índios dizem que isso é mentira, mas todos na aldeia concordam que caipora foi um grande caçador de onça, caçador de arco e flecha.
Um dia, antes de entrar na casa do cacique, na qual eu estava morando, caipora entrou na casa vizinha e viu ali o pequeno índio Marcos de quatro anos de idade. Marcos é uma criança ligeira e logo depois correu da casa do vizinho para a casa em que eu estava. Pouco tempo depois, veio também o velho caipora.
- Hehu! Onde você estava? Suas filhas estiveram por aqui procurando por você? Mentiram para o velho caipora os índios da minha casa. Estavam se referindo às duas enfermeiras brancas que tinham visitado há pouco a aldeia para uma ministração geral de remédio para verme.
- É mesmo?! Minhas filhas vieram aqui? Caipora acredita.
- Ô, velho, você não viu elas aqui? Perguntavam, enquanto todos na casa seguiam rindo das mentiras que contavam para o caipora.
- Sim, eu vi. Eu precisava que elas lavassem minha rede, está muito suja... Estou com saudade da mãe delas... Preciso dela para me aquecer...
Toda aquela situação me cortava o coração, pois caipora ficava triste mesmo.
- Quando eu estava junto delas -continuou caipora - uma vez eu fui atrás de uma onça. Peguei no arco e na flecha. Hoje, índio nenhum sabe caçar mais no arco e na flecha. Eu fui campeão de arco e flecha! Recordava-se o velho caipora das suas aventuras da juventude. Enquanto os índios riam do caipora, de repente ele olhou para o pequeno Marcos e se assustou.
- Que menino é esse?
- Ô, velho, é meu filho. Disse alguém.
- Mas esse menino estava lá na outra casa agora mesmo!
- Ô, velho, não é o mesmo não. Você viu foi o irmão dele lá na outra casa. São dois, são gêmeos. Mais uma vez, mentiram para o caipora. Contavam essas coisas e todos na casa riam do susto do velho caipora que, então, começou a praguejar.
- Gêmeos? Que absurdo! No meu tempo, não acontecia um horror desses. Como já se viu, deixar essas crianças vivas! Está tudo errado! Gêmeos! Não acontecia essas coisas quando eu era mais moço... E caipora saiu da casa, soltando suas imprecações. Enquanto isso, os índios riam e riam da mentira que contaram para o velho.
Não há gêmeos na cultura. Eles sabem que uma das crianças tem um espírito mau, mas como não sabem qual dos gêmeos tem esse espírito mau, assim que nascem, enterram ambas as crianças vivas.


Autor: Professor Wanderley Dantas

http://o-seringueiro.blogspot.com.br/

Publicação autorizada pelo autor

 

Engenho do Ribeiro

Autor: Geraldinho do Engenho
 
Nas remotas épocas que ocorreu a colonização de nossa pátria, aventureiros portugueses embrenharam-se pelos sertões.
Autorizados pelo reino de Portugal, apossaram vastas áreas de terras denominadas “sesmarias.”
Foi nessa oportunidade que um português de nome Gonçalves Lima apossou uma sesmaria de grande extensão, à margem esquerda do rio Picão, dando-lhe o nome de Bom Jardim do Picão. Nome este, alusivo a rara beleza da mata virgem que cobria as margens do rio compreendidas desde sua nascente nas imediações da Garça até sua desembocadura no rio Pará, que juntos deságuam no São Francisco, no município de Martinho Campos, formando o exuberante Vale do Picão.
Alguns anos mais tarde, esta posse foi vendida a Félix Rodrigues Chaves, pai de Maria Rodrigues, desposada por Manoel Ribeiro. Enlace ocorrido no ano de 1790.
Procedente da região do Paraopeba, logo após a transação, Félix fixou sua residência no Buriti do Jorge
Manoel Recebeu como doação de seu pai, parte da sesmaria, adquirida do sogro Félix Rodrigues. Montou seu engenho de cana, onde se fabricava cachaça rapadura e o tradicional açúcar mascavo, conhecido também como açúcar de fôrma. Mais tarde este engenho deu nome ao povoado que se fundou. A semente que deu origem ao povoado foi lançada um século mais tarde por um descendente de Manoel Ribeiro. No ano de 1917, quando foi construída por Guilhermino Rodrigues da Costa, a primeira casa de escola.
A mata cuja fauna e flora eram de riqueza em comparável na sua biodiversidade aos poucos foi desaparecendo. A causa principal dessa catástrofe, por incrível que se pareça não foi do homem, mas da própria natureza, através da ação do tempo.
As grandes cheias provocadas pelos temporais que desabavam sobre o vale, levando enorme diversidade de detritos da própria mata virgem foram-se acumulando nas proximidades da desembocadura do rio, formando um grande dique, causando uma gigantesca inundação dando assim a origem e formação do grande pântano, até então inexistente. Os brejais. Os quais se tornaram produtivos na medida em que suas terras foram sendo cultivadas. Por várias décadas o arrozal ilustrou este abençoado vale atualmente ocupado pela atividade agropastoril. É muito comum encontrar vestígios da extinta mata soterrada nos brejais, madeiras conservadas pelo poder imunológico da grande lavra de argila do subsolo.
Este é um pequeno relato de nossa terra com sua exuberância e sua humildade, habitada por gente simples e solidária.
Estendida na planície deste vale, onde a mão divina do criador rematou com arte esta bela obra, com seus montes e encostas pincelados de campinas e matas verdejantes sob um céu infinitamente azul.
Banhada de luz pelos astros que vigilantes derramam calor e candura sobre sua face tomando-a fértil e produtiva. Seu rio peregrino, caudaloso e cauteloso, desliza recebendo afluentes que brotam cristalinos das fendas de encostas e montes, em sua rota tortuosa cortando ao meio os brejais manados pelas vazantes, que vão saciando sua biodiversidade.
Iniciando paupérrimo em um local histórico, onde Manoel Picão Camacho construiu a primeira residência rural neste majestoso vale; nas remotas épocas que antecederam a fundação de Bom Despacho.
Arrebatado do ventre da terra ele segue com humildade seu trajeto em busca do rio Pará e juntos vão desembocar no velho Chico.
Abrangendo os municípios: de Bom Despacho e Martinho Campos. Tornou-se uma importante artéria irrigando suas pastagens. Alimentando homens e animais. Suas barrancas verdejantes agropastoris, ora brumadas de garças brancas, ora cobertas com seu véu de noiva confeccionado pela neblina nas manhãs de inverno, nos dão uma sensação de paz, emanando tranqüilidade.
Tendo como irmão gêmeo o rio lambari Sob a auspiciosa proteção paternal de dois benevolentes rios: pela direita o Pará, pela esquerda o célebre e lendário, o velho Chico. Numa parceria enriquecida e saudável tornando-os protagonistas de verdadeiras mesopotâmias da região centro-oeste mineiro.
 


Geraldinho do Engenho - Bom Despacho/MG
 
Publicação autorizada pelo autor