Escritora:Ana Bailune
Pisava no chão seco e farinhento da vila de
Córrego Seco desde que nascera. Nome mais apropriado para um lugar, não
existia. Tudo era tão seco, que até mesmo o carcará tornara-se pássaro raro.
Somente os que, como Joana, não tinham outra alternativa, continuavam vivendo
ali. Ela não conhecia outra vida, tendo gasto em seu caminhar, muitas solas de
chinelo. De sol a sol, de solo a solo, de cacto a cacto. Sua magreza
alongava-se ainda mais na sombra projetada no chão pelo sol escaldante. No alto
da cabeça, carregava uma lata d’água barrenta que tinha ido buscar a dois
quilômetros da sua casa. Passava pelas ruínas da velha igreja sem notar, como
quem passa por uma fé que deixara de existir.
Tinha apenas vinte anos de idade, mas
aparentava quarenta. Em fila, seguiam-lhe seus três meninos, aonde quer que ela
fosse. O pai? Partira para a cidade grande em busca de uma vida melhor,
deixando apenas uma promessa: “Um dia, eu mando buscar ocês.” Nunca mais
voltou. Nunca mais deu notícias. Também, que notícia poderia chegar àquela
lugar esquecido por Deus?
Joana nem sentia saudades do marido. Tinha
antes muitas outras coisas a sentir: fome, sede, cansaço, desesperança, e um
medo que crispava-lhe o estômago: o de ver morrerem seus filhos. Todos os dias,
chegavam-lhe histórias de crianças que morriam. Às vezes, passava um cortejo na
porta de casa, um pequeno bando de gente maltrapilha carregando um pequeno
caixão.
Certa manhã, antes mesmo de clarear, Joana
acordou com um sobressalto: tivera um sonho ruim. Vira um de seus meninos
dentro de um caixão. No sonho, estava em uma sala vazia e escura, onde, bem no
meio, havia um caixão cercado de velas. Ela foi se aproximando devagar, com
medo do que fosse ver, enquanto ouvia uma risada sardônica atrás de si. Sentiu
um arrepio na nuca, e quando chegou bem perto, levou à mão ao peito e olhou: lá
estava seu mais velho!
Joana levantou-se correndo, e foi olhar seus
meninos, e ao ver que dormiam pesadamente na esteira de palha, deu um suspiro
de alívio; ainda não era naquele dia!
Na noite seguinte, teve o mesmo sonho. A única
diferença, é que o menino no caixão era o seu do meio. E na terceira noite, o
sonho repetiu-se, mas era o seu mais novinho que estava morto. Joana achou que
aquilo era um sinal; tinha que sair dali! Precisava ir embora, pois beber água
barrenta e comer farinha com lagarto cozido não era vida para menino. Mas ir
embora para onde, meu Deus? Não tinha nada, não sabia ler, mal sabia falar
direito... e enquanto cismava, andando de um lado para o outro debaixo do sol,
à porta de seu casebre, enquanto os meninos comiam feijão com farinha, veio de
repente uma ventania; e com a ventania, uma folha de papel, uma página de
revista que grudou no seu rosto.
Surpresa, Joana pegou o pedaço de papel e
olhou: era uma fotografia, uma imagem de um lugar onde havia um jardim verde e
exuberante, cheio de flores coloridas, junto a um rio azul enorme de lindo.
Havia também muitas pessoas felizes, e em uma fotografia menor, mesas com
toalhas brancas cheias de pratos de comidas que ela nunca tinha provado, e um
sorridente homem de branco que era tão bonito, que só podia ser um anjo de
Deus! Ela nunca tinha visto tanto verde na vida, nem mesmo na época da
chuva! Notou as letras sob a foto, e achou que elas deveriam dizer o nome do
lugar na fotografia; decidiu que fosse aonde fosse, era para lá que ela iria!
Como? Isto não importava; sentiu sua fé renascer, e da mesma forma que Deus lhe
mandara a resposta, também havia de levá-la até o lugar.
Foi até a casa do ‘seu Tinoco’, o único por ali
que sabia ler, e entregou-lhe a fotografia. O velho olhou-a, e após seguir as
letras com o dedo, devolveu-lhe o papel, dizendo: “Esquece, filha. É longe.
Ocês nunca vão chegar lá!” Mas Joana insistiu: “Me diz o nome do lugar, me diz
onde é, ‘seu’ Tinoco. O resto, é com nós!” O velho balançou a cabeça, e disse
com enfado: “Califórnia. É esse o nome.” Joana nem perguntou mais nada: voltou
para casa, e juntando as poucas coisas que tinham, mostrou a fotografia e
anunciou aos meninos, que se entreolharam, animados com a sua primeira
aventura: “Se apronta, porque nós vai pra Califórnia.” E partiram naquela mesma
manhã. Joana nem se deu ao trabalho de fechar a casa. No chão, o vento derrubou
a única fotografia amarelada que o marido lhe deixara. ‘Seu’ Tinoco, da porta de
seu casebre, viu-a partir em direção ao deserto, seguida pelas três crianças,
carregando uma grande trouxa de roupa na cabeça. Ele apertou os olhos, enquanto
a imagem dos quatro desaparecia, serpenteando com o calor que brotava do solo.
Meses depois, um homem caminha pelo chão árido
de Córrego Seco, dirigindo-se à casa. Traz uma pequena mala de viagem, e muitas
saudades e lembranças. Está feliz, pois conseguira arranjar trabalho de
jardineiro na casa de um senhor muito poderoso e tão bondoso quanto rico, lá na
cidade, no sul do país. Logo que conseguiu o emprego – depois de morar nas
ruas, trabalhar em muitos canteiros de obra, sem carteira assinada e
receber um salário abaixo do mínimo, passar muita necessidade e até mesmo fome,
João - o marido de Joana- finalmente conseguira fugir do lugar onde era mantido
como trabalhador escravo. Em sua fuga, acabou indo bater à porta de seu
benfeitor, que vendo seu estado emocional lastimável e seu perigoso nível de
desnutrição, decidiu acolhê-lo, cuidar de sua saúde e oferecer-lhe trabalho em
sua casa.
Assim que ficou sabendo de sua história,
deu-lhe dinheiro e mandou que fosse buscar sua família, em Córrego Seco. As
crianças iriam frequentar uma escola, e sua Joana poderia ajudar nos serviços
de casa.
Mas quando João chegou, não viu sinal de seus
filhos e de sua Joana. ‘Seu’ Tinoco deu-lhe as notícias: “Eles foram embora.
Pra Califórnia.” Agoniado, João indagou: “Mas... quando?” Seu Tinoco, montando
um cigarro de palha, respondeu: “Faz uns mês... foram naquela direção!”
Ao ver que ‘seu’ Tinoco apontava a direção do
deserto, João sentiu seu coração encher-se de agonia.
Voltou para o casebre. Deitou-se na esteira de
palha semicoberta pela areia, e chorou, desejando do fundo de seu coração, que
sua mulher e seus filhos tivessem conseguido alcançar a Califórnia.
Autora: Ana Bailune - Petrópolis/RJ
Texto vencedor do Primeiro Concurso do Blog Gandavos