domingo, 25 de fevereiro de 2018

Califórnia

Escritora:Ana Bailune

Pisava no chão seco e farinhento da vila de Córrego Seco desde que nascera. Nome mais apropriado para um lugar, não existia. Tudo era tão seco, que até mesmo o carcará tornara-se pássaro raro. Somente os que, como Joana, não tinham outra alternativa, continuavam vivendo ali. Ela não conhecia outra vida, tendo gasto em seu caminhar, muitas solas de chinelo. De sol a sol, de solo a solo, de cacto a cacto. Sua magreza alongava-se ainda mais na sombra projetada no chão pelo sol escaldante. No alto da cabeça, carregava uma lata d’água barrenta que tinha ido buscar a dois quilômetros da sua casa. Passava pelas ruínas da velha igreja sem notar, como quem passa por uma fé que deixara de existir.
Tinha apenas vinte anos de idade, mas aparentava quarenta. Em fila, seguiam-lhe seus três meninos, aonde quer que ela fosse. O pai? Partira para a cidade grande em busca de uma vida melhor, deixando apenas uma promessa: “Um dia, eu mando buscar ocês.” Nunca mais voltou. Nunca mais deu notícias. Também, que notícia poderia chegar àquela lugar esquecido por Deus?
Joana nem sentia saudades do marido. Tinha antes muitas outras coisas a sentir: fome, sede, cansaço, desesperança, e um medo que crispava-lhe o estômago: o de ver morrerem seus filhos. Todos os dias, chegavam-lhe histórias de crianças que morriam. Às vezes, passava um cortejo na porta de casa, um pequeno bando de gente maltrapilha carregando um pequeno caixão.
Certa manhã, antes mesmo de clarear, Joana acordou com um sobressalto: tivera um sonho ruim. Vira um de seus meninos dentro de um caixão. No sonho, estava em uma sala vazia e escura, onde, bem no meio, havia um caixão cercado de velas. Ela foi se aproximando devagar, com medo do que fosse ver, enquanto ouvia uma risada sardônica atrás de si. Sentiu um arrepio na nuca, e quando chegou bem perto, levou à mão ao peito e olhou: lá estava seu mais velho!
Joana levantou-se correndo, e foi olhar seus meninos, e ao ver que dormiam pesadamente na esteira de palha, deu um suspiro de alívio; ainda não era naquele dia!
 Na noite seguinte, teve o mesmo sonho. A única diferença, é que o menino no caixão era o seu do meio. E na terceira noite, o sonho repetiu-se, mas era o seu mais novinho que estava morto. Joana achou que aquilo era um sinal; tinha que sair dali! Precisava ir embora, pois beber água barrenta e comer farinha com lagarto cozido não era vida para menino. Mas ir embora para onde, meu Deus? Não tinha nada, não sabia ler, mal sabia falar direito... e enquanto cismava, andando de um lado para o outro debaixo do sol, à porta de seu casebre, enquanto os meninos comiam feijão com farinha, veio de repente uma ventania; e com a ventania, uma folha de papel, uma página de revista que grudou no seu rosto.
Surpresa, Joana pegou o pedaço de papel e olhou: era uma fotografia, uma imagem de um lugar onde havia um jardim verde e exuberante, cheio de flores coloridas, junto a um rio azul enorme de lindo. Havia também muitas pessoas felizes, e em uma fotografia menor, mesas com toalhas brancas cheias de pratos de comidas que ela nunca tinha provado, e um sorridente homem de branco que era tão bonito, que só podia ser um anjo de Deus!  Ela nunca tinha visto tanto verde na vida, nem mesmo na época da chuva! Notou as letras sob a foto, e achou que elas deveriam dizer o nome do lugar na fotografia; decidiu que fosse aonde fosse, era para lá que ela iria! Como? Isto não importava; sentiu sua fé renascer, e da mesma forma que Deus lhe mandara a resposta, também havia de levá-la até o lugar.
Foi até a casa do ‘seu Tinoco’, o único por ali que sabia ler, e entregou-lhe a fotografia. O velho olhou-a, e após seguir as letras com o dedo, devolveu-lhe o papel, dizendo: “Esquece, filha. É longe. Ocês nunca vão chegar lá!” Mas Joana insistiu: “Me diz o nome do lugar, me diz onde é, ‘seu’ Tinoco. O resto, é com nós!” O velho balançou a cabeça, e disse com enfado: “Califórnia. É esse o nome.” Joana nem perguntou mais nada: voltou para casa, e juntando as poucas coisas que tinham, mostrou a fotografia e anunciou aos meninos, que se entreolharam, animados com a sua primeira aventura: “Se apronta, porque nós vai pra Califórnia.” E partiram naquela mesma manhã. Joana nem se deu ao trabalho de fechar a casa. No chão, o vento derrubou a única fotografia amarelada que o marido lhe deixara. ‘Seu’ Tinoco, da porta de seu casebre, viu-a partir em direção ao deserto, seguida pelas três crianças, carregando uma grande trouxa de roupa na cabeça. Ele apertou os olhos, enquanto a imagem dos quatro desaparecia, serpenteando com o calor que brotava do solo.
Meses depois, um homem caminha pelo chão árido de Córrego Seco, dirigindo-se à casa. Traz uma pequena mala de viagem, e muitas saudades e lembranças. Está feliz, pois conseguira arranjar trabalho de jardineiro na casa de um senhor muito poderoso e tão bondoso quanto rico, lá na cidade, no sul do país. Logo que conseguiu o emprego – depois de morar nas ruas,  trabalhar em muitos canteiros de obra, sem carteira assinada e receber um salário abaixo do mínimo, passar muita necessidade e até mesmo fome, João - o marido de Joana- finalmente conseguira fugir do lugar onde era mantido como trabalhador escravo. Em sua fuga, acabou indo bater à porta de seu benfeitor, que vendo seu estado emocional lastimável e seu perigoso nível de desnutrição, decidiu acolhê-lo, cuidar de sua saúde e oferecer-lhe trabalho em sua casa.
Assim que ficou sabendo de sua história, deu-lhe dinheiro e mandou que fosse buscar sua família, em Córrego Seco. As crianças iriam frequentar uma escola, e sua Joana poderia ajudar nos serviços de casa.
Mas quando João chegou, não viu sinal de seus filhos e de sua Joana. ‘Seu’ Tinoco deu-lhe as notícias: “Eles foram embora. Pra Califórnia.” Agoniado, João indagou: “Mas... quando?” Seu Tinoco, montando um cigarro de palha, respondeu: “Faz uns mês... foram naquela direção!” 
Ao ver que ‘seu’ Tinoco apontava a direção do deserto, João sentiu seu coração encher-se de agonia.
Voltou para o casebre. Deitou-se na esteira de palha semicoberta pela areia, e chorou, desejando do fundo de seu coração, que sua mulher e seus filhos tivessem conseguido alcançar a Califórnia.

Autora: Ana Bailune - Petrópolis/RJ
Texto vencedor do Primeiro Concurso do Blog Gandavos

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Os últimos


Escritor: Augusto Sampaio Angelim

Somente os dois moravam naquele lugarejo abandonado.
A pequena vila que, há trinta anos atrás era ponto de parada para viajantes que se dirigiam a São Paulo, e chegara a ter mais de cem almas, hoje era um lugar fantasma. Outrora, além das casas, havia até um posto de gasolina e uma pousada que abrigava uns poucos viajantes. À beira daquela enorme estrada reta de terra batida, de quase cem quilômetros sem curvas, o que restou de seu casario sequer dava para ser avistado de longe.
Desde os tempos de Juscelino que se falava no asfaltamento da rodagem. Pavimentaram outras rodovias e aquela foi ficando na poeira. O asfalto não veio e nem as outras coisas do progresso. Então, o povo se foi. Os poucos moradores, foram embora. Primeiro os mais novos. Depois, os mais velhos. Ao final, todos.
Sina de quem nasce na beira da estrada é ir embora.
As casas, a maioria umas taperas, não resistiram ao tempo e foram ruindo. Da capela, onde se rezava uma missa por ano, nem mais um sinal. Escola, nunca teve. O casario abandonado serve de abrigo aos bodes e algumas ovelhas. Alguns forasteiros, vendo esse cenário de abandono, se benzem. Outros param e fotografam a calmaria, como se, por um instante, quisessem adivinhar seus mistérios e, depois, continuam seus destinos ignorados. Os que são das redondezas, se consternam com a desolação, quando passam a caminho das cidades da vizinhança.

Mas eles ficaram.
Restaram apenas os dois.
Eram os últimos.
O casal tinha umas vaquinhas e outras criações. Um pasto até grande, onde podiam soltar os bichos à vontade. Tiravam o sustento das criações e do plantio de milho e feijão. Não podiam ir embora. Até planejaram isso no passado, mas os dias foram passando e não conseguiram arredar os pés dali.
Possuíam cavalo, mas, agora, quando iam à feira, montavam uma motocicleta. Novos tempos. Uma moto velha, com cinco ou seis anos de matrícula atrasada. Tinha uma placa apenas por enfeite, mas ninguém se importava de abordar os dois.
A mulher ainda guardava traços da beleza de antigamente.
Rosa.
Rosa Maria da Felicidade de Jesus. Este era o seu piedoso nome. Promessa da mãe dela.
Ele, João Ferreira, ainda era aparentado de Lampião, pois sua família vinha das bandas de Serra Talhada.
Chegara ali moleque novo, com os pais.
Os velhos morreram, os irmãos se mandaram.
Até o início dos anos oitenta ainda teve notícias de Tonho e de Miro, que foram para São Paulo.
Vandinho morreu menino, assim como Maria Aparecida.
Das Dores, fugiu com um malabarista de um circo. Essa entrou cedo, na “lata do mundo”.
Nunciada arrumou marido para as bandas do Pajeú, até virou professora. Tirou a sorte grande.
Um caminhoneiro de Ibimirim disse que tinha encontrado Tonho, em São Paulo, numa feira nordestina, há uns dois anos.
Ele e Rosa se conheceram na festa da padroeira do Moxotó. Morena bonita de sorriso desconfiado, mas que, logo, caiu nas suas graças. Além disso, era mulher direita. Nem precisa dizer que era virgem. Até sabia ler e escrever, coisa que ele nunca aprendeu, por falta de oportunidade.
A desgraça é que nunca tiveram filhos.
Um menino sequer.
Poderia até ser uma menina, mas Deus não quis, como costumava dizer a mulher. Fizeram várias tentativas para ela engravidar.
Foram aos médicos de Arcoverde, Garanhuns, Paulo Afonso e até Recife, quando eram um casal ainda jovem. Tomaram chás receitados pelos mais velhos, mas nada. Entraram e passaram os anos e nenhum menino para trazer alegria para casa e depois ajudar na lida do campo. Nos últimos anos Rosa se queixava dos incômodos no estômago, todos os dias. Na “boca do estômago”. Também todas as noites. “Nada não, passa logo”, dizia ela. Não passou. Numa dessas noites, teve febre muita alta. Delirou, chamando meninos que ela nunca pariu. Chamava por Joãozinho, Maria, Verônica, Gregório. Nomes que haviam planejado para os filhos que nunca tiveram.
“Joãozinho, você vai cair dessa cerca, minino!”;
“Grigório, vá pegar o leite!”;
“Maria, mexe o feijão!”
“Verônica, arruma os cabelos, muié!”. 
 

A mulher não dizia coisa-com-coisa. Ficou preocupado e, quando amanheceu o dia, foi até a casa de Seu Domingos e fez trato para levarem a mulher para o hospital de Arcoverde. Não teve jeito, morreu dois dias depois, sem dizer mais nada. O doutor disse que tinha sido aquela doença miserável, cujo nome cristão humilde tem medo de pronunciar. O enterro foi na cidade, pouca gente. Os parentes quase todos tinham se mudado para outros lugares e o casal vivia recluso.

Agora era ele o único morador do lugar.
Não tinha mais ninguém além dele.
Acocorado debaixo de uma baraúna velha, às margens da estrada, de alpercatas, calças dobradas no meio da perna, chapéu e um pedaço de pau na boca, como se fosse um palito de dentes, riscava o chão com um graveto. Não fazia planos. Não tinha plano nenhum. Apenas pensava nessas coisas e em Rosa.

Olhou para o céu e viu que a noite ia chegando de mansinho. Duas lágrimas escorreram de seus olhos. Limpou o rosto com a mão rude, deu um pigarro e levantou-se decidido: já era hora de recolher o gadinho para o curral e cuidar dos outros bichos.
A noite já tinha tomado conta do mundo.

Autor: Augusto Sampaio Angelim - São Bento do Una/PE
Publicação autorizada pelo autor através de e-mail de 19/10/2011.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Uma Viagem Literária/Buritizeiro/MG

Augusto Sampaio Angelim

Olá, meus caros amigos. Eu conheci Buritizeiro através das leituras de Guimarães Rosa, principalmente de GRANDES SERTÃO: Veredas, que é local sempre referenciado em sua obra. Na localidade rural conhecida como Paredão de Minas, ocorreu a batalha final de Grande Sertão Veredas. Por conta disso resolvi viajar até à cidade de Buritizeiro e vivenciar melhor os caminhos rosianos. Não me decepcionei e espero voltar com mais tempo à região.



O município de Buritizeiro, geograficamente está localizado no Norte de Minas Gerais e Alto Médio São Francisco, encontra-se em área de cerrado e integra o conjunto dos municípios mineiros da RMNE – Região Mineira do Nordeste. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE, é o 5º maior município em extensão do Estado. Situa-se às margens do rio São Francisco e da rodovia BR-365, em um dos principais eixos rodoviários no que diz respeito à logística de escoamento de produção agrícola nacional. O município é rico em recursos hídricos e confronta com os municípios de Ponto Chique, Santa Fé de Minas, Brasilândia de Minas, João Pinheiro, São Gonçalo do Abaeté, Três Marias, Lassance, Várzea da Palma, Pirapora, Lagoa dos Patos e Ibiaí.
Fonte:  Wikipédia - A Enciclopédia Livre
















Imagens do município de Buritizeiro, da Pousada Portal do Sertão e de Rômulo Melo, Secretário de Cultura e proprietário da Pousada.

Material enviado por:
Augusto Sampaio Angelim - Caruaru PE