terça-feira, 29 de dezembro de 2015

A Quinzena do Autor: Ana Bailune

Autora:  Ana Bailune

Comecei a escrever muito cedo, ainda criança. Participei de alguns concursos literários em minha cidade natal, dos quais venci um, realizado pelo Silogeu Petropolitano em 1986, com o poema "Somos Irmãos", e nos demais,  fiquei sempre entre os quatro primeiros colocados. Tenho um livro publicado pela editora Pimenta Malagueta, "Vai Ficar Tudo Bem." Ele foi reeditado e relançado em agôsto de 2013 pela amazon.com.br, juntamente com um livro de contos - A Ilha dos Dragões -  uma coletânea de meus melhores poemas - Sempre Cada Vez Mais Longe e recentemente, um livro de poemas - Lixo Existencial. Todos disponícveis na amazon.com.br. Participei de várias antologias, entre elas: do blog Gândavos, de Carlos Lopes, os livros Gândavos - Contadores de Histórias I, II e II, tendo vencido recentemente o concurso de contos promovido por este blog, com o conto Califórnia. Participei também da antologia de Miriam Salles, Passos & Compassos. Abri a série da coletânea Quinze Poemas + , convidada por Helena Frenzel, e  participei dos Quinze Contos +, também de Helena Frenzel. Ainda publicarei, enquanto eu estiver viva, muitos outros livros, impressos ou virtuais, pois este é meu objetivo: escrever.

Tenho cinco blogs; basta digitar no Google, e você os encontrará facilmente:

Liberdade de Expressão
A Casa & a Alma
Passagem
Histórias- Por Ana bailune
Nada a Dizer - apenas fotografias

Também participo, à convite, dos blogs
Gândavos, de Carlos Lopes
e
Quiosque do Pastel, de Lu Cavichioli.


1-Dedico este conto a Carlos Lopes, do blog Gândavos


NEVE NO SERTÃO

Toquinho era o apelido de José Jorge da Silva, um menininho de oito
anos, mais novo entre cinco irmãos dos doze que Mariazinha, sua mãe,
tivera e que sobreviveram. Ele morava com a família em alguma
cidadezinha lá no sertão baiano, cidadezinha que nem está no mapa, no
meio do nada, cercada de cactos e com paisagem desoladora. O apelido
de José Jorge vinha de sua aparência física: pequeno, franzino, desses
que dá a impressão que um vento mais forte conseguiria levar embora. E
todo mundo comentava, quando havia alguma morte de criança (coisa que
naquela época não era nada raro de acontecer) que Toquinho seria o
próximo. Ninguém acreditava que o menino vingaria... o pai, ‘seu’
Juvêncio, tinha uma hortinha que mal garantia o sustento da família,
onde plantava mandioca, batata e feijão. O resto vinha do governo, de
vez em quando. Trabalhava quando dava. Quando tinha caixa para
carregar na venda do ‘seu’ Manoel, capim para cortar ou laranjas para
colher nas plantações dos mais abastados. Iam levando. Ou sendo
levados.
‘seu’ Juvêncio e Mariazinha já tinham perdido sete crianças, e lá pela
quarta, já nem choravam tanto assim. A gente se acostuma a tudo nessa
vida. Tudo que Deus manda, é bem-vindo e sábio. Assim, continuavam a
colaborar com a fábrica de anjinhos do Divino.

Toquinho, de tanto escutar por trás das portas, acabou descobrindo que
seu destino era ser levado dentro de uma daquelas caixas que ‘seu’
Manoel da venda fabricava às pressas com sobras de caixote, e nem
cobrava das famílias. Desde então, ele achou que se todo mundo falava,
deveria ser verdade. Passou a não brincar mais, e a comer menos ainda
– para preocupação dos pais e alegria dos irmãos, que dividiam a
comida de Toquinho entre eles sem culpas, já que ele também sabiam que
a morte do menino era apenas uma questão de tempo. Mariazinha fazia de
um tudo para que o menino comesse; preparava mingau de fubá com leite,
mandioca cozida passada na margarina (quando tinha), feijão com
charque (sempre ganhava um pedacinho quando alguém matava um porco).

Ele às vezes comia, só para ver a mãe dar um sorriso. Mas um dia, ele
finalmente caiu doente. Ficava o dia todo na esteira sem levantar
muito e sem ir à escola. A professorinha foi visitar, e ficou doída de
ver o seu aluno mais novinho naquele estado. Deu à família um cartão
de Natal que recebera da família que morava na cidade grande, onde
tinha o desenho de uma casinha iluminada no meio da neve, que era
coberta de brilhinhos de purpurina. Quando alguém abria o cartão,
tocava uma música natalina. Ela apagou a mensagem com corretor de
texto, e escreveu por cima: “Nunca percam as esperanças. Um Feliz
Natal!”

Quando Toquinho viu o cartão, tratou de perguntar: “Professorinha, o
que é essa coisa branca e brilhante, linda demais?” E ela respondeu:
“É a neve, Toquinho. Ela cai do céu nos lugares muito frios na época
do Natal. Fica tudo assim, coberto de branco... é lindo de se ver!”
Ele pensou um pouco, passando o dedinho magro sobre a imagem, e
olhando a purpurina que ficou na pontinha do indicador: “E você já viu
de perto? A neve, já viu?” A professorinha lembrou de sua única viagem
ao estrangeiro, quando se casou, há muitos anos: “Vi, sim.” E o menino
indagou: “E como é?” “Ah, Toquinho... é linda, macia e fria. Muito
branquinha também. Quando o sol bate, ela brilha, brilha... As pessoas
gostam de fazer bolas com ela e brincar de jogar umas nas outras, de
brincadeira. As crianças fazem bonecos com nariz de cenoura, e colocam
chapéus neles. É mágico...”
O menino suspirou fundo. Olhou para a professora bem dentro dos olhos,
um olhar daqueles que a gente jamais vai esquecer enquanto viver, e
declarou: “Eu queria muito ver a neve!”

A professorinha foi embora com lágrimas nos olhos. A frase do menino
quase moribundo ressoando em seus ouvidos, espetando o seu coração:
“Eu queria muito ver a neve!”

No dia seguinte, enquanto fazia compras na venda do ‘seu’ Manoel para
levar para a família de Toquinho, a professorinha ainda não tinha
conseguido esquecer as palavras do menino. Mas como fazer nevar no
sertão? Era impossível! De repente, um caminhão parou em frente à
venda, e uns homens começaram a descarregar umas caixas grandes. Eram
árvores artificiais e enfeites de natal para ‘seu’ Manoel colocar à
venda. Encomenda dos grandes fazendeiros da região, pois os clientes
mais pobres jamais poderiam pagar por coisas como aquelas. A
professorinha ficou observando enquanto ‘seu’ Manoel abria as caixas e
ia separando as encomendas, segurando uma lista, caneta atrás da
orelha. E conforme ele ia puxando as mercadorias de dentro das caixas,
enfileirando os enfeites para separar em cima do balcão, iam caindo no
chão bolinhas minúsculas de isopor, que o vento espalhava (aquilo se
deu antes do advento do plástico bolha).

A professorinha começou a ter uma ideia genial, e pegando algumas das
bolinhas de isopor, perguntou ao ‘seu’ Manoel: “Como é que eu faço
para conseguir mais destas, ‘seu’ Manoel?” O homem coçou a cabeça, sem
entender: “O que? “ Ela repetiu: “Essas bolinhas de isopor! Como eu
faço para conseguir mais, uma quantidade muito grande delas?” Seu
Manoel riu: “E pra que a senhora quer isso, Dona Professorinha?” A
professorinha contou a ele a história do Toquinho, menininho doente
que queria ver neve no sertão. Quando ela terminou a história, ‘seu’
Manoel tinha os olhos rasos d’água. Disse: “Dona Professorinha, eu
tenho caixas e mais caixas disso lá atrás no depósito. Engraçado... eu
sempre achei que um dia elas iam servir pra alguma coisa!” A
professorinha ficou feliz da vida!

Dizendo aquilo, ‘seu’ Manoel decidiu que doaria uma árvore de natal
que viera faltando alguns galhos, e uns enfeites que tinham quebrado
na viagem. Os dois confabularam durante algum tempo, fazendo planos.
Puseram-se a montar a árvore com os enfeites. Todo mundo que passava
por ali perguntava o que eles estavam fazendo, e eles repetiam a
história. As crianças tiveram a ideia de montarem um presépio vivo em
frente à casa de Toquinho. Algumas mães confeccionariam as roupas com
sacos de estopa. A festa de Natal foi sendo montada.

Alguém se lembrou que tinha em casa um velho gramofone e um disco de
canções natalinas. ‘Seu” Alonso da farmácia emprestaria um ventilador
grande para ajudar a fazer a neve voar.

Tudo pronto, na véspera de Natal todo mundo foi para a casa de
Toquinho sem fazer barulho, pois queriam que o menino tivesse uma
surpresa. Montaram tudo: o presépio, a árvore de natal com os enfeites
(nem dava para ver que estavam quebrados), uma mesa com a ceia, doada
pelos mais abastados da região, o gramofone. Alguns meninos mais
levinhos subiram no telhado da casinha com os sacos de bolinhas de
isopor, posicionando-se bem por cima da janela onde Toquinho estava.
Quando a professorinha deu o sinal, o gramofone começou a tocar “Noite
Feliz”, e as pessoas, que já tinham decorado a letra, cantavam junto.
A família despertou dentro da casa, e assim que abriram a janela, os
meninos começaram a derramar as bolinhas de isopor bem devagar, que
era para elas durarem mis tempo. Foi mágico! Mariazinha, pegando o
filho já bem fraquinho no colo, levou-o para a janela, dizendo entre
lágrimas: “Vem ver! Tá nevando!”
Toquinho nem acreditava no que estava vendo: quase igual ao cartão de Natal!

Uma força surgiu de dentro dele (dizem que antes de morrer, algumas
pessoas há muito tempo doentes despertam se sentindo muito bem,
conversam, riem e depois, morrem. É como se fosse uma despedida).
Aquela foi a festa de Natal mais linda que já se ouviu falar.

FIM

Ah, já ia esquecendo! E quanto ao Toquinho?
Bem, ele melhorou. Morreu não. Cresceu, foi para a cidade grande
estudar e virou doutor. Acreditou que tudo era possível depois que
nevou no sertão, e assim foi.

Dizem que ainda tem bolinhas de isopor agarradas aos espinhos de
alguns cactos, só para lembrar a quem ficou por lá, vazios de
esperança, que é possível nevar no sertão.


2-Ficou


Ficou tudo pelo chão,
E é bom que tenha ficado.
Um vento lento a soprar
Desfez as tramas do passado
E levou, consigo, o legado
Para bem longe do mundo.

-Toda a inútil ilusão,
Arrogância, presunção,
Palavras de amor ou de ódio,
Escárnio, riso, e o punho
Que arremeteu os punhais
Cravados no coração.

Ficou sim, tudo no chão,
E a chuva que chegou
Lavou, levou e depois
Veio o sol, e desbotou
Os restos do que ficou.

Descoloriu sentimentos,
Apagou os pensamentos,
Preencheu de vazio os momentos
E nada, nada mais ficou

Além do que ficou no chão,
A fim de ser esquecido,
Daqui levado, varrido,
Como será carregado
Tudo aquilo que ainda está.

E agora, eu me pergunto:
Do que será que valeu
Tanto ódio, tanto pus,
Tanta mentira inventada,
Tantas lâminas cravadas
No caule frágil da flor?...

No fim, só fica o amor,
E mesmo este, algum dia
Segue a mesma estrada fria,
Vai no rastro indefinível
De quem nunca mais voltou.

Ficou no chão o sentido,
Derramado feito água
No meio daquela estrada
Que ninguém mais percorreu...

Ficou toda a injúria vil,
De um coração desabrido
E desta, nem mesmo um til
Poderá ser removido.

Valeu?...

3-INVENÇÃO

Invento cores,
Cheiros, sabores
Invento caminhos
Cheios de flores,
Invento os sons
Da trilha sonora
Que cantam-me a vida,
Invento as horas.

Demoras, atrasos,
Flutuam nos rasos lagos.
Esperas, anseios
Tentando encontrar os meios.

Mas a mente pensa,
A mente divaga,
A mente desliga,
A mente se lava!...

Assim, eu invento
As cores e tons,
Os temas e sons
Que espalho no ar.

Assim, eu aguardo
Acontecimentos
Que ficam suspensos
Acima, no ar.


4-A Tua Rosa Não Tarda!


Se queres tanto escutar,
Então cala a tua voz,
Pois Deus não tem paciência
Com quem distorce a Ciência
De maneira tão atroz!

Se queres tanto entender,
Respeita a filosofia!
Pois ninguém há de enxergar
Arrotando tanta azia...
-Fingida sabedoria!

Aceita o negro da noite,
Abençoa a luz do dia!

Mergulha na escuridão,
Traz contigo uma canção,
Faz da vida uma alegria!

Ajoelha-te em silêncio,
Olhos fechados, rendidos,
Baixa as armas, sente o vento!

Cavando em meio à tristeza,
Acharás mudas de rosas...

Deixa que essas mudas falem,
Planta-as com fé e aguarda:
-A tua rosa não tarda.


5-A Vingança das Flores


As flores me olham quando eu passo,
Balançam suas leves cabeças e riem,
Em sinal de desaprovação:

-"Estúpida criatura humana,
Nem és capaz de cumprir uma promessa
Que há tanto tempo, fizeste a ti mesma!"

Então, eu as colho em um buquê bem apertado,
E as amarro, todas juntas em um vaso
Que coloco em algum canto escuro da sala.

Penso em, mais tarde,
Brincar de mal-me-quer.

Em resposta, elas murcham.

6-Varrer - Exercício Meditativo da Vassoura


Varrer: atividade que muitos consideram monótona, suja e cansativa.
Mas na verdade, varrer me faz pensar... para mim, é um exercício
mental melhor do que qualquer tipo de meditação formal. Enquanto eu
varro, eu me sinto mais calma, e fico presente no momento, prestando
atenção às sujeirinhas do caminho que se entranham pelos cantos e
degraus. Alcanço-as com o cantinho da vassoura, não deixando que fique
nenhuma impureza.

Depois, recolho todo o lixo em um saco plástico e jogo fora. Em volta,
tudo limpo, renovado.

E enquanto executo este simples ritual, tento limpar também a minha
mente das coisas que não me fazem bem.

Procuro dar algumas pausas em meu trabalho e olhar em volta, para um
passarinho pousado na árvore, um esquilo que chega, caminhando sobre o
muro, uma nova flor que desabrochou.

Varrer deixa-me mais limpa.

No dia seguinte, haverá novas folhas caídas sobre o gramado, caroços
de ameixa derrubados pelos morcegos durante a noite, em suas
refeições, um pouco de terra... ainda bem.


7-LEMBRANÇAS DE NATAL


Quando a gente é criança, tudo é mágico. Porque as crianças tem uma
visão que não é baseada em preconceitos e cinismos. Para mim, o Natal
- assim como a Páscoa - eram datas especiais. Mesmo sabendo que Papai
Noel não era real, eu gostava de fingir que acreditava, pois aquilo
deixava a existência mais leve e colorida.

Quem foi criança na minha época, com certeza lembra-se da boneca Suzi,
uma antiga versão da moderna Barbie, só que com mais cara de ser
humano normal, mais cheinha do que esta última, que tem a aparência de
uma maneca de passarela.

Um dia, inventaram um namorado para ela, o Beto. Lembro-me de quando
eu vi o comercial na TV pela primeira vez, onde uma menininha cantava
uma música estúpida, mas que na época, era o máximo para mim: "Beto é
da Suzi, Suzi é do Beto, tralálálá..." imediatamente, decidi: eu
queria o Beto!

Escrevi cartinhas para meu pai e minhas irmãs mais velhas. Quando eu
queria alguma coisa, eu literalmente sonhava com aquilo como se já
existisse. Acordava de manhã pensando, e ia dormir pensando no que eu
queria. Conversei com a Suzi, e prometi-lhe um companheiro adequado;
afinal, o Juca (um boneco grandalhão que eu tinha) era alto demais
para ela!

A "Suzi" escreveu cartas de amor para o Beto, e o Beto, respondeu a
todas elas. Trocaram declarações de amor apaixonadas, ansiosos pelo
encontro que os uniria para sempre. Fiz uma casinha de boneca em uma
caixa de papelão, onde os dois morariam para sempre e teriam seus
filhos, quem sabe... o casalzinho apaixonada conversava muito por
'telefone' (naquela época não existia Internet, muito menos,
computadores nas casas). Enfim: preparei com carinho a chegada do novo
membro do meu clube de bonecas.

Conforme o Natal ia se aproximando, mais ansiosa eu ficava, e quase
tremia de expectativa.

Uma semana antes do Natal, minha mãe e minha irmã mais velha foram às
compras. Voltaram cheias de caixas de presentes, que colocaram, como
sempre faziam, sobre o armário mais alto do quarto. Impossível, para
mim, alcançá-las... eu ficava olhando para as caixas, tentando
imaginar em qual delas estaria o Beto.

Finalmente, o Natal chegou. Hora de abrir os presentes. Ganhei roupas,
um jogo de panelinhas e outras coisas, mas o Beto não veio.

Acho que foi uma das maiores decepções de minha infância. Não sei por
que cargas d'água, tinham se esquecido do meu Beto.

Suzi ficou arrasada! Todos os sonhos de amor destruídos, as noites de
sonhos transformando-se em pesadelos. Ela mal pode lidar com aquela
tremenda decepção amorosa, e caiu em depressão profunda, por pelo
menos, três dias. Mas logo, vendo que de nada adiantariam suas
lágrimas - o Beto estava perdido para sempre, e nunca mais lhe
escrevera cartas de amor apaixonadas - ela acabou se conformando, e
aos poucos, foi conseguindo reconquistar o amor do Juca.


8-Experimental

Monoverso

Não desejo que sejas, jamais
O que eu venha a desejar que sejas
Sê aquilo que só tu desejas:
- Meus desejos far-se-ão reais.

Interação e Helena Luna:

HLuna
Só eu mesmo mando em mim,
Não aceito, não, conselhos,
Se quiser sou um jasmim,
Ou um cravo bem vermelho.


O Monoverso é um estilo criado por Rosa Ambiance.


9-DESTINO


O destino é um oceano
De conchas abertas e fechadas
Por onde navegam as almas
Que já nascem naufragadas.

Não há remos para os barcos,
São as ondas que os levam.
À deriva, eles flutuam
E ao destino se entregam.

Sopram os ventos tão frios
Maremotos, calmarias...
E o porto é sempre o mesmo:
O fundo azul do oceano
Onde dormem os navios.



10-Atiraste Uma Pedra...


Ela me pedia, entre gemidos, que a ajudasse a levantar-se da cama de
hospital, após uma dolorosa cirurgia que, pelo que tudo indicava, não
tinha dado certo. Eu tentava acalmá-la, segurando-lhe a mão e dizendo
que não podia levantar-se ainda, e mentia, dizendo que na manhã
seguinte, tudo ficaria melhor.

Ela delirava, ás vezes, dizendo coisas que eu não conseguia
compreender. Percebi que muitas e muitas vezes, tentava fazer o sinal
da cruz, e sem querer, arrancava do dedo o aparelhinho que media suas
batidas cardíacas, fazendo a máquina apitar. Eu o colocava de volta, e
segurando-lhe a mão, tentava distraí-la:

-Quer rezar uma Ave-Maria?
Ela murmurava: "Hã-hã..."

E eu começava, o coração vazio das palavras que eu mesma proferia. À
sua maneira, ela tentava acompanhar minha oração, e ao final, tentava
fazer o sinal da cruz. Os olhos sempre fechados, estava inquieta, e
dizia que estava morrendo.

De repente, o inusitado: debaixo da janela do quarto, já às nove da
noite, um grupo de seresteiros começa a tocar:

"Atiraste uma pedra
No peito de quem
Só te fez tanto bem..."

Pela primeira vez, ela abriu os olhos, e fitando a parede branca,
pareceu acalmar-se de repente. Acho que estava se lembrando do seu
grupo de idosos, e de quando costumava reunir-se com eles nas tardes
de sábado a fim de dançar e ouvir serestas. Menti mais uma vez:

-Viu só, mãe? Está ouvindo a seresta? É para você! Seus amigos vieram
aqui tocar para você!

Ela soltou novo gemido de dor, fechando os olhos. Mais uma canção, e
os seresteiros se foram. Mais tarde, ao ajeitar a colcha da cama,
percebi o lençol empapado de sangue. Tivemos que trocá-la. Jamais
esquecerei o cheiro do sangue.

Depois daquilo, ela foi definhando cada vez mais.

A morte jamais será algo bonito de se ver.


Abraços,


Autora: Anabailune - Petrópolis/RJ



Blog: Ana Bailune - Liberdade de Expressão
Postagem: Face
Link: http://ana-bailune.blogspot.com/2012/03/face.html


Comentários:


Grande escritora que demonstra em cada obra a intimidade com as palavras perfeitamente colocadas para que o leitor construa a imagem sugerida. Ana é dessas autoras que nos fazem sentir o gosto do quero mais ao final da última página e é sempre surpreendente ao fugir do lugar comum em seus trabalhos. Parabéns Ana e felicitações ao Gandavos por tão oportuna escolha nessa quinzena do autor.

Alberto Vasconcelos
Santo André/SP, 30/12/2015 




 Carlos A. Lopes disse...
Ana, obrigado. Ser homenageado por você com NEVE NO SERTÃO é um presente de natal e uma prova de amizade.
24 de dezembro de 2014 09:40
 Excluir
Anônimo Marina Alves disse...
Grande autora, Ana Bailune, sempre me encanto com sua versatilidade, pois se sai maravilhosamente bem em qualquer que seja o desafio. Realmente um presente pra nós seus leitores, esses fragmentos reunidos de sua grande obra. Parabéns, Carlos pela oportunidade de mostrar ao Brasil, ao mundo, os nossos valores. Abraço aos dois.
26 de dezembro de 2014 21:59
 Excluir
Blogger Sandra Amorim disse...
Ana. parabéns por tamanha sensibilidade. Te ler é viajar na imaginação. Adoro esse exercício. Um beijo cheio de luz!
28 de dezembro de 2014 15:50
 Excluir

 Excluir