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quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Entrevista: Alice Gomes

Alice Gomes 

¨Há quem acredite existir uma diferença entre escrever e ser escritor, porém se alguém tem ideias originais para criar boas histórias, se elas têm o potencial de despertar o interesse das pessoas; o autor desenvolveu a habilidade de prender o leitor em sua narrativa, da primeira palavra até o ponto final. Assim sendo, com certeza é um bom escritor! As palavras são um grande instrumento transmissor de ideias e pensamentos, com poderes de transformar o mundo em um lugar melhor e mais bonito".
A escritora Alice Gomes nasceu em Arapongas, no Paraná, residente em Porto Velho, Rondônia. Como a própria se define: Contabilista por profissão (aposentada), além de alguns trabalhos em outras áreas, e poeta por predestinação. Uma filha, três netas. Muito trabalho, pouca renda. Que já conheceu intimamente o lado mais doce e o mais vil do ser humano. Enfim, uma vida pessoal medíocre como a maioria dos brasileiros.

1-             Quando e como surgiu seu interesse pela leitura e escrita?
Alice Fomes - O interesse pela leitura foi através dos gibizinhos do Tio Patinhas, bem antes da escola. Pela escrita, na adolescência, quando percebi a possibilidade de ter um mundo só meu.
2-             Quais foram seus livros preferidos quando era criança e os livros favoritos atualmente?
Alice Gomes - Meu primeiro livro foi A Casa dos Sonhos, que ganhei aos sete anos da minha professora, por bom comportamento na sala de aula. A partir daí, todos os que pude ler na Biblioteca, aleatoriamente.  Na minha casa não havia livros e ninguém, exceto uma das minhas irmãs, me incentivou a ler e muito menos a escrever.  Sou um ponto fora da curva. Por ler de tudo um pouco aprendi sozinha a depurar o meu gosto literário. Hoje prefiro os autores portugueses. Apenas para citar um, gosto muito do Saramago.
3 - Quais escritores são suas fontes de inspiração?
Alce Gomes - Nenhum, em particular.
4 - De que forma o conhecimento adquirido, seja pelo senso comum, ou pelo meio acadêmico,  ajuda na hora de escrever?
Alice Gomes - Não falo de outra coisa que não venha do conhecimento empírico. Coisas que vivi ou vi, seja em prosa ou verso, sejam reais ou metafóricos. Eu penso que a vida é um constante aprendizado, venha de onde vier a teoria será sempre o nosso olhar quem estará em nossas palavras.
5- Segundo o escritor Rubem Fonseca, “a leitura, a palavra oral é extremamente polissêmica. Cada leitor lê de uma maneira diferente. Então cada um de nós recria o que está lendo, esta é a vantagem da leitura". É isso mesmo? Concorda com essa proposição?
Alice Gomes - Concordo, em parte. Como leitora eu busco sempre me aproximar ao máximo do que o autor quis, efetivamente, dizer. É claro que, à primeira leitura, buscamos sempre o nosso reflexo, baseados em nossas experiências, mas já aprendi a me policiar para não incorrer no mesmo erro que não gostaria de ver em relação aos meus escritos. Mas, Quintana já dizia que o autor pensa uma coisa, escreve outra e o leitor entende uma terceira...  O importante é conseguirem se comunicar de alguma forma  autor e leitor.
6- Ainda segundo o Escritor Rubem Fonseca: “um escritor tem de ser louco, alfabetizado, imaginativo, motivado e paciente.” É o suficiente para ser um bom escritor?
Alice Gomes - Sobretudo paciente, o que não sou mas deveria... rsrs Faltou aí a verdade. Dificilmente me interesso em conhecer mais textos de um autor quando  não senti  a sua verdade. Não que eu não goste dos loucos, eruditos, imaginativos e motivados, porém, já admirei textos que de loucos não tinham nada, já obtive grandes ensinamentos em textos coalhados de erros gramaticais, já chorei em textos absolutamente concretos, já senti empatia por linhas desconexas  de autores completamente desmotivados, mas, não contendo a sua verdade, serão meras palavras.
7 - Para qual público se destina sua criação?    
Alice Gomes - Para os meus iguais, quando e onde estiverem.
8 - Como funciona o seu processo de criação? Quais sãos suas manias (ritual da escrita)?
Alice Gomes - Não tenho processo, talvez por isso não escreva tanto quanto gostaria. Como já disse só escrevo o que me vem à cabeça e nem sempre o que me vem à cabeça pode ser escrito naquele momento, depois esqueço. As minhas maiores criações ainda nem comecei a escrever, justamente pela indisciplina . Não sei se posso classificar como mania, mas gosto de escrever ouvindo música, tv, e com duas ou três abas abertas no computador, tudo ao mesmo tempo.
9 - Em geral, os seus personagens são baseados em pessoas que você conhece, ou são ficcionais?
Alice Gomes - As minhas personagens são todas eu, inclusive as que eu nem conheço...rsrs
10- Você tem outra atividade, além de escrever?
Alice Gomes - Financeira, atualmente não. A minha atividade primordial é observar o mundo, escrevo só nos momentos em que me canso dele.
11 - Você faz parte das Coletâneas Gandavos. Qual a sensação de participar ao lado de escritores de várias regiões do país?
Alice Gomes - É uma grande oportunidade de aprender com outras culturas. Repito o que disse no prefácio do Encantadores de Histórias: Gandavos é um pequeno grande barco, do qual somos todos marinheiros, saídos um de cada porto do Brasil, com nossas  bagagens de vida, nossas experiências e influências, e  que ao final de cada viagem convergimos para o mesmo cais, trazendo na mala o sentimento de parceria, que somente quem compartilha sabe o valor que isso tem.
12 - O financiamento coletivo e a publicação independente têm se mostrado a opção das publicações Gandavos.  Quais são os pontos positivos e negativos desse tipo de publicação?
Alice Gomes - O ponto positivo é o baixo custo da nossa vaidade de ver publicado um texto ou dois em cada livro, já que individualmente é muito oneroso. O negativo (para mim) é o constrangimento de ter que votar e ser votado durante a fase de amostragem dos textos. 
13 – Você já fez publicação de livros sozinho, seja impresso ou virtual? Quais e como o leitor pode adquiri-los?
Alice Gomes - Eu tenho um e-book com alguns poemas, “A umas que sou nas almas que fui”, disponível para download gratuito no site Recanto das Letras, presente da minha amiga e editora Helena Frenzel.
14 - Qual mensagem você deixaria para autores iniciantes, com base em suas próprias experiências.
Alice Gomes - Escreva, sem receio. Aprenda com os seus erros, invente outros. Seja você mesmo, o mundo anda cheio de cópias. Mostre-se mas não se venda. E lembre-se: raros escritores são lidos enquanto vivos.

domingo, 13 de setembro de 2015

A Quinzena do Autor: Alice Gomes

Alice Gomes

Sou quase uma de muitas.
De todas me falta um pedaço.
Um não-sei-quê, que ainda busco.


Por que escrevo?
Porque Uma e Outra me habitam.
Uma que está para o mundo e Outra que só está.
Uma respira o pó da terra, Outra o pó das estrelas.
Uma sofre quando pensa, Outra canta quando sofre.
Uma tem poderes de fazer calar, quase sempre.
Outra só tem o poder de sufocar, às vezes.
É Uma que escreve quando Outra quer falar.


ALMAS   (HÁ UMAS)

Há uma parte de mim que agradece à que desarruma
(uma parte de mim que obedece ) à que se acostuma
a uma parte de mim.

Há uma em mim que se acomoda, se empanturra,
se acautela, se engordura.
Há uma em mim que se sujeita.

Há uma em mim que se enoja, se esmurra,
se rebela, se procura.
Há uma em mim que se respeita.

Há uma parte de mim que se habitua à que adormece
(uma parte de mim que tumultua )  a que enlouquece
uma parte de mim.

Há uma em mim que boceja, atrofia,
desconversa, renuncia.
Há uma em mim que não rejeita.

Há uma em mim que lateja, repudia,
desgoverna, desafia.
Há uma em mim que não aceita.

Há uma parte de mim que não se importa,
uma parte de mim que grita e morde,
uma parte de mim que não suporta
uma parte de mim que vira e dorme.


AMOR TEMPORÃO    (letra de música)         


Já andei por caminhos, já pisei em espinhos,
que você, sendo tão jovem, sei que não pode entender.
Tenho tantas cicatrizes, de lembranças infelizes,
dessas que tanto remoem, de antes mesmo de você nascer.

E você chegou, quase menina, e me amou, inocente
num momento em que eu estava carente
sedento de vida, água fresca bebi
Me trouxe a fartura tardia das frutas sadias
e eu não resisti.

E eu te amei como um doido varrido
um louco perdido no meio de tanto frescor
Te sufoquei com meus beijos famintos
eu fui só instinto, não vi que matava um amor

Com a mesma leveza que veio
sem nenhum rodeio você me deixou
Eu vi que a loucura tem preço
sozinho envelheço: - a fonte secou.

E eu  gritei como um louco varrido
um louco perdido no meio da minha aflição
E sufoquei meu ciúme doentio
e agora o vazio, sofrendo com a solidão

Eu vi que a loucura tem preço
sozinho envelheço: - a fonte secou.
Com a mesma leveza que veio
sem nenhum rodeio, você me deixou.


ANGÚSTIA

a febre do estrepe
o eco do berro
o prego, o flagelo
o secreto inferno
o inverso.

a seca da pena
a arena, a algema
a rede, a sede
a parede

o beco, o fecho
o medo do erro
o peso do gesso
o azedo do apego
o avesso.

o desassossego.


NA RUA QUE VOCÊ MORA

Na rua que você mora
tem umas flores bem branquinhas
de uma árvore pequenina
que tanta inveja me dá
de todo dia vê-la passar
sem jamais ter de ir embora.

Ai! Quem dera também minha
fosse a rua que você mora!


HOJE NÃO

Juro por Deus que eu te queria
Fazer um poema de amor
Mas, à minha revelia,
O coração, miúdo e mudo,
Decidiu que hoje não...

Amanheceu carrancudo
Não quer riso, não quer sonho,
Não quer volta nem milagre
Só quer saudade sofrida
Do que foi realidade.

Perda por demais doída
Faz dessas coisas com a gente
Põe medo, tira a esperança
Tranca portas, pede um tempo
Vela em silêncio o fim de “um dia”

Juro por Deus que eu te queria
Aqui comigo pra sempre
Dizer o que nunca te disse
(E hoje até que eu diria)
Mas meu coração, de repente,
Resolveu que hoje não.


INDIFERENÇA       (letra)

As pintas todas das tuas costas já conheço bem
pois nas respostas nem te viras para ver-me
e ao fazê-lo , é com um desdém
que não se tem nem com um amigo
Eu tenho tanto a dizer-te e já não digo.

“Olha pra trás, olha pra trás” nas despedidas,
Já tentei isso com o olhar fixo em tua nuca
Eu sei, são coisas de maluco,
e estou maluco, sem cautela,
mas só eu sei da minha vida e o que fiz dela.

Falo bobagem, faço gesto, invento assunto,
Só pra saber se ainda resta alguma gota
mas há um fosso que é tão largo, é tão fundo
e fica sempre um gosto amargo na minha boca.

O nosso fim já está aí fora, bate à porta,
que ele entre, não importa, já passou da hora
Eu te devolvo a liberdade, sem nenhum pedido.
Eu vou sentir muita saudade, mas sobrevivo.


O CHÃO

Ah! Tão pé no chão!
Tão pé no chão que o peso do chão
me sobra à cabeça.
Me cobra a represa do voo travado.
Me pune o pecado da lida rasteira.

Da beira, da beira, da eterna beira,
de quem só entende de chão.

Da asneira de lição aprendida dos precipícios alheios.
Tanto receio, tanta xepa de vida!
Tanta regra seguida, a nem um metro do chão!

Quanto chão! Quanto chão!
Quanta vã guarida de chão!
Tanta pedra, tanto tropeço e o chão,
sempre o chão,
a me poupar da queda.

Quanta náusea de altura da superfície do chão!


O MEIO DO MEDO. O MEDO DO MEIO

Ando meio com medo da vida, mais que da morte.
Ando meio sem sorte, sei lá. Meio sem prumo.
Meio desacreditado até do que posso. Meio velho por dentro.

Ando meio cru, mal passado, vendo a vida passar, embrulhada
Em papel de embrulho de pão bolorento.

- Com tantos eus que podia ter sido e não me permiti um só! –

Ando meio só de mim, pra falar a verdade.
Ando não me querendo ultimamente.
- Nem a mim, ai de mim! –

Ando pelo meio do caminho, até da calçada.
Ando meio sem nada de bom pra fazer.
Ando é querendo ver logo o fim disso tudo.
Saber se o oco tem meio.

Ando com medo do meio um dia ser inteiro
E acabar pelo meio o tinteiro de cor desbotada
Que ressecou, por desuso, num canto da mesa.

- Ah! Pro meio do inferno toda essa tristeza! –

Bendita a ira que me liberta!


O RIO DETRÁS DA CURVA


Atrás daquela curva há um rio
Sei-o, porque o vi.

Há rios que ficam na retina,
para o lado de dentro.

Eternos, a quem os conhecem
invisíveis, a quem nunca os viram.

Amores, na vida, há alguns
que a curva do tempo não mostra.

Eternos, na memória do avesso
dos que os sabem, porque os viveram.

RELÍQUIA


Trago dentro do meu peito
um amor já amarrotado
tantas vezes desdobrado
na intenção de ser feliz.

É que o destino não quis
que este amor tivesse jeito.


Então, até por respeito,
Por medo que se destrua
e nem mais isso eu possua,
hoje o conservo guardado.

Melhor mantê-lo intocado
A arriscar vê-lo desfeito.


O traduzir-se

Com que cores pintar essa tela, se há nela todas as cores e, todas elas, intensas e sobrepostas? Que borrão é este, que encobre paisagens e cubos, e esferas?
Como traduzir este ser que há e que nem a mim se revela?
Sem antenas, setas, trilhos, retas. E nada se completa.

Tudo, de início em início, se entrelaça a outros inícios de coisa alguma.

E tudo esfalfa, tudo sangra, tudo arde.
 E tudo foge, tudo escapa, para de novo um novo ser se pintar.
Este ser de movediças areias, de patagônicas geleiras a se derreter.
Com que cores pintar instantes? Qual a cor da vertigem?

Que ser é este, múltiplo, ávido, desgovernado? Que olha por meus olhos e não me lega lembrança sólida de sequência nenhuma?
Este ser que não me ensina a diferença entre estar feliz ou infeliz, que não me dá tempo de sentir nada por inteiro. Que tudo já foi e não vi. E nada me deixa.

Que ser é este que em mim rodopia, e se contorce em misteriosas danças? E vai ao alto e despenca voos alucinados. E sorri, nem sei de quê, e se inebria. E fecha minhas pálpebras e aspira partículas inspiradas de sons dispersos no ar que é só dele. Que vivencia serenidades e no instante seguinte me encharca de angústia.

Que ser é este que em mim habita, mas não me pertence?
Com que cores pintar essa tela, se há nela todas as cores, e nenhuma permanece mais que um segundo?


O cavalo das almas  - I

Licinha ajudava como podia. Subia no telhado e, com vara, várias vezes mais longa que suas finas perninhas, socava, socava com força, pra dentro da chaminé.
A mãe talvez nem soubesse, (não, não sabia), o perigo que a filha corria. Em pé, sem apoio, girava no ar os braços, brincando de equilibrista. E ria.
Depois não descia, era por lá que ficava, no seu mundo de silêncio e telhas, e os livros que lia.
Às vezes ouvia o canto feliz da mãe, que cozia. Esquecida das pragas que há pouco rogava:
- Cavalo das almas!
Toda a pobreza, cansaço e fumaça, o fogão resumia.
Velho vermelho fogão, de cimento e lenha, e fogo, e choro. Nuns dias picumã, noutros iguarias. Nunca soube Licinha de onde vinha o nome e o porquê, achava que se tratava de tudo aquilo que entupia.
- Cavalo das almas!
E a vida seguia, como tinha de ser.

Numa noite, talvez véspera de Natal, findo um desses dias de pragas rogadas, ouviu Licinha a mãe que chorava, coberta de raiva, pobreza, cansaço e fumaça, e o pai que dizia: - Calma, velha! Não era pra eu lhe dizer (então, porque é que dizia?) mas amanhã ganharás um novinho, à gás!

Dos dias seguintes não se lembra, mas ainda em si e em meia dúzia de seres, mesmo que a ninguém mais faça sentido, haverá para sempre o amado inimigo:
- Cavalo das almas!
E a vida seguiu, como tinha de ser.


Antigamente...

Antigamente, quando eu era jovem, achava que podia comer a vida,
 feito sobremesa.
Que ela estaria sobre a mesa, esperando para após o jantar.
Não importava comer o nada, ela estava lá, para dali a pouco.

Quando finalmente cansei de inapetências quis o doce.
E ele era de fruta estragada.

Antigamente, quando eu era jovem, sonhava que o tempo não existia.
Que era brincadeira de mau gosto das velhas bruxas.
Desdenhava das máscaras enrugadas, mostrando-lhes minha força.
 Sem medo do escuro do meu quarto.

Quando finalmente, acesa a luz, porque se fez noite lá fora,
 o escuro veio para dentro.

Antigamente, quando eu era jovem, abdicava dos grandes prazeres,
na espera fantasiosa dos pequenos milagres.
Doava amores e humores a quem comigo dançasse
a dança dos desatentos.

Quando finalmente, pés cansados, ouviu-se a música,
zumbiu no ouvido o som do tempo. Desafinado.


Poesia para uma pedra


Sei que não falas a minha língua e nem eu entendo em qual idioma me desprezas.
Mas, quem dera, ouvisses-me, compreendendo-me!
Quem dera, que mesmo calados, entendesses que tenho eu muito mais a dar-te que tu a mim!
Quem dera o nefasto de teus longos braços, que hoje me alcançam e me destroçam, sucumbisse, à luz do entendimento!
Sei que a vida é perda, o tempo todo. Aprendi isto contigo e aprendi cedo, mas quem dera, o olhar que me negas ao menos te visse a ti, por dentro, e te cegasse das tuas monstruosidades!
 Sei que me poupaste ao acaso, e só ao acaso devo o que me resta de vida inocente, mas quem dera fosse a minha vida salvar-te da tua!
Quem dera descesses à minha trincheira, que hoje me obrigas a cavar com as minhas próprias mãos rubras de sangue, e visses, daqui de baixo, o mesmo céu azul que eu via, antes do teu sobrevoo!
Quem sabe aprenderias a minha língua e eu a tua, e aprendendo-a, te ensinaria que existem outras coisas a se fazer no mundo além de fechar caminhos.
Quem sabe me ensinarias a tecnologia com que fabricas as tuas bombas e eu, aprendendo-a, transformaria em saudáveis as tuas veias podres, e te daria século e meio de novas possibilidades.
Quem sabe converteríamos juntos a pedra que és, em água límpida, e irrigaríamos outros áridos solos. Quem sabe daríamos boas sementes.
Quem sabe houvesse tempo de não permitir-me crescer assim, tão parecida contigo.

(dedicado aos soldados que despejam bombas nas cabeças de crianças)


A borboleta

As lindas asas azuis de corpo cansado,
Finalmente na parede quieta e branca.
Ah! Descanso! Oh! Cansaço!

Grande aventura foi o voar! Sim, grande aventura!

O que fazia mesmo enquanto voava? Não se lembra.
Ah! Descanso do voar! Oh! Cansaço do voar!

A amiga cigarra, a cantar, cantar:
- Despuès de um año bajo la tierra!
Morreu a amiga de tanto cantar.

Ah! Se pudesse, outra vez, lagarta!
Comer, comer! Brincar de comer.
Há quanto tempo não come...
Deslizar por entre as folhas e depois comê-las.
E deslizar, e comer, e deslizar, e comer.
Armazenar, armazenar.

Grande aventura foi o voar! Sim, grande aventura!

O que fazia mesmo enquanto comia? Não se lembra
Ah! Descanso do comer! Oh! Cansaço do comer!

A amiga cigarra no chão. As formigas a comê-la.
Comer! Comer!
Armazenar. Armazenar.

Ah! Se pudesse, outra vez, casulo!
Silêncio, silêncio. Dormir em silêncio.
Dormir em si mesma, sobre si mesma, dentro de si.
Há quanto tempo não dorme...
E dormir, e comer-se, e dormir, e comer-se.
Poupar-se. Poupar-se.

Grande aventura foi o voar! Sim, grande aventura!

O que fazia mesmo enquanto dormia? Não se lembra
Ah! Descanso do dormir! Oh! Cansaço do dormir!

A amiga cigarra, que já é formiga...
Fragmentos de cantos comidos.
E tudo é transmutar.
Ah! Se pudesse, outra vez, o voo!
O gozo consciente do voar!
Sem fome, sono, chão, amiga, destino.
Sem visões de formigas de asas azuis.
Nunca mais o encolher-se
Nunca mais o desdobrar-se

Grande aventura foi o voar! Sim, grande aventura!

O que fazia mesmo enquanto tentava? Não se lembra.
Ah! Descanso do tentar! Oh! Cansaço do tentar!


sábado, 12 de setembro de 2015

Dores, amores e uma canção

Alice Gomes

Seria uma bela canção como qualquer outra bela canção, não fossem as marcas profundas deixadas, em três fases distintas, na minha vida. E uma canção, quando se torna a trilha sonora de uma vida, nunca mais dela se esquece.
“O teu olhar caiu no meu, a tua boca na minha se perdeu; foi tudo lindo, foi tão lindo, foi...”
Maio de 1995. A noite em que dormi na sua casa, hóspede da família, foi decisiva para unir duas pontas de uma história feita de ilusões. Uns dez anos que não a via. Tornara-se uma linda mulher, quem diria, aquela pirralhinha dentuça de cabelos despenteados! Que idade mesmo? Uns treze ou quatorze, nem me lembro...
Casa pequena, foi-me oferecido o seu quarto para o pernoite, ela no sofá. Ficaria eu no sofá, sem problema, porém, diante da insistência da mãe e dela própria, resignei-me a dormir num quarto de paredes cor-de-rosa, ursinhos e penduricalhos que desciam do teto até quase ao meu nariz.
— Está tudo de acordo? Precisa de alguma coisa? Olha, aqui na parte de cima  do guarda-roupa tem o edredom, caso esfrie. O banheiro fica ali no corredor, segunda porta, mas você ainda se lembra, não? O interruptor ao lado direito, quase atrás da tv. – De um só fôlego, naquele tom polido e ansioso das camareiras de hotel em  final de expediente.
— Está tudo bem, não se preocupe e obrigado por tudo. – Respondi, também rapidamente, incomodado pela presença daquela quase estranha e linda mulher. Eu precisava estar só para me reencontrar. Tantos anos passados desde que eu saíra daquela cidade e da vida daquelas pessoas e agora ali, meio sem jeito. A família toda, muito minha amiga, que me ajudara a suportar alguns dos piores anos de um casamento infeliz.  Muitas e muitas vezes eu vim àquela casa unicamente para conversar amenidades, jogar dominó ou cartas com eles. Seus dois irmãos, ela e eu formávamos as duas duplas, e passávamos horas a rir e a brincar inocentemente, sempre ao som de canções da época ou até mais antigas, das quais ela gostava, para minha surpresa, pois eram do meu tempo e não do seu.
— Você ainda tem aqueles discos que ouvíamos quando eu vinha aqui? – escapou-me a pergunta que transformaria a minha vida.
— Sim, tenho todos ainda guardados. Estão aí numa caixa, embaixo da cama. Quer que eu ligue o toca-discos pra você? – indagou, aproximando-se.
Por um momento pensei em dizer não, mas, não sei se pela demora na resposta ou pela urgência do reencontro com o meu único pedaço de passado feliz e nisso a música talvez ajudasse, quando dei por mim já um som baixo e melodioso invadia o ambiente. E já eu, sentado na cabeceira da cama e ela, na outra extremidade e, entre nós, diversos discos espalhados. – Olha este! Lembra daquele dia, assim, assim...? – Sim, me lembro. E esta música? Lembra daquela vez em que... E, aos poucos, aqueles dez anos em que estivemos distantes desapareceram e me senti transportado novamente para o seio daquela família tão querida, que tão bem me acolhia sempre que eu precisava.
Num determinado momento, (sim, determinado, porque me parece, hoje, determinado pelo Destino), as palavras da canção: “ o teu olhar caiu no meu...” aniquilaram de vez as minhas forças. Debrucei a cabeça sobre o colchão, com uma vontade imensa de atravessá-lo, e ao centro da Terra, e ir sumir lá pelo outro lado do mundo. Sumir com todas as lembranças dos meus longínquos vinte anos na década de setenta, quando a ouvira pela primeira vez e a sussurrara nos ouvidos da primeira namorada, que viria a se tornar esposa.  Lembranças de todas as dores do mundo, que foram minhas, pela escolha errada da mulher errada na época errada. E sumir comigo próprio, que não soubera me salvar a tempo de não fazer sofrer a mim, à minha companheira e aos meus filhos, testemunhas e vítimas de um casamento angustiosamente frustrado. Sumir até mesmo com a lembrança recente da razão pela qual eu viera parar naquela casa, pernoitar para seguir adiante, numa viagem que me fizesse esquecer o doloroso fim de uma união de tantos anos.
Foi nessas e por essas circunstâncias que o toque suave dos seus dedos nos meus cabelos arrepiaram-me até à alma. Levantei a cabeça, olhos fixos e depois fechados... “E foi tão lindo, foi, e eu nem me lembro do que veio depois”... Amanhecemos num abraço contorcido de cama de solteiro num quarto de paredes cor-de-rosa, ursos e discos pelo chão e penduricalhos a fazer cócegas no nariz. O sol, batendo no rosto, a me lembrar que era preciso urgentemente desarrumar o lençol do sofá e torcer para que o sono da mãe tivesse sido pesado. Não o foi. Ela já nos esperava com o café pronto e sorriso nos lábios. Vim a saber por ela, com o olhar assertivo e encabulado da filha, que aquele momento teria que ser vivido um dia, pois que senão, a filha não desengasgaria aquela paixão-espinho-de-peixe que lhe atravessava a garganta. Vim a saber detalhes dos quais eu nem sequer supunha daquele amor platônico pré-adolescente, enquanto eu a considerava uma pirralha boa parceira de baralho. Da vigilância permanente da mãe e irmãos para que ela não se excedesse e eu não desconfiasse, pois sabiam eles, mais velhos, de todos os meus problemas reais da época e que eu certamente me afastaria, caso soubesse que uma garotinha estaria interessada em mim, tão mais velho que ela e casado. Mal casado, sabíamos todos, mas responsável o suficiente para não tirar proveito de sua inocência.
O mundo é feito de ilusões e eu tive as minhas, por duas vezes. Na primeira, quando eu, jovem, me perdi de amores por uma mulher e com ela constituí família e envelheci mais que devia. Na segunda, eu, meia-idade, cabelos indecisos entre preto e cinza, me perdi de amores por uma jovem que me convencera de que eu era um semi-deus. E “eu me senti renascendo outra vez”... Fiz da minha vida uma canção. Esqueci, por um precioso tempo, das dores do mundo e me entreguei de corpo e alma àquela criatura, tão sedenta de vida, tão ávida de tornar realidade as suas mais loucas e ensaiadas fantasias. Realizei-as todas, as delas e as minhas. E fui imensamente feliz ao seu lado, mesmo nas horas em que o medo de perdê-la me roubava horas de sono e, nessas horas de vigília, em que eu a tinha em meus braços, a sono solto, me vinha a certeza de que nunca mais seria o que fui, depois dela.
Poderia terminar aqui a minha história e seria um final sublime, porém todas as ilusões, que pena, um dia acabam. Acabou-se a minha primeira quando tive de fazer ver à mulher errada que alguns namoradinhos apaixonados um dia despertam, sufocados e envelhecidos mais do que deveriam e que, nesse dia, é preciso libertar-se para não mais sofrer. (Por onde andará meu primeiro amor? Nem sei se ainda vive...) Acabou-se a segunda quando tive de me fazer ver que garotinhas apaixonadas um dia despertam, sufocadas por insônias alheias e que, nesse dia, é preciso libertar para não mais fazer sofrer. (Por onde andará meu segundo amor? Saberá que ainda vivo?...)
Pensando no mal e no bem que nos fazem ilusões e desilusões, e o que delas em nós permanece, brindo, sereno e só, à minha nova fase, a terceira das idades: aquela, onde se pode ouvir, em silêncio, e entender e absorver cada um dos versos de uma linda canção. 

Autora: Alice Gomes
Porto Velho/RO