sábado, 31 de outubro de 2020

TÍTULO: LEONOR

 



MARIA MINEIRA:

Entre as casinhas daquelas bandas, destacava-se a de Leonor, caiada de branco, com janelas azuis. À entrada, chegando ao terreiro, um cruzeiro enfeitado de cipós floridos. Sendo ela, a moradora, uma viúva ainda jovem e bela, segundo corria na boca do povo, não levava vida de mulher direita.

Pedro estava de  partida, a mãe com cara de satisfação e vitória, finalizava a arrumação  de seus pertences para a viagem. Ele tentava ignorar a mala no chão da sala. O olhar triste para a casinha branca do outro lado do rio, bem ao pé da serra, parecia que  alma queria saltar do corpo e ficar por ali vagando...

Leonor sentada perto do fogão a lenha tentava se aquecer de uma friagem que parecia acumulada de muitas vidas. Aflita, sentia que nada mais poderia ser feito, além de se conformar com  sua triste sina. Tantos momentos bons  perdidos para sempre. Ela sabia que Pedro  logo a esqueceria nos braços de outra mulher, talvez até mesmo aquela imposta pela mãe. Ela queria gritar tudo que estava sufocado no peito para impedir que ele fosse embora e começasse uma vida longe dela. Era jovem, bonito e o  futuro lhe acenava cheio de esperança...

ALICE GOMES:

Berenice, mãe de Pedro, não via a hora de separar o filho daquela sirigaita, como a chamava na roda de amigas .

– Deus me livre deixar meu menino nas mãos de uma mulher dessas! – e desfilava o seu rosário de nomes depreciativos com os quais iniciara uma verdadeira campanha contra a honra de Leonor.

O que ela não contava, nem sob tortura, era do ciúme mórbido que sentia dos olhares do marido para Leonor, desde quando o falecido ainda era vivo! O falecido marido de Leonor fora empregado do seu por muitos anos e, por esta razão, Leonor frequentava sua casa em várias situações, sempre que ela precisava dos seus serviços na cozinha. Já naquele tempo se incomodava com o frescor da juventude e a beleza da empregada. Mas, o ciúme bateu violento, mesmo, foi durante o velório e os preparativos do enterro. Não adiantou o marido argumentar que tanto desvelo  para com a jovem viúva se devia à velha amizade dele com o falecido. Fez questão de impor distância entre os dois,  tomando para si a responsabilidade de suprir as necessidades da viúva, a pedido do marido, sem que ele lá fosse. Então, a partir desse dia, incumbiu Pedro da tarefa, entre outras coisas, de levar todos os meses a cesta básica para Leonor. Para seu martírio, agora era o filho quem caía de amores pela sirigaita.

Leonor, alheia às verdadeiras intenções de Berenice, apenas se lamentava de seu cruel destino. Não tivera sorte, nem com o casamento arranjado pelo pai, quando ainda quase menina, e muito menos com a possibilidade de ser feliz com Pedro, seu verdadeiro amor... O que seria de sua vida agora?

CRISTHIAN DIAS:

Leonor não era santa, mas também não era uma criatura destinada a ser queimada na fogueira, como uma bruxa das histórias medievais. Berenice, como diz o  povo, era uma “beatona” , dedilhava seus rosários, mas continuava sendo a mesma carrasca de sempre.

Recordo a vós, leitores, sobre o dia em que Pedro partiria, o que fez esta  perversa mulher, a fim de arruinar a história de amor dos pombinhos. Para agradar seu filho, propôs ao marido que fizesse no dia 13 daquele mês, um almoço de despedida. Este que de bobo não tinha nada, logo aceitou, pois raramente a esposa avarenta sugeria tais coisas.

E assim, os empregados iniciaram a preparação daquele almoço, cevando o porco alguns dias antes, para que estivesse bem gordo para o momento de colocá-lo no forno. Também se prepararam para fazer uma deliciosa galinha caipira! Seu Agostinho se encarregou de arrumar uma boa pinga para beber com o filho, uma última vez, antes de sua partida.

Dizendo necessitar da ajuda da moça para a preparação do almoço de despedida, Berenice foi até a casa de Leonor e pediu  que comparecesse à sua casa, a partir  das seis horas da manhã para ajudar na cozinha. Inocente era o coração de Leonor, que rapidamente enxugou as lágrimas e pulou de alegria ao receber tal convite, pois assim poderia ver ao menos uma última vez, o seu “Romeu”.

Ao lembrar daquela palavra tão forte, rápida ao balbuciar, mas com um significado tão profundo, que marcava o interior de sua alma, lágrimas correram  e cessaram ao olhar para o botão de rosa, presente do seu amado. Despedida, era a palavra...

HELENA SOUZA:

Leonor sentiu  que não poderia ir àquele almoço,  pois não suportaria  tão grande tristeza ao ver Pedro com outra mulher. Apesar de sentir a rejeição da patroa e vizinha, a jovem  respeitava a senhora Berê. Era assim que a chamava e nunca quis faltar-lhe com o respeito. Disse então que iria sim, ajudá-la no almoço e se sentia na obrigação de fazê-lo.

Leonor nem dormia mais direito, pensava dia e noite na sua desafortunada vida. Não sabia o que fazer, amava Pedro e  jamais se casaria com ele, pois havia outra. Consumiu-se em pensamentos e dias tristes, até na manhã daquele dia 13.  Não se sabe se de tristeza ou de natureza física, a pobre Leonor não conseguiu levantar-se da cama, ardia em febre naquela manhã.

Dona Berenice recebeu um recado logo cedo, avisando sobre a enfermidade da moça. Precisou então ajeitar-se apenas com os empregados da fazenda e providenciar ela mesma, o almoço daquele dia. Acabou conseguindo e tudo saiu como queria.  Na hora tão aguardada por  ela, a jovem  juntamente com os pais chegou à fazenda, para o tão esperado almoço.

Fina e educada ela  comportou-se como uma dama perante os pais de Pedro, seu futuro marido,  a quem deveria amar e cuidar. As famílias trataram de adiantar os preparativos do casamento, sem esquecer da necessária partida do casal, que iria morar bem longe dali. A jovem sentou-se ao lado do noivo e era notável o desconforto entre ambos, pois mal se conheciam e muito menos se amavam. Não tinham no olhar, algo  que somente jovens enamorados compartilham.

Seu Agostinho, ao perceber a situação, tentou deixar o filho mais à vontade, servindo-lhe algumas bebidas a mais. No final do dia, Pedro já estava falante e alegre. Despediu-se de todos e após partirem, mal esperou a noite e  também se retirou, mas não para seus aposentos. Atravessou o rio e caminhou em direção à casa branca ao pé do morro, para cuidar e amar a quem ele realmente desejava...

MARIA MINEIRA/ EPÍLOGO:

Respiração ofegante, coração batendo acelerado, pois Pedro estava decidido a deixar tudo de lado e assumir Leonor, juntamente com os filhos! Seus pais que o deserdassem se fosse o caso. Deixaria o coração falar, não seria infeliz o resto da vida por convenções sociais. Sentia um alívio imenso após ter tomado tal decisão.

Ao se aproximar da casa, estranhou uma lamparina acesa, pois geralmente nessa hora, as crianças já estariam dormindo e Leonor também. Ouviu alguns murmúrios, vozes abafadas e se escondeu atrás do muro de pedras. Pôde ver claramente um homem coberto por uma  capa, se esgueirar por entre as árvores do quintal.

Coração estilhaçado, mas precisava  saber quem era. Sorrateiro, acompanhou aquela pessoa  por alguma distância e não teve mais dúvidas. Pelo rumo que o homem seguiu, pela estatura e até a cor da capa denunciada  pelo clarão da lua, Pedro teve certeza. Era seu próprio pai!

Era o amargo e dolorido  fim de um amor que iluminado sua vida desde a adolescência. Pedro, desnorteado  ficou sentado à luz da lua cheia até a madrugada. Sua existência se transformara em poucos minutos em uma escuridão sem volta. Nunca comentou com ninguém o que pensou naquelas horas em que foi o mais solitário dos  mortais.

Na mesma madrugada entrou na casa onde crescera, pegou sua mala, despediu-se e seguiu rumo à estação férrea. Havia tristeza nos olhos dos pais, mas também um estranho contentamento ao vê-lo partir . O trem chegou na estação quando o dia amanhecia.  

O burburinho dos passageiros não foi percebido, assim como aquele trem, o seu coração parecia ser metálico e frio para sempre. Viu muito beijos e abraços das despedidas, mas nenhum  para ele. Ela não viria se despedir, afinal, o que poderia ainda ser dito? Haviam jurado amor eterno e que só Deus os separaria, mas ela não cumpriu!

A viagem seria muito longa. Tirou da carteira a única foto que tinha de Leonor, olhou pela última vez aquela mulher linda de pele clara e longos cabelos negros, rasgou em muitos pedaços e atirou pela janela. Caía uma chuva fina e com certeza  apagaria a imagem do papel atirado ao vento, mas jamais do coração...

Há muitas léguas dos trilhos, na casa dos pais:

– Berenice, eu não me conformo de ter aceitado sua ideia, ido lá naquela hora levar remédio para Leonor e feito isso com nosso filho.

Ela disse com ar triunfante:

– Prefiro um filho longe de mim para sempre que casado com aquela mulher!

Após cinco décadas, Pedro voltou à antiga fazenda que fora dos pais  e com dificuldade atravessou o rio, obedecendo seus pés que o levaram até a casinha branca já quase  em ruínas. Ao se aproximar avistou sentada num toco  debaixo de uma árvore, uma mulher idosa de olhar sereno. Ela tinha os  cabelos brancos presos por um coque no alto da cabeça. Acomodou-se ao seu lado como se o tempo não tivesse passado e segurando sua pequena mão enrugada, disse:

– Pensei que me amava. Por que me traiu?

– Amava muito. Seu pai aquele dia me fez entender que eu estragaria sua vida, eu fiz a coisa certa.

 Me traiu com ele?

– Com ninguém, nunca!

As mãos se uniram para nunca mais se separarem. No céu, a lua cheia foi testemunha silenciosa daquele momento...


AUTORES;

MARIA MINEIRA, ALICE GOMES, CRISTHIAN DIAS E HELENA SOUZA

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

TÍTULO: O PREÇO DA FAMA

 



Parte 1 — João Batista Stabile

 

No seu confortável apartamento, num bairro de classe média alta na cidade do Rio de Janeiro, Maria da Conceição olhava o espelho. Ela não via uma senhora de 83 anos, mas a jovem que aos 18 anos de idade travou uma verdadeira batalha contra os padrões sociais da época, em nome de um ideal.

Enfrentou o preconceito de uma sociedade — que naquele tempo era mais machista que hoje, e o de uma tradicional família de imigrantes italianos, principalmente por parte de seu pai, um renomado médico, diretor de um hospital, numa cidade de grande porte no interior do Estado de São Paulo. Ambicioso e autoritário, o pai a tratava como a uma criança. Tinha em seu desfavor o fato de ser mulher e a caçula de cinco irmãos, sendo o mais velho também médico, e os outros três encaminhados profissionalmente, com as bênçãos do pai.

Maria da Conceição pôde contar apenas com o apoio de uma pessoa: a avó paterna, sua confidente desde criança, e cúmplice no seu plano de desviar-se do destino traçado por seu pai, que era o de mandá-la à capital de São Paulo, para ingressar na universidade e se preparar para a carreira acadêmica, como professora universitária. Sua mãe, apesar de em segredo torcer por ela, não teve coragem de se indispor com o marido, manteve-se neutra.

Quando num jantar de família ela comunicou a todos o que há muito vinha pensando, foi um alvoroço. Tentaram de todas as formas demovê-la de seu intento, até ameaças recebeu, mas não cedeu nem um milímetro. Buscava forças no olhar discreto, mas expressivo de sua protetora. Por fim, contra a vontade de todos, menos da avó que a ajudou com dinheiro de suas economias, partiu para o Rio de Janeiro em busca de realizar seu sonho....

Parte 2 — Marina Alves

Da janela do trem, Maria da Conceição vislumbrou as primeiras paisagens da belíssima metrópole, onde pretendia viver dali por diante. Ali estava seu mundo, sua vida e nada a faria mudar de ideia, ou voltar atrás: o Rio de Janeiro abrigava tudo que queria para si desde muito cedo, quando folheava as revistas que a mãe assinava. Ali haveria de realizar seus mais ousados desejos! E foi pensando nisso que ela saltou na estação e chamou o carro de aluguel que a levaria ao endereço que a avó secretamente lhe havia confiado na véspera de sua partida, quando conversaram por longo tempo a portas fechadas. Duas horas depois ela saltava à porta de um pequeno sobrado onde se lia “Há vagas para moças” e apresentava-se ao senhorio:

— Con Ricceli! — disse estendendo a mão direita para cumprimentar o homem baixinho e atarracado que viera atendê-la.

Após acomodar os poucos pertences da pequena mala e tomar uma boa chuveirada para descansar o corpo cansado da viagem, a moça sentou-se numa cadeira de palhinha postada ao lado da cama. Retirou da maleta de mão um espelho oval, com cabo de madrepérola que a avó lhe dera também na véspera. Olhou-se demoradamente e o que viu a deixou muito satisfeita: cabelos louros cacheados, o lindo rosto de pele fina e branca, olhos claros de uma limpidez espantosa, a boca de lábios cheios e bem desenhados, sobrancelhas espessas e bem traçadas, conforme os ditames da moda. Não havia dúvida: Con Ricceli — que era como seria chamada e reconhecida dali por diante, era uma mulher lindíssima. Sim! A beleza lhe abriria as portas do sucesso... Além, é claro, da voz, seu mais caro e poderoso atributo! Sorriu para si, refletindo no espelho a fileira de pérolas dos dentes perfeitos. A vida era bela! E ela também!

Após uma noite de sono repousante, em que evitou pensar no que deixara para trás, Con levantou-se com uma disposição que não sentia, há anos. Arrumou-se com extremado zelo, vestindo o que tinha de melhor. Chamou um carro, desta vez, para levá-la a outro endereço cuidadosamente pesquisado e anotado em sua cadernetinha azul: o da Rádio Litoral...

Parte 3 — Celêdian

Em pouco mais de meia hora lá estava ela, fascinada, diante daquele prédio que nada tinha de imponente, mas por estar diante da possibilidade de realizar o que sempre sonhara. Con ficou alguns minutos ali parada, tomando coragem para entrar. Já na portaria se deparou com o primeiro obstáculo: ao se apresentar e dizer que precisava falar com Cassiano Duarte, foi questionada pelo porteiro, se havia marcado entrevista e por quem havia sido indicada. Ao responder que não marcara e que não havia nenhuma indicação, que estava ali pelo anúncio de um show de calouros, recebeu dele uma resposta seca e nada amistosa, que as inscrições já estavam encerradas e que não conseguiria falar com o famoso Radialista. Ela agradeceu e saiu dali desolada, mas sem desistir de achar uma saída, pensaria em alguma estratégia e voltaria a Rádio. Andou a esmo pela Cidade Maravilhosa horas a fio, observando tudo à sua volta, deslumbrada com tantas novidades. Retornou exausta à pensão. Dormiu mal, pois ficara maquinando ideias do que poderia fazer.

No dia seguinte, bem cedo, aprontou-se e decidida voltou a Rádio. Levava consigo um bilhete que ela mesma escrevera e no qual simulava a recomendação de alguém importante, um nome famoso que por acaso ouvira em um programa de rádio. Por sorte, o porteiro não era o mesmo do dia anterior e enquanto ele fazia-lhe as mesmas perguntas do anterior, mostrou-lhe o bilhete e ele prontamente, sem nenhuma resistência a mais, a encaminhou à presença de Senhor Cassiano.

Ao vê-lo, ficou espantada, pois esperava encontrar alguém mais velho, mas era um rapaz que aparentava aproximadamente 30 anos, muito magro, pálido e com os cabelos mal arrumados. De cabeça baixa, vendo alguns papéis e sem sequer fitá-la, ele perguntou a Con do que se tratava a sua visita. Ainda meio desconcertada, optou por não continuar mentindo e afobadamente contou-lhe sobre o falso bilhete que forjara e também uma breve história sobre a relutância da família pela sua decisão de tornar-se cantora. Contou também que viera do interior de São Paulo atraída pelo anúncio do show de calouros, mas encerradas as inscrições ficou sem rumo, pois tratava-se da grande oportunidade de sua vida, de mostrar o seu talento musical. Foi então que Cassiano a olhou pela primeira vez, e extasiado pela sua beleza, perguntou qual o seu nome e a sua idade. Con, ainda de pé diante dele, sentiu-se um pouco constrangida com aquele olhar perplexo que parecia desnudá-la, mas que ao mesmo tempo revelava certa ternura. Ele, ainda sem saber exatamente o que decidir, disse a ela que voltasse no dia seguinte e que veria o que poderia fazer. Ela agradeceu efusivamente e saiu dali direto para a pensão, sabia que seria um longo dia e uma longa noite de muita ansiedade.

Amanheceu, e Con tratou de vestir a sua melhor roupa, de pentear-se com esmero, de passar o seu batom preferido e lá se foi em busca de seu destino. Só não contava com uma surpresa que tomou conhecimento ao chegar a Rádio... 

Parte 4 — Maria do Rosário

Chegando ao hall de entrada, foi recebida pelo mesmo porteiro do dia anterior que a informou da mudança do local do ensaio para o programa e que ela estaria entre os selecionados, se fizesse uma boa apresentação. Con sentiu o coração bater forte, apanhou o papel com o endereço e novamente entrou num táxi que a levou ao seu destino. Achou estranho o silêncio e o vazio do lugar, mas tomou o elevador e subiu para o sexto andar, onde seria o ensaio. Ali chegando, tocou a campainha, a porta se abriu e do outro lado lá estava Cassiano, com um olhar bem mais atencioso que o do dia anterior. Convidou-a a entrar e ela estranhou não ver mais ninguém. Perguntou se seria ali mesmo o ensaio do programa, ao que ele respondeu com um sorriso enigmático que havia reservado uma audição apenas para ela. Con sentiu-se desconfortável com a resposta, olhou para os lados e, de repente, seu olhar doce e sereno foi ganhando traços de desconfiança e medo. Percebendo a sua reação, Cassiano disse que poderia ficar à vontade, que dali a pouco chegaria um pianista para acompanhá-la, que deveria estar atrasado. Pediu que ela se sentasse, o que ela fez, meio a contragosto. Passados alguns minutos, em que um silêncio estranho pairava no ar, Cassiano começou a perguntar de sua vida, de onde viera, que planos tinha para o futuro. Ela começou a falar de si meio timidamente, mas aos poucos foi se revelando, deixando que ele conhecesse um pouco do seu perfil, sem entrar muito em detalhes. Pouco a pouco, ele foi se aproximando, e sem que ela esperasse, de repente, pegou uma de suas mãos. Ao ver seu olhar assustado, falou calmamente:

— Calma, menina linda! Só quero ver se você tem mãos de fada ou de musicista. Toca algum instrumento ou apenas canta?

— Apenas piano, mas prefiro só cantar. É meu sonho, desde menina, ser uma grande cantora, um dia. Vim para o Rio em busca de uma carreira no ramo da música. Será que vamos demorar?

— Bem, vou ser franco com você. Não estamos esperando ninguém. Pedi que viesse aqui porque queria vê-la, sozinho. Percebi que é uma boa moça e não queria que você fosse exposta em meio a uma centena de calouros e jurados sem paciência para quem está começando. Queria que você cantasse sozinha para mim. É possível?

Cassiano a olhou de um jeito tão terno e ansioso, que ela, de repente, sentiu-se um pouco mais aliviada e mais à vontade.  Mostrou-lhe o piano no fundo da sala, e ela timidamente começou a soltar as primeiras notas. Quando definiu o que queria, soltou a voz devagarinho. E, de repente, a música Lábios de Mel ecoou pela sala, primeiro baixinho, depois até superando a interpretação maravilhosa que ele ouvira da cantora Ângela Maria. Ele a ouviu emocionado, e ficou sem palavras quando o último acorde trouxe o silêncio de volta.

— Menina, estou maravilhado! Meu sexto sentido estava certíssimo quando não me deixou lhe expor no teatro da Rádio. Você nasceu para cantar. Não acredito no que acabei de ver e ouvir. Você tem uma voz de anjo, com a força de uma leoa cantando. Nem sei o que dizer.

Con ouvia constrangida, meio encabulada, mas já se sentindo encorajada pelo entusiasmo do Radialista. Resolveram sair e combinar o programa, e foram andando juntos pela avenida, enquanto esperavam um táxi. Ele a convidou para um café, já que estava ficando tarde, e ela aceitou. Conversaram no café como se já se conhecessem há muito tempo e, de repente, ela se assustou ao sentir que estava começando a se sentir atraída por ele.  “Deve ser natural isso, pensou. Ele está me ajudando a realizar um sonho, gostou da minha voz e isso está despertando minha simpatia. Para Cassiano Duarte, eu devo ser só mais uma que ele ajuda na carreira artística”.

Mas não era. Desde o primeiro programa, Cassiano mostrou-se totalmente atencioso com ela, pedia que ela o esperasse até terminar seu horário e sempre iam almoçar juntos, ou passear para que ele lhe mostrasse a Cidade Maravilhosa. Quando percebeu, estavam namorando. Ele apaixonado pela sua beleza, simplicidade e talento, e ela, pela atenção e carinho que ele demonstrou, desde o primeiro encontro. Tudo ia bem, até que Con recebeu o convite para gravar o primeiro compacto. Ela correu ao encontro dele para contar a grande novidade, mas a expressão que viu em seu olhar a desarmou e a deixou sem palavras:

— Jamais, Con!! Nossa vida está ótima como está, nós dois estamos a cada dia mais apaixonados, quero construir minha vida ao seu lado. Você é tudo que sonhei, mas não quero dividir minha futura esposa com o palco, seja do que for. Quero que você cante só para mim, no nosso círculo de amizades. Não quero que você perca essa ternura e essa pureza na sujeira do mundo artístico. Você não sabe como é a vida de quem entra nesse círculo vicioso, em que a rivalidade impera e cada um quer passar por cima do outro. A luta pelo sucesso é cheia de espinhos e eu não vou deixar você se machucar.

Ela ficou em silêncio, sem saber o que dizer, mas sentiu o chão fugir-lhe aos pés, quando ouviu palavra por palavra. Como ele podia estar falando assim, se sabia que o motivo de sua vinda para o Rio era a luta pela carreira? Como podia, de repente, sentir-se dono do seu destino? Olhou para ele com os olhos cheios de lágrimas e sentiu o coração explodir, porque sabia que das suas palavras dependia seu destino...

Final — João Batista Stabile

Con disse secamente:

— Amanhã conversamos sobre isso! — e foi embora.

Eles namoravam havia quatro anos, ela morava num modesto apartamento. Já em casa, Con não conseguia acreditar no que estava acontecendo, e pensava: “Eu não briguei com toda a minha família e com alguns amigos que não aprovaram minha decisão, para chegar aqui e outro homem controlar minha vida. Isso nunca!”. Dormiu mal naquela noite, mas acordou decidida: “Se é esse o preço, vou pagar!”.

No caminho para a Rádio em que Cassiano trabalhava, ela ia pensando e juntando as coisas. Ele sabia que seu objetivo era se apresentar num programa da Rádio Nacional. No entanto, não demonstrava interesse nisso, sempre com a desculpa de que queria prepará-la primeiro, pois a concorrência era grande e não queria que fracassasse. Com isso, ia levando-a com algumas apresentações em outras Rádios, cantando em boates ou em festas com os amigos dele, que ela acabara conhecendo. E sempre que tinha uma oportunidade dava a entender que ela deveria continuar assim, que o caminho da fama era muito perigoso e não o agradava.

Con Ricceli  chegou decidida e disse sem rodeios, antes que fraquejasse:

— Cassiano, eu não admito que você decida por mim. Vim para o Rio de Janeiro com o objetivo de ser uma cantora de Rádio, profissional. Vou conseguir isso, com ou sem você, essa é a única decisão que lhe cabe. Disse isso com o coração apertado, pois o amava.

Ele, surpreso com a determinação da moça, ficou sem reação. Pensando que ela iria voltar e suplicar sua ajuda, disse apenas:

— Está bem! Se é isso que você quer... Siga em frente, se conseguir! Mas não conte comigo, nosso relacionamento acaba aqui.

Foi a última vez que conversaram. Ela, mesmo sofrendo não voltou atrás. Foi mais difícil dali por diante, pois algumas portas se fecharam com o fim do relacionamento, mas gravou o LP, e manteve-se firme no seu propósito de cantar na Rádio Nacional.

Con mantinha a avó informada, por carta, de tudo que lhe acontecia. Quando ela já estava meio cansada daquela peregrinação por Rádios e shows, um golpe de sorte fez com que conhecesse nada menos que a estrela do Rádio, Ângela Maria. Encontrou-a, por acaso, num café, e nem se lembrava direito como foi, mas conseguiu contar sua história e deu-lhe um disco de presente. Ângela prometeu que iria ouvir com carinho, que a procurasse dentro de três dias. Con Ricceli foi para casa, maravilhada. Não acreditava que tinha conhecido pessoalmente a famosa cantora. Passados os três dias, foi procurá-la. Ângela Maria a tratou com cortesia e disse:

— Você é uma lutadora como eu. Gostei do seu disco, vou apresentá-la a um amigo que tem um programa na Rádio Nacional, daí para frente é por sua conta.

Foi a partir daí que as coisas melhoraram. Ela conseguiu um contrato com a Rádio Nacional, vieram outros LPs. Enfim, a fama! Em pouco tempo, tornou-se a sensação do Rádio, concentrou-se em sua carreira fechando seu coração para o amor. Até teve alguns envolvimentos com outros homens, mas nada sério, não suportava que se metessem em sua vida.

Um dia, passado um tempo, Con recebeu uma carta de sua mãe comunicando o falecimento de sua avó. Mas dizia para não ficar triste, que ela morrera feliz, sabendo que sua neta preferida era uma famosa cantora de Rádio. Dizia ainda a carta que seu pai, agora aposentado, todas as noites após o jantar, sentava-se em sua poltrona, para ouvi-la cantar no Rádio, ou mesmo na vitrola tocando seus discos. E que por várias vezes o viu com o rosto banhado de lágrimas que poderiam ser de arrependimento, saudade ou orgulho.

Con Ricceli, ainda olhando no espelho oval de cabo de madrepérola, presente da sua querida avó, pensava: “Paguei um alto preço por tudo isso, pois gostaria de ter tido marido e filhos, uma família como outras cantoras têm”. Mas ao mesmo tempo, pensava: “A vida é feita de escolhas e eu fiz a minha! Não me arrependo de nada que fiz. Se pudesse voltar no tempo faria tudo novamente se necessário fosse”.


Autores: Autores: João Batista Stabile, Marina Alves, Celêdian  Assis e Maria do Rosário.


terça-feira, 27 de outubro de 2020

TÍTULO: EM PARIS TUDO É POSSÍVEL

 



EM PARIS TUDO É POSSÍVEL

Parte 1 – Socorro Beltrão

Sarah estava sentada no alto da colina, tinha o mundo aos seus pés. A Fazenda Santa Rita. O rio murmurava baixinho lá embaixo, em seu eterno chuá chuê.  A paisagem era de tirar o fôlego, o sol dava um espetáculo à parte, tingindo de rubro o céu, deixando o espelho d’ água também rubro. O dia estava se despedindo, logo se faria noite. Tudo era encanto. Tudo era beleza. Tudo era serenidade. Mas Sarah estava pensativa. Quanto mais a natureza ficava bela ao seu redor, mais seus pensamentos se confundiam em sua mente.

Será que valeria a pena deixar tudo isso para trás em busca de um sonho? Pensava ela a ponto de desistir de tudo.

O que será de mim, longe daqui, sem meus pais, meus avós, meus irmãos, meus amigos?

Sarah nasceu e se criou na Fazenda Santa Rita. Seu pai ajudava ao seu avô. A fazenda ficava nas terras da Cidade de Vitória de Santo Antão. Com seus verdes prados, o gado mugindo a toda hora, bezerrinhos saltitantes, um grande galinheiro no quintal. Um pomar rico em frutas diversas. O jardim, cheio de rosas colorias e perfumadas, tomava toda frente da bela casa da fazenda. As cavalgadas, as vezes sozinha, outras tantas acompanhada pelos irmãos, avô ou o pai. Os banhos de rio, pular dos galhos da cajazeira e cair no rio jogando água para todos os lados. Os docinhos da voinha, sua mãe sempre por perto. Seu irmão, Agrônomo cuidava da lavoura, o caçula, estava concluindo o curso de Veterinária, iria cuidar da criação do gado. Sua irmã, professora da fazenda, casada com um filho de um fazendeiro vizinho, grávida de seu primeiro sobrinho. Tinha uma vida feliz.

A Sarah adorava pintar. Seus quadros enchiam a família de orgulho, pintava a natureza à sua volta com maestria. Desde pequena já fazia bonito com os lápis de cor. Aos 15 anos, sua madrinha Lia, a presenteou com uma linda caixa, cheias de tintas e pincéis, seu padrinho Marcelino, se encarregou das telas. A festa foi linda, mas ela não via a hora de irem embora para inaugurar suas tintas. A partir deste dia estava sempre às voltas com tintas, pincéis e telas. Terminou o magistério e não via a hora de viajar para a Europa onde iria estudar pintura. Dali há três dias estaria na França, todas as providências já tinham sido tomadas. Iria ficar na casa da irmã de sua madrinha. (20 linhas)

Parte 2 – José Bueno Lima.

A despedida de Sarah, como esperado, fora emocionante!  Entretanto, assim que se sentou em sua poltrona na classe executiva da aeronave, deu um chega para lá em tudo que aconteceu, senão jamais haveria condições dela conseguir realizar seu sonho. Logo, a comissária veio abordá-la, oferecendo-lhe todas as mordomias que faziam parte daquela classe. Uma taça de vinho lhe faria bem, pensou, e foi o que aceitou. Desse modo, a viagem correu maravilhosamente bem. Nas vezes em que acordava de um leve sono, já ia pensando no que fazer na França, pois teria duas semanas para o início das aulas de pintura, na Escola de Belas Artes de Paris, que escolhera. Finalmente, o pouso no Aeroporto Charles De Gaulle! No portão de desembarque, foi recebida por Mirtes, irmã da madrinha Lia, 32 anos, casada com um engenheiro francês, de mesma idade, o Laurent. Formavam um bonito casal. Ela fizera curso de línguas na Sorbonne, e lecionava numa escola para estrangeiros. Ele, trabalhava numa multinacional. Não tinham filhos. Moravam em um bom apartamento situado no Quartier Latin. Sarah simpatizou-se muito com o casal, e achou sua nova casa agradável, seu quarto bem confortável e espaçoso. Lia e Laurent desmanchavam-se em gentilezas. Sarah, assim que se viu só, vibrou de alegria, pois teria facilidade de desenvolver o idioma, pois já possuía uma boa base do mesmo, portanto não teria dificuldade para conhecer a cidade. Após o banho relaxou e adormeceu. No café da manhã conversaram sobre passeios que ela poderia fazer, tendo Sarah imediatamente demonstrado o desejo de primeiro ir à Escola de Belas Artes, pois estava ansiosa em conhecê-la. Lia e Laurent ofereceram a carona a ela. Sarah ficou maravilhada com a escola. Ao sair, ela consultou um guia que havia comprado no aeroporto, notou que o Pantheon ficava ali perto e aproveitou para visitá-lo. Com os conselhos de Laurent, ela verificou a facilidade do metrô, passando a utilizá-lo com grande frequência. E assim, nesse dia e nos demais, conheceu diversos pontos turísticos da Cidade Luz. Apaixonou-se pelo Louvre, mormente quando viu a Gioconda, e notou alguns pintores fazendo cópias da famosa tela. Logo logo, ela estaria ali fazendo o mesmo, prometeu a si mesma. Com o passar do tempo, devido aos inúmeros programas que faziam, Sarah começou a sentir algumas atitudes estranhas de Laurent em relação a ela. Não sabia definir. E, na realidade, ela também notou que sentia algo diferente, nessas ocasiões. Tentou evitar muitos encontros, mas na maioria das vezes era impossível.

Quem sabe após o início das aulas, as coisas mudassem!

Parte 3 – Cléa Magnani

Durante o jantar, por algumas vezes os olhos azuis de Lauren e os verdes de Sarah se encontraram, mas rapidamente se desviaram, para novamente se buscarem. Estava se tornando incontrolável aquele sentimento que, como um vulcão os queimava por dentro, e mesmo sabendo ser impossível, os atraía como um ímã. E quando, no momento de se servirem da salada, suas mãos se tocaram, um arrepio estremeceu o corpo de Sarah, que sentiu um rubor aquecer seu rosto, e temendo que Mirtes percebesse algo, comentou:

-   Nossa! O excelente vinho francês me deu calor...

Após o jantar, todos se dirigiram para a sala de estar onde conversaram sobre amenidades, enquanto tomavam um delicioso licor. Laurent lia os jornais. Mirtes tinha de preparar alguns textos para seus alunos e se dirigiu ao escritório para terminar a tarefa da aula do dia seguinte. Sarah, saiu na varanda do apartamento e observava as luzes da Cidade Luz, que reverberavam no sereno Rio Sena. Seus pensamentos voavam até a fazenda.... Quanta diferença entre a vida pacata que vivera até semanas atrás e a agitação da Europa.... Estava perdida em seus pensamentos debruçada no balaústre da varanda, quando Laurent se aproximou sorrateiramente e a abraçou pelas costas. A jovem voltou-se com um gritinho de susto, que foi calado pelo beijo ardente que Laurent lhe deu.

Indignada, mas não querendo atrair a atenção de Mirtes, Sarah tentava afastar-se do rapaz, que a envolveu num abraço, e sussurrando lhe pedia silêncio, enquanto declarava estar perdidamente apaixonado por ela.

Sarah sentiu-se muito mal naquela situação. Estava sendo acolhida na casa da irmã de sua madrinha, e o marido dela lhe convidava para trair Mirtes? Mas no fundo, ela também se sentia atraída pelo marido da amiga.

Sem dizer nenhuma palavra, Sarah desvencilhou-se do abraço de Laurent e correu para seu quarto.

Parte 4 – Alberto Vasconcelos

No desjejum do dia seguinte, Sarah ouviu com atenção os comentários de Mirtes sobre o dia nacional da França, era 14 de julho e ela havia esquecido disso. A cidade estaria toda tomada pela população para assistir às cerimônias com a presença das mais altas autoridades. Laurent não tirava os olhos de Sarah e para fugir daquele olhar atraente, ela resolveu ir ao centro para ver de perto as festividades. Não adiantaram as recomendações de Mirtes para que eles assistissem em casa pela TV. Ela estava resolvida. Como resistir durante o dia todo àquele desejo crescente de entregar-se aos carinhos do seu anfitrião? E com o argumento de que queria matar a saudade dos desfiles cívicos de sua Vitória de Santo Antão, tão distante e ao mesmo tempo tão presente em seus pensamentos, Sarah descartou a companhia de Laurent que se prontificava a lhe servir de guia.

Na estação Champs-Élysées-Clemenceau, toda enfeitada e feericamente iluminada, a multidão se afunilava no portão de saída a fim de chegar à avenida onde dentro de alguns momentos começaria o desfile militar. Alguns metros à sua frente, conseguiu identificar Mohamed, seu colega na turma de desenho artístico, marroquino, caladão, muitas vezes surpreendido a observar-lhe com olhos cobiçosos, mas que apesar desse incômodo, se tornara seu companheiro de mesa na hora do almoço. Certa vez ele lhe perguntara, por que ela usava aquela cruz ao pescoço, se nunca tinha ouvido falar do profeta Maomé e das maravilhas narradas no corão... Sarah, foi despertada desses pensamentos quando uma policial, com largo sorriso no rosto disse-lhe para usar a outra escada rolante que acabara de ser ligada. Lá no patamar superior, Mohamed acenava para que ela fosse ter com ele na praça em frente à estação.  

Encerramento – Socorro Beltrão.

Apesar do céu cinza e da noite mal dormida, as cores das vestes, a alegria dos transeuntes, o barulho e as manifestações próprias do dia festivo compensavam tudo. Sarah procurou esquecer os problemas e foi ter com Mohamed. Ele ficou feliz com sua presença e o demonstrou até com uma certa efusividade. Ela se sentiu bem-vinda. Ficaram juntos por toda a manhã, passearam de mãos dadas, o que Mohamed alegou ser para não se perderem. Ela gostou daquele gesto de proteção. Conversaram sobre seus países, sua gente, seus gostos. Ele notou o amor à família no brilho dos olhos dela. Passou a admirá-la além da beleza física. Ela sentiu a tristeza do rapaz quando se referiu à sua família dispersa. Logo percebeu que ele não era ligado aos seus. Ficou triste por ele.  Bem mais tarde, sentados na praça de La Concorde, tendo a linda paisagem de fundo do Museu de Louvre, ele a segurou de mansinho pelos ombros, vagarosamente beijou seus lábios, num gesto de tanto enlevo que a envolveu, mente e alma. Sarah ficou pensativa. Que diferença do atrevimento de Laurent... dentro de sua própria casa. Desde aquela noite passada percebeu nele um aproveitador. Todo encanto sumiu. Nunca admitiria uma traição. Houve uma atração recíproca? Houve. Mas daí a uma traição era uma distância imensa. Voltou-se para Mohamed e se perdeu em seus olhos escuros, profundos e enigmáticos sem se dar conta de que foi ela a tomar a iniciativa de um segundo e demorado beijo, repleto de emoção e de bom presságio.

Segundo conto produzido por escritores GANDAVOS – Contadores de Histórias, Socorro Beltrão, José Bueno Lima, Cléa Magnani e Alberto Vasconcelos.


quinta-feira, 22 de outubro de 2020

TÍTULO: VERDADE ESCONDIDA

 



(Primeira parte- Marina Alves)

Sob o sol do meio dia, Amâncio subia a estradinha que levava ao topo da serra. Ao calor escaldante, o velho ofegava, alquebrado pelo peso da idade. Ia fazer oitenta anos no fim de dezembro. E era nisso que vinha pensando na volta da casa de compadre Honório, dono do pequeno e único empório do povoado de Santo Amaro.

Amâncio se sentia cansado. Depois de anos a fio trabalhando nas lavouras de fumo da Fazenda Primavera, de propriedade de Dr. Antero, o homem vinha pensando que merecia um descanso. A casinha ali no alto da serra, o pedacinho de terra cercado de verde, o corguinho de água limpa, os bichos de terreiro, os porcos na engorda, as poucas cabeças de gado de leite e os roçadinhos que tocava, lhes davam o que precisava para viver. Era isso: sentia que estava no limite de suas forças e algum dos filhos haveria de tomar conta das coisas dali por diante.

O velho seguia pensando que tinha mais do que podia ter desejado. Sim! Ia chamar os quatro filhos casados – dois homens e duas mulheres, que moravam em casas ali por perto e explicar tudo que andava pensando. Também era chegada a hora de contar a eles algumas coisas que nunca tinha tido coragem...uma dessas coisas era sobre a mãe que nem chegaram a conhecer direito... eram todos miudinhos ainda quando tudo aconteceu. Ah, estava mais que na hora. A vida cada vez mais curta...

Ia tomar coragem, contar tudo, tudinho sobre Madalena e outras coisas que pertenciam a um passado nunca enterrado de verdade...

(Segunda parte: Maria Mineira)

Já em casa, ainda ofegante pela longa caminhada, Amâncio abriu o antigo armário de madeira onde a finada esposa guardava os pertences de mais consideração. Espalhou em cima da cama, um punhado de retratos antigos. Contemplou a si mesmo, jovem e forte, de braço dado com Justina, mulher bonita, semblante alegre e olhos cheios de esperança. Ela segurava nos braços, Madalena, a filhinha do casal, bem na época que vieram trabalhar nas lavouras de fumo, quando a menina era só cisquinho de gente.

O velho suspirou, sentindo descer grossas lágrimas no rosto enrugado. Sozinho nas suas lembranças, sentia-se aniquilado pelo desgosto que há tantos anos escondia no fundo do peito sem deixar transparecer. Antes de guardar, beijou o retrato e lembrou-se mais uma vez da promessa feita no leito de morte da esposa. Iria esclarecer aquela situação, a qual, na verdade, só quem tinha conhecimento era o compadre Honório e o famigerado Dr. Antero.

Madalena fora criada ali, os pais se desdobraram para dar à filha, o melhor que podiam, a menina aprendeu a ler e escrever na escola da fazenda. Cresceu bonita, sem riqueza nem luxo, mas com muito amor e cuidado. Já contava com dezesseis anos, quando Joaquim, filho de Antero veio da capital visitar o pai. O casal ouviu preocupado quando Madalena falou do seu amor. Contrariados, conhecendo a fama do moço, tentaram em vão, dissuadir a filha, com argumentos de que o rapaz da cidade não servia para ela e além de tudo, ainda era muito jovem, não conhecia a vida. Sabendo que os pais não aprovariam o romance, semanas depois, Joaquim e Madalena fugiram juntos. A filha fizera sua escolha, deixou-a seguir seu destino.

Passados menos de três anos, após a fuga, numa noite de chuva e ventania, Antero mandou chamar o casal de empregados na sede da fazenda. O resultado daquela visita foi que Amâncio e Justina voltaram para sua casinha totalmente atordoados, porém cientes da imensa responsabilidade que teriam dali por diante. Ela trazia uma cesta com as gêmeas recém-nascidas e ele carregando nos braços, dois menininhos assustados. Dentro da calça surrada, havia só um envelope.

(Terceira parte:  Alberto Vasconcelos)

Ainda estava bem viva dentro da memória de Amâncio a conversa que teve com o Dr. Antero naquela noite tempestuosa que o tempo não apagou, a maneira incisiva com que ele fora alertado de que aquelas crianças, desnutridas e maltrapilhas, jamais deveriam saber a sua origem, sob pena dele ser entregue às autoridades para responder por todos os assassinatos que cometera a mando do Dr. Antero e dos seus compadres. Sim. O passado de Amâncio o condenava, fora matador de aluguel até que seus olhos não mais permitiram fazer os serviços que interessavam aos poderosos que tinham sempre álibis irrefutáveis para deixa-lo bem longe dos locais das dezenas de assassinatos.

Registros novos foram forjados onde constavam que as crianças eram filhas legítimas de Amâncio e Justina, para que fosse apagada toda e qualquer vinculação com a família do Dr. Antero e com a sua imensa fortuna. Joaquim voltou para a fazenda, estava bem mais velho, mas quem visse os meninos saberia imediatamente que eram seus filhos, pois eram a cópia fiel do pai. Mesmos gestos, mesma maneira de falar, a única diferença eram as palavras, pois Joaquim pelos estudos e pela vivência na capital, tinha vocabulário diferenciado do mundinho da fazenda.

Amâncio e Joaquim tinham se encontrado no Empório Boa Compra, a bodega do compadre Honório, conversaram como velhos conhecidos e quando ele saiu, compadre Honório alertou que já era tempo de botar em pratos limpos toda aquela trama para que os meninos herdassem o que era direito deles, por serem netos do velho fazendeiro. A maioria dos assassinatos praticados já estavam prescritos e mesmo se ainda houvesse algum, a idade avançada de Amâncio seria levada em consideração na hora do julgamento que, se houvesse, iria envolver muita gente graúda, mas agora a situação teria que ser esclarecida de uma vez por todas. Era chegada a hora de contar tudo...

(Quarta parte: João Batista Stabile)

Como era de costume toda tarde; Amâncio separou os bezerros das vacas de leite, para ordenhá-las no outro dia bem cedinho, tratou os porcos e completou os coxos de água, jogou milho no terreiro para as galinhas. Depois sentou num toco que tinha embaixo da figueira a porta da cozinha, fazendo um cigarro de palha, olhava para o horizonte o sol que já se escondia por traz da serra, seus últimos raios luminosos tingiam o céu de vermelho, como se alguém tivesse jogado de qualquer jeito uma lata de tinta.

Nessas horas que ele mais pensava na sua Justina. Ah, se ela tivesse ali saberia tomar a decisão certa. Mulher de fibra, inteligente e decidida. Mas Deus não quis e a poupou de mais esse sofrimento, deixando-o sozinho com esse segredo terrível.

 Amâncio pensava nos conselhos que dera compadre Honório, dizendo que ele dificilmente iria a julgamento e mesmo que fosse teria sua sentença abrandada pela idade e também aquilo pouco importava para ele agora.

Pensava na promessa feita à finada, no seu leito de morte, que um dia quando as crianças tivessem formadas, contaria todinha a verdade, sem esconder nada. Mas ao mesmo tempo pensava na ameaça de Dr. Antero, naquela noite de chuva e ventania que trouxe as crianças para casa. Pensava ainda no fim que tivera sua filha Madalena, lá na capital, que morreu num acidente doméstico muito mal explicado.

Não temia a justiça, muito menos a morte, que estava acostumado a lidar com ela desde a sua juventude, temia sim pelo futuro dos seus filhos, que na verdade eram netos e os filhos deles. Dr. Antero mesmo idoso ainda era o chefe político da cidade e era um homem frio e perigoso. Vindo dele, se poderia esperar o pior.

Perdido em pensamento nem sentiu a hora passar, só se deu conta que já era tarde da noite, quando sentiu uma aragem fria que vinha da mata. Entrou na cozinha, lavou os pés numa bacia de alumínio, comeu um pouco de feijão com carne seca que estava em cima do fogão à lenha e foi se deitar.

Não conseguia pegar no sono, quando os galos já cantavam, vencido pelo cansaço, acabou adormecendo...

(Encerramento: Marina Alves)

Sentado no alpendre da casa de Honório, Amâncio acabava de relatar ao compadre as decisões que tinha tomado. Cedo ainda, tinha ido atrás de Antonico e pedido que levasse o recado aos irmãos: queria todo mundo no almoço de domingo! Que não faltasse ninguém! Tinha para si que de domingo o segredo não passava.

Honório escutava atento as palavras do compadre.  Abriu a carreira de dentes de ouro num sorriso de satisfação:

- Grazadeus! - exclamou - vai se livrar do peso, minha Virge Santa!

- Vou! - disse Amâncio - Vou seguir os seus conselhos, compadre! E seja o que Deus quiser!

Depois de uma caneca d'água, Amâncio tomou o rumo de casa. Com passos lentos, o velho subia a estradinha que levava ao topo da serra.  Ia distraído. Tão distraído que nem reparou no vulto escondido no mato: o tiro veio certeiro e o atingiu em cheio no meio do peito. Cambaleou, os joelhos se dobraram sobre a poça vermelha que se desenhou na poeira.  Estava morto!

Atrás da densa folhagem marginal, o capataz de Joaquim esporeou o cavalo e partiu a galope rumo ao povoado. No embornal de algodão, a mando do patrão, levava um bolo de notas graúdas que deveria passar às mãos de Honório, como pagamento de certa revelação...

Duas semanas após o fatídico acontecimento, Antonico voltou para fechar de vez a casa do pai. Já de saída, o rapaz avistou o paiol aberto e voltou para cerrar a portinhola. Foi quando seus olhos caíram sobre a antiga cabaça que sempre estivera pendurada rente à cumeeira. Puxou o objeto já enegrecido e ressequido pelo tempo, que num estalo seco se dissolveu entre seus dedos. Em meio ao pó, um maço de papel amarelado e carcomido. Antigas anotações! Escritos preciosos rabiscados por Justina, que valiam uma fortuna! Antonico apertou os papéis contra o peito e duas lágrimas grossas lhe escorreram pelo rosto: o castigo podia até vir a cavalo, mas a verdade tinha vindo escondida numa cabaça...


Autores:

MARINA ALVES, MARIA MINEIRA, ALBERTO VASCONCELOS E JOÃO BATISTA STABILE