segunda-feira, 24 de junho de 2019

Sobre o livro ¨Dedos de prosa¨ - Por: Jussara Burgos


Dizem que um livro é uma casa de ouro. Tive a grata satisfação ser presenteada com o ouro do meu amigo Carlinhos de Zé das máquinas, era assim que Carlos Lopes era conhecido na nossa Custódia. “Dedos de prosa” afloraram doces lembranças, vivas nas gavetas de minha memoria. Senti a mesma sensação quando um monomotor singrava o espaço aéreo de Custódia, era um alvoroço, o povo sai de dentro das casas para olhar o céu, a meninada corria e gritava. As meninas não tinham a mesma liberdade dos meninos de correr até o campo de Pouso, ficávamos sempre na barra da saia de nossas mães sob olhar vigilante das mesmas. Oportunidades como essas de reviver meu universo são valiosas. Vivíamos numa época sem televisão. Lembro-me que o grande acontecimento era assistir filmes nos finais de semanas no cinema do pai de Carlinhos.

Havia um trato, o filme só começava depois da missa. O bom cristão tinha que assistir a missa toda semana. Minha mãe católica convicta levava sua prole à igreja depois da missa passávamos correndo na farmácia para nosso pai nos dar o dinheiro dos ingressos e íamos ao cinema com o coração saindo pela boca. Quem chegasse primeiro pegava os melhores assentos. Era emocionante ficar esperando o Leão da Metro Goldwyn Mayer abrir a boca anunciando que a película ia começar. Uma ocasião o padre se estendeu muito na homília e nos avisos. Estávamos ansiosos para irmos ao cinema ver um clássico da sétima arte: Bonanza. Meu irmão Marcelo ficou impaciente, pois não queria perder nenhum pedacinho do filme. Finalmente quando o padre falou: Vão em paz e que o Senhor os acompanhem. Meu irmão gritou em alto e bom tom: AMÉM. Diante daquela insubordinação nossa mãe ficou brava e não deixou que ele fosse ao cinema. Ele foi para casa chorando na maior frustação. Por causa dessa e outras ele se tornou ateu.

Lembro-me do filme polêmico que foi apreendido pelas autoridades. O comentário da cidade no dia seguinte era que após o filme os marmanjos fizeram fila na Rua do Sipitinga, a procura das meretrizes.
Sempre digo que a poesia não existe apenas em versos. Vejo fotos e gravuras que considero poemas visuais. Na hora que vi a capa do livro fiquei encantada com a cena. Gostei de saber que aquela menininha da gravura é minha amiga Das Neves, irmã de Carlinhos. Também gostei de ver a gravura de dona Celeste, aquele sorriso eu conheço bem. Ele me acolhia quando eu ia à casa de dona Celeste estudar com Nevinha. Parabenizo o artista Edmar Sales pelo belo trabalho e a você Carlinhos pela gentileza de compartilhar comigo suas boas prosas, Um abraço da sua irmã sertaneja, Texto: Jussara Burgos - Luziânia-GO

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Sobre velas e esperanças

Michele Calliari Marchese

Talvez os cemitérios, longe de somente guardar os mortos guardam também as inesgotáveis angústias dos vivos, o cheiro das velas acesas e o riscar inclemente das ceras caindo incólumes em todos os tipos de chãos, terra, cimento, azulejos, gramas e lágrimas e o vento faz as árvores gemerem no lamento profundo da solidão.
De solidão se fazem os incansáveis corredores que levam de jazigo a jazigo, de jazigo a jazigo trazendo a dor e a desesperança nas fotos estampadas, muitos altaneiros, outros em preto e branco, carcomidas que são pela ação inexorável do tempo; números presos somente por pequenos parafusos que refletem a luz do sol da vida. Um paradoxo. Uma contradição.
Era nisso que pensava quando finalmente cruzou o portão do cemitério. Tinha ido colocar flores no túmulo da vizinha que havia lhe ajudado tanto com os filhos. E agora havia partido, para cair no esquecimento daqui a alguns anos, ou décadas talvez, mas haverá um tempo que ninguém mais se lembrará daquela mulher, do que morreu o que fez e talvez não haja mais herdeiros - pois na corrida muitas vezes lamentável do espaço - que chorem por ela e aquela foto não passe somente de uma foto e suas inscrições apagarão para todo o sempre. Como tudo na vida.
Lá fora o sol brilhava mais forte e pareceu que se transportava automaticamente para outro mundo: o dos vivos com o crepitar dos trabalhos aqui e acolá, ônibus apressados levando gentes mais apressadas ainda e a tinta dos paralelepípedos que se desgastam pouco a pouco, de chuva em chuva, como nós.
Passou em frente a uma casa amarela, com janelas marrons, muito cuidadas, um extenso jardim de rosas que se desdobravam à medida que seus passos iam avançando pela calçada e as pessoas que tomavam o chimarrão e falavam de outras pessoas no julgamento pertinente de todo ser humano.
A sacola que carregava, pois não queria carregar as velas na mão, agora pesava em seu braço, porque as velas não foram acesas no túmulo daquela vizinha, não achou jeito de fazer isso, mesmo tendo no pensamento que além das flores – uns crisântemos brancos dentro de um vaso – acenderia as velas e rezaria e também passaria um bom tempo por lá a lhe fazer companhia na solidão dos corredores do cemitério.  A sacola que carregava pesou em seu braço, roçando-lhe as costas, fisgando seu rim. E não foi capaz de ficar cinco minutos em frente ao esquife da vizinha.
Ela encontrou adolescentes aos beijos cabulando alguma aula. Um ônibus passou levantando a poeira daqueles dias secos e lembrou-se de quanta coisa tinha que fazer em casa, varrer as calçadas, limpar os armários, espanar o pó, secar a roupa, encontrar o marido aposentado sentado numa cadeira de palha vendo o tempo passar e o mato crescer por entre o cimento da garagem.
O trinado de um passarinho que ela esquecera o nome aliviou o pensamento sombrio que estava tendo naquela manhã, fora os beijos apaixonados e agora esse trinado em hora tão propícia, andava pensando bobagens, que tudo sobrava para ela fazer e sorte os filhos terem crescido e pensando melhor, sorte não ser um deles aos beijos na outra esquina, não saberia o que faria e a sacola pesou mais um pouco em seu braço, pedindo arrego, uma troca de braço e foi o que ela fez.
Faltava duas quadras para chegar em casa e mais uma vez um ônibus passou pela rua levantando migalhas de outras vidas e pensou em quanta gente havia passado por ali com as mesmas passadas que dava ou nas pessoas que tinham aberto aquela rua há muito tempo atrás, um retrocesso de memória invadiu sua mente e invocou recordações minúsculas de um tempo que nem sabia precisar se existira ou não, um vazio sem precedentes: e aqueles que se foram? Um dia iria também, mas à essa ideia arregalou os olhos, estremeceu e disse de si para si, falando alto mesmo para que alguém, mesmo que fosse ela mesma, escutasse que ainda não estava preparada, que não podia partir, queria ver tantas coisa, talvez um filho formado, ou um neto. Não se achava velha, mas vendo o marido da esquina, sentado onde achava que ele estaria sentado, imerso em pensamentos vazios, por que não acendera as velas no túmulo da vizinha?
Faltava pouco para chegar e resolveu comprar pães no mercadinho ao lado de sua casa. Tinham saído do forno. Cheiravam a infância, cheiravam a calor humano e pegou uma pontinha para saciar a fome de vida que tinha ao entrar naquele cemitério de outrora, quando tinha ido mesmo? Mastigava enquanto pensava no marido e nas velas que incomodavam sobremaneira; um peso incomum, uma inverdade que não foi capaz de levar adiante, não foi capaz de acender as velas em seu túmulo de amiga, não foi capaz de cumprimentar o marido sentado naquela cadeira de palha, onde acharia que estaria e de fato estava, o que fazia aquele inócuo?
Pendia para o lado, quase caindo, dormindo talvez, muito sol na cabeça dá nisso e como está quieto. Cutucou-lhe o braço para acordar, porém não acordou, caiu no chão como caem os pássaros abatidos e sem defesas, esperando por ela talvez. Caíram os pães e todo o frescor infantil, caíram as vidas, dele e a sua por não ter derrubado a sacola com as velas não acendidas no cemitério. Caiu a noite em plena manhã de sol. Seria preciso acender as velas agora, sem mais tardar.
Autora: Michele Calliari Marchese - Xanxerê/SC

domingo, 7 de abril de 2019

Falando de amor - Autora: Maria Olimpia

Falar de amor é chover no molhado. Pois se fala de amor desde tempos que não podem ser relembrados.  Como não falar desse sentimento que transforma as pessoas em seus opostos? Tudo já se falou sobre o amor. Mas nada ainda foi suficiente para explicá-lo. Fala-se e cala-se. Porque muitas vezes é o silêncio que mais fala sobre o amor.

Por amor tudo se faz. Por amor tudo se justifica. Por amor se vive e por amor se morre.  E também se mata. Sem amor ninguém vive. Mas só de amor, também não.

São muitas as formas para se falar de amor. Falam de amor os artistas em todas as suas manifestações. As manifestações da arte e as manifestações do amor. E o tema nunca se esgota. Fala de amor o homem do povo e o homem da elite. As linguagens podem ser diferentes, o sentimento não. Cientistas, filósofos, o milionário e o sem nada nos bolsos. O crente e o descrente. Não há quem não fale, fala até o envergonhado, o sem jeito, o destrambelhado. Eu falo de amor e você também. Nós todos falamos, de um jeito ou de outro.

Se temos asas, é o amor que nos dá. E é com essas asas que voamos para o mundo da fantasia.. Para o amor tudo é possível.Mas, o amor ao mesmo tempo que liberta,  escraviza. Nos faz servos e senhores. Os ouvidos são surdos quando se fala  o que parece ser contra o amor. Mas isso não pode ser esquecido: há o amor que eleva e o amor que reduz o ser amante a menos que nada. É preciso escolher, escolher sempre entre essas formas de amor. Quem escolhe a forma rastejante está perdido, sempre estará á sombra, nunca será sol. Quem escolhe a forma que eleva está salvo. Livre para voar, livre para criar. Livre para amar.Mas como escolher se o amor sempre pega de jeito de um jeito que deixa tudo de pernas para o ar?

Amam os que são iguais e os que são diferentes. O côncavo e o convexo. Ama o feio e o belo, o novo e o velho. Não existem regras para os sentimentos embora possa haver para os envolvimentos.

Todos os amores são bem vindos. Mas o maior de todos os amores deve ser o amor a si próprio porque é esse amor que propicia o amor sadio ao  outro. Quem não se ama não se respeita. Quem não se respeita também não sabe respeitar o outro. Quem não sabe respeitar não sabe amar. Utiliza em suas relações um arremedo do amor. Um amor cambeta. Um amor que não vale a pena ter. Nem falar sobre ele.
Autora: Maria Olimpia Alves de Melo - Lavras/MG

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http://vidasetechaves.wordpress.com/
Publicação autorizada pela autora através de e-mail de 10/10/2011