sábado, 31 de agosto de 2013

Um Fio entre o real e a fantasia

Autora: Celêdian Assis

Durante algumas semanas e sempre à tarde, depois da confortável sesta em sua rede - um hábito do qual Seu Amantino, já com oitenta e oito anos de idade, não abria mão - buscávamos o velho banco de madeira sob a sombra de uma frondosa árvore, que sobrevivera e mantivera-se imponente, como se ignorasse o calor escaldante do sertão. A ampla área em volta, de chão batido e que parecia bem varrido, limpo - onde se realizam em outros tempos as feiras semanais – contrastava com um céu azul repleto de nuvens de algodão, como que anunciando que a seca perduraria, sabia-se lá até quando.
Dali se via bem em frente, do outro lado da estrada de rodagem, uma velha construção cuja arquitetura se assemelhava a uma enorme cadeira, que parecia uma cadeira para gigante. Fora em outros tempos, nem tão remotos assim, cerca de trinta e poucos anos, um posto de gasolina, onde além do abastecimento vendiam-se carros e ficava bem ao lado da única pousada da antiga Vila de Coroatá, vizinha da também antiga Vila Bela, hoje Serra Talhada, a terra de Lampião. A pousada acabou tornando-se uma “fresca”, uma espécie de cabaré, enquanto ainda tinha umas moças “de vida fácil” que se aventuravam e que forasteiros paravam por ali, mas que partiram todas para outras bandas e depois virou mesmo só um “freje mosca”, um bar de pouco asseio, de baixa qualidade, do qual só resta uma placa, como me contara o Seu Amantino. Aquilo tudo que via, me fascinava.
Muitas vezes eu também saía sozinho e gostava de caminhar no antigo arruamento, uma estradinha de terra ladeada de arvoredos. Sempre levava um bloco de papel e caneta, anotava impressões. Se eu fosse poeta, acho que muitas poesias seriam inspiradas naquela paisagem que se desenhava nas curvas da bela estradinha. Mas na verdade sou um escritor e escrevo contos, muito poucas vezes me aventurei a fazer poemas. Fiz muitas fotos, queria guardar bem os detalhes daquele lugar, que me impressionara tanto. Uma coisa me chamou muito a atenção: apesar do abandono da vila, de ver tantas ruínas, aquele não parecia um lugar mal assombrado, ou que por ali circulassem almas penadas. Ao contrário, tudo ali exalava certa aura de paz, como se no passado as pessoas tivessem sido felizes a seus modos.
Não fui parar ali por acaso e nem me demorei tanto tempo por maior necessidade, mas tão somente porque aquele lugar que parecia esquecido em pleno sertão de Pernambuco e que embora destruído pelo tempo, guardava histórias vivas, das quais, a cada dia eu podia conhecer um pouco, através da boa prosa de Seu Amantino e também de sua velha esposa, Dona Creusa, cuja simplicidade e a natural hospitalidade, me encantaram logo na minha chegada. A seca e o abandono não lhes secaram aquele sorriso amigo que mantinham em seus rostos surrados pelo tempo.
Semanas antes de minha parada ali, assim que parei o carro em frente a uma casa bem ao lado de uma velha igreja abandonada e em meio a outras ruínas, me pareceu ser aquela, a única casa habitada da vila e então percebi logo um olhar de soslaio, de um “brecheiro”, atrás de uma janela entreaberta. Desci do carro e gritei: - Oh de dentro, tem alguém ai? Passaram-se alguns segundos até que aquele senhor com a face sulcada pelas rugas, os cabelos de um branco encardido, sapecados pelo sol, com um olhar entre desconfiado e sereno, apareceu na soleira da porta: - Oh de fora, se achegue! Respondi: - Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Ouvi de lá: - Pra sempre seja louvado!
Eu tinha poeira por todo o corpo e a garganta seca, estava carecendo muito de um banho e de uma boa caneca d’água fresca. A mulher buscou a quartinha de barro e uma velha caneca esmaltada e me serviu em seguida, o que sorvi quase que num gole só, tamanha era a sede por conta daquele calor infernal daquele lugar que parecia um sorvedouro.  Antes mesmo de explicar o que eu fazia ali, ele me disse: - Entra pra dentro, é casa de pobre, num tem luxo não, mas eu to vendo que o moço ta carecendo muito dum descanso, num é mesmo? Tome assento e me diga lá qual é a sua graça.
Agradeci e entrei naquela sala rústica, que nem mobília tinha direito, exceto uns velhos bancos de madeira, uma cristaleira e algumas molduras de retratos que pareciam ser da família, muito amarelecidos pelo tempo, pendurados nas paredes. Apresentei-me, disse meu nome e enquanto eles me ouviam, Seu Amantino interrompeu para dizer: - Ô Creusa vá lá na cozinha,  quebra a frieza da água, arruma a bacia pro moço se lavar e depois ajeita alguma coisinha pra ele forrar o estômago. O senhor deve está com muita fome e deve está morto de cansaço por conta dessa estrada esburacada.  É só num arrepará, porque água por essas bandas é artigo de luxo, o banho tem que sê sapecado mesmo. A luz por aqui também já faz tempo que num tem mais, é só mesmo na base de lampião. Agradeci e fui então tomar o tal banho de bacia e em seguida sentei-me ao lado de Dona Creusa, que já havia preparado o café: - Come um pedaço da broa, daqui a pouco é hora da janta e vou prepará um dicomê pra nois. Por cá, as comidas são rasteiras mesmo, sem muita variação. 
Respondi que não se preocupasse comigo, pois eu não era dado a luxos.
Ainda surpreso pela boa vontade para com um estranho, contei-lhes que estava viajando já havia vários dias, que parti do Ceará, minha primeira parada desde que saí de Minas, que eu vinha passando em muitos lugarejos, vilas, cidades, pelo sertão e áreas de caatinga. Ele arregalou os olhos como quem não tinha entendido o porquê daquilo despertar meu interesse. Expliquei: - Sou um escritor, Seu Amantino e tenho andado por essas bandas para recolher material para meu próximo livro, vim mesmo para conhecer histórias de vida, diretamente desse povo que se sustenta com a arte, mesmo que a vida seja tão dura para a maioria, é uma cultura muito rica, muitas tradições e têm muitas histórias para contar. Conheci as mulheres louceiras de Conceição, lá no Ceará, que fazem lindos trabalhos com o barro. Depois fui conhecer aqueles que trabalham com o catoléplanta que eu desconhecia e eu soube que a sua palha é aproveitada no artesanato de muitos objetos que a gente vê por ai. E venho conhecendo muita arte desse povo, ouvindo relatos, casos, para criar então a história do meu livro.
 - Acho que o moço vai gostá de saber da história de quando a riqueza daqui vinha  do caruá e quem mandava era um senhor de terras muito ricaço, que o povo chamava de Coronel do Caruá. Falou Seu Amantino, que percebendo a minha curiosidade, contou-me porque só restaram ele e Dona Creusa na Vila de Coroatá:
 - Nos tempos das vacas gordas, isso lá nos anos de mil novecentos e vinte e poucos, quando caruá aqui era que nem mato, tinha fábrica e tudo mais – o senhor até já viu a velha prensa e o bueiro ali atrás - a vida até que era boa, até que aconteceu umas disgraceras, ali naquele casarão de alpendre todo destelhado e de janela azul. Lá morava Seu Antônio Vaz e a família dele. Tinha a Dona Bina, mulher dele e duas filhas. Uma era formosa, aprumada, mas muito das orgulhosa, foi até professora e ensinava ali – apontou Seu Amantino, para os escombros de onde teria sido a única escola de Coroatá - a outra coitada, era um estrupício, malarrumada e todo mundo falava que aquela ia mesmo ficar no caritó, apesar de que, ela era moça de muito bom coração, prendada, sabia fazer de um tudo da casa. Pois bem, o pai delas era um sujeito de poder, porque era dono das terras onde tinha muito caruá, da fábrica e muitas outras coisas. Só que era um homem entufado e muito dos descabriado e também vivia encangado com uns capangas dele. Ninguém tinha simpatia  por ele, porque ele vivia arrumando arenga com um, com outro, parecia que tinha o diabo no corpo. Diz as más língua que ele era coiteiro dos cangaceiros e que ele tinha negócios com o Virgulino Lampião e por isso ele tinha as costas quente. Meu pai mesmo falava que viu muitas vez o Lampião se arranchando por lá e teve até vez que ele trazia a mulher dele, a Maria Bunita. Foi numa dessas que a filha formosa do Coronel do caruá se engraçou lá com um homem do bando dele. O pai descobriu e achou que ela foi deflorada pelo tal cabra e muito enfurecido foi tirar satisfação com Lampião. Esse falou que não precisava dele se molestar não, porque havia de fazer o cabra reparar o dano e havia de casar com ela. Seu Antônio Vaz pensou bem e concordou, afinal ele num ia querer a filha na boca do povo e depois o bucho dela podia crescer e num tinha jeito de esconder. Combinaram até o dia do casório. Nesse momento o interrompi e perguntei ao seu Amantino se a moça queria casar com o cangaceiro, já que ela era tão orgulhosa, ao que ele respondeu:
 - Vai escutando o causo e já já o senhor vai saber. Depois de muita conversa com a filha, com muita ameaça, ela falou pro pai que num carecia de casar não, que ela ia embora pra capital e que se tivesse embuchado deveras, ela tinha quem ia querer casar com ela por lá e ninguém precisava saber de nada. Disse também quem era o sujeito, era um ricaço que vinha sempre comprar a produção da fábrica, e que foi ele quem buliu com ela, então, se ela tivesse mesmo embuchada, podia alegar que o filho era dele.  E tem outra coisa, aquela era a chance dele desencalhar a outra filha, para dar um castigo no cabra por ter abusado da outra. O Coronel do caruá viu naquela história uma grande ideia e assim armou tudo. No dia do casório, mandou a noiva cobrir a cara com um véu e ela só podia descobrir depois que o padre falasse que eles já era marido e mulher. A pobre da moça ficou sem entender, mas como morria de medo do pai, aceitou e assim aconteceu. Quando o cangaceiro descobriu a farsa, que tinha casado era com a moça desapetrechada, ele arrancou da peixeira e partiu pra cima do pai da noiva, tentando furar o bucho dele. Ai a coisa ficou preta porque virou uma guerra dos diachos. De um lado os capangas dele e do outro, parte do bando de Lampião e foi tiro de espingarda pra tudo quanto é lado, gente correndo e se escondendo. No final das contas ficou um bocado de gente ferida e gente morta também. Entre os defuntos, lá estava aquela filha bonita do Coronel do caruá e a esposa dele também, além de uns capangas e uns cangaceiros. Lampião e seu bando caparam o gato dali, mas com uma promessa de que não demorava e ele ia voltar para acabar com o resto do povo. O Coronel do caruá ficou numa tristeza de dá dó e muito aperreado resolveu mudar daqui e levar a única filha que lhe sobrou. Houve quem disse que essa foi a primeira vez que se viu falar que ele tinha pedido perdão a alguém na vida: ele ajoelhou aos pés da filha e pediu a ela que perdoasse e jurou que dali em diante, em outro lugar bem longe, ele ia fazer de tudo para ela ser a moça mais feliz do mundo. Foram simbora e vez ou outra se via o bando de Lampião rondando essas terra. O povo foi saindo de mansinho, uns com medo, outros porque não tinha mais pra quem trabalhar e com os anos passando o caruá foi perdendo o valor, porque a fibra do caruá, que era muito usada, foi sendo substituída pelo agave. E por causa disso tudo, já ta fazendo uns trinta e poucos anos, que sobrou mesmo só nós dois aqui.
Interrompi Seu Amantino para perguntar por que todos foram embora e só eles ficaram. Ele, entre uma pigarreada e outra olhou para aquela casa, suspirou e então me disse: - Olhe, nunca contei isso pra ninguém, mais a minha hora ta chegando de partir desse mundo e vou confiar no senhor, porque num quero levar esse segredo pro outro mundo. Minha mãe era empregada naquela casa, desde mocinha trabalhou praquela família. Logo depois que eles foram embora daqui, ela adoeceu e pouco antes de morrer me contou um segredo. Me contou que eu era filho daquele homem sem coração, o patrão, e que meu pai nunca ficou sabendo, nem ninguém mais, a não ser o Coronel do caruá, orgulhoso como era, nunca que ia me reconhecer. Ai ela me fez o último pedido e me fez jurar que eu ia cumprir a vontade dela: que mesmo ninguém sabendo dessa história, eu era o verdadeiro dono de tudo por aqui e que eu prometesse não arredar pé e tomar conta do que era meu, mesmo que nunca tomasse posse de nada. E assim eu fiz moço, todo mundo foi simbora e eu vou ficar aqui até o último dos meus dias. Nunca mais tive notícia daquela gente e nem me interessa, só o que eu quero nessa vida é ficar aqui na paz com a minha companheira e vigiar esse lugar que lá vai se acabando de velho, que nem eu mesmo, e cumprir a promessa que eu fiz, ainda menino, para a minha santa mãezinha.
Entre surpreso e emocionado, ao escrever esse primeiro capítulo de meu livro de contos, UM FIO ENTRE O REAL E A FANTASIA, percebi que, um lugar como aquele que parei apenas para fotografar, completamente abandonado, em ruínas, guardava tantas histórias vivas, que era possível ouvi-las detalhadamente, num rompante da imaginação, o melhor substrato das inspirações de quem escreve ficção.


Autora: 
Celêdian Assis - Belo Horizonte/MG

Publicação autorizada pela autora

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Os últimos são os... últimos mesmo!

Autor: Jair Pereira da Silva

- Biu, eu estou abufelado! Será qui vai chuvê amanhã?
- Achu qui não, Batoré! As nuvi nem tá si formano! Óia pru céu pra ocê vê como tá azulado!... Nóis tamo numa cruzeta danada!
Esse era o diálogo que mais se ouvia em Brejo do Bufo, era a maior preocupação dos habitantes daquele rincão situado lá no sertão pernambucano.
Aquele lugarejo estava fadado a virar deserto. A deserção de seus moradores não estava predestinada somente por razões climáticas, mas também por que os governantes não cumpriam as promessas de campanhas eleitorais que eram de levar água àquele pequeno município.
O povo daquele lugareiro enchia-se de esperanças quando os politiqueiros diziam que não era assim tão difícil desviar parte do Rio São Francisco para regar as terras áridas daquela região, com isso, estavam, também, regando a ilusão inocente daqueles matutos com as águas demagógicas da sede de poder.
Com o passar do tempo, aquela situação foi piorando, e cada vez mais. O povoado de Brejo do Bufo definhava-se aos poucos. Seus moradores sabiam que o futuro era incerto, que era preciso procurar outro lugar para viverem e assim começou o êxodo, a debandada para os grandes centros urbanos.  Primeiro os mais jovens, depois os adultos com as crianças; só os mais idosos relutavam em se retirarem daquele agreste recanto.
Quem se aventurasse ir a Brejo do Bufo certamente ficaria com uma gastura terrível, pois, depararia com uma cidadezinha totalmente arruinada: a fabriqueta de tijolos, demolida; a igreja, abandonada aos répteis; a única escola, às moscas; no posto de gasolina, nem uma gota de combustível. Até o prefeito abandonara o Paço Municipal há muito tempo para trabalhar na capital recifense de balconista numa loja de roupas feitas.
Depois que quase todo mundo se retirou de Brejo do Bufo os dois velhos amigos se encontram novamente;
  Agora Batoré, num dianta chuvê mais! Pra quê? Si todo mundo foi simbora!
- Oxente, pois num é? Só restô nós dois!  Vamu simbora tombém, Biu! E ainda dizem qui os úrtimo são os premero, mais nesse caso os úrtimo são os úrtimo mesmo!... 

Autor: Jair Pereira da Silva - Pilar do Sul/SP

Página do autor:
http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=80646


Missley da Conceição

Autora: Anajara

Missley da Conceição nasceu no dia 29 de novembro, no início das festividades de Nossa Senhora da Conceição, por isso recebeu esse nome pelo seu pai Sr. João Romão. A mãe Dona Mariinha morreu no parto. Infelizmente.
O Sr. João Romão não se casou novamente, por ter que criar a menina sozinho. Trabalhava de sol a sol arrancando macaxeiras para serem vendidas nos restaurantes da capital.
Nos primeiros anos Missley acompanhava o pai no trabalho. Depois foi ficando grandinha e já com cinco anos ficava em casa sozinha. Mas, os vizinhos sempre cuidavam da criança, dando comida e alguns brinquedos para ela se distrair.
Quando seu pai chegava da roça, mãos calejadas, pele enrugada e castigada pelo sol, dava um abraço na filha e prometia levá-la à feira no centro da cidade de Brejo Santo, onde moravam. A cidade era muito pequena, com algumas roças que rodeavam o vilarejo. Um cenário cinza-azul, sol ardente, pouca chuva e um pôr do sol deslumbrante. A terra seca como os calcanhares do Sr. João Romão.
A idade de Missley ir para a escola chegara mais depressa que se esperava. A casa onde se localizava a única escola de Brejo Santo estava em ruínas e a professora não dava mais aulas lá, foi-se para a capital com um forasteiro que apareceu certo dia e levou a única chance da menina de aprender a ler.
Havia no seu semblante um ar de decepção como o do pai quando chegava da roça e se acocorava no canto do fogão pensativo, sem palavras, sem ação diante da vida que tinha e olhava a filha e olhava a casa... a casa... a filha... a casa... infinitamente.
Pensava quando conheceu Mariinha na Semana Santa, logo na sexta-feira da paixão que a vida seria próspera e fecunda. Como não sabia usar as palavras pegou na sua mão e com os olhos e somente em pensamento deu-lhe um beijo na testa, respeitosamente, e um silêncio se fez pairar, como a poeira dos pés das crianças que brincavam em redor da barraca de doces da mãe de Sr. João Romão. Ele ajudava a vender os doces. Mas, de cabeça abaixada, levantando-a um pouquinho só para entregar o doce.
Mariinha tinha uma pele cor de jambo e um olhar pedinte, como que quisesse dizer algo que não sabia. Aliás, toda a gente tinha uma falta de essência que integra o corpo e integra a alma que fazia com que muitos tivessem esse jeito meio mole de falar e olhar, como se estivessem desesperançosos de tudo. Mas, não era bem assim. No fundo havia uma força interior que formava a peculiaridade do povo nordestino única e viva. Que os diferençava das outras pessoas mesmo que estivessem longe.
As festas, a cultura, a religiosidade estavam impregnadas na pele daquele povo que de sofrido e abandonado se faziam sorrir muito alto e feliz como as saias que rodopiavam nas quadrilhas de São João.
Missley se deslumbrava com as cores dos doces, dos pratos, das roupas de festas, florais com cores vibrantes e sonhava mesmo acordada.
A menina crescia e com ela o desejo de casar e se mudar para o Rio de Janeiro. Sair daquele lugar fantasma, era o seu maior sonho.
Sentado, agachado junto ao borralho, sem cinzas, sem fogo e frio estava o Sr. João Romão com seus pensamentos, enquanto, batia à porta. O barulho do trote do cavalo doía nos seus ouvidos e cada vez mais ele apertava os joelhos contra a cabeça.
Naquele momento haveria uma venda. Não uma dessas comuns que aconteciam em Brejo Santo. Mas, as do futuro com pacote completo. O Sr. João Romão estava prestes a vender sua última filha.
Nos noticiários das cidades grandes como o Rio de Janeiro onde Missley iria morar publicavam constantemente que pessoas de classe média estavam vendendo rins, fígado, sêmen, óvulos e outros órgãos para transplantes a preços exorbitantes. Mas, nem Missley nem seu pai ao menos imaginariam que isso fosse possível acontecer. Para eles a cidade do Rio de Janeiro era o de melhor que poderia acontecer com uma pessoa, por isso não hesitou nem por um segundo em mandar sua filha para lá. Qualquer coisa seria melhor que passar necessidade, sofrer com a miséria e o abandono, morrer à míngua...
Assim, então, começa a história de uma garotinha de 15 anos, olhos claros, pele suave como a seiva de uma flor. Ingênua e doce como o clarão da lua.
No Rio de Janeiro foi à manicure, cortou os cabelos e matricularam a menina numa escola pública perto da casa onde morava, de agora em diante, no período da manhã, e à tarde e à noite vestia um uniforme azul claro e, no colo, acalentava uma criança tão linda e alva como o olhar da lua.
Missley conheceu o Teatro Municipal, o Cristo Redentor e quando aprendeu a ler ia à Biblioteca Pública sempre que podia e lá ficava lendo e sonhando como jamais imaginou que pudesse acontecer em sua vida.
O seu pai faleceu. O casebre caiu.
Trinta anos se passaram que o Rei do Caruá, Antônio Carlos, levou-a para o Rio de Janeiro. Em sua lembrança ficaram apenas umas fotografias que Carlinhos tirou de Brejo Santo e  a menininha guardou numa caixa de Pandora. De quando em vez abria a caixa e de lá saía cores, formas, cheiros de um lugar fantasma, que não existe mais, a não ser ruínas, destruição e abandono.
Elas cresceram, Missley e Maria Clara. Hoje elas estão passeando no Jardim Botânico. O deslumbramento daquele lugar, a natureza, as árvores, as flores, os bichos, paradoxalmente,  se misturavam com as fotografias que Missley mostrava a Maria Clara, de um sertão de um Pernambuco que era só seu. E que ela nunca conseguiu se desvencilhar, porque era a sua história. E nada mais.


Autora: Anajara Lopes - Itapecerica/MG


Publicação autorizada pela autora


Exorcismo em escondido

Autor: Jailson Vital 

Quando eu era estudante, ainda no curso ginasial, estudava em outra cidade distante uns 80 quilômetros da minha cidade natal, no sertão pernambucano. Eu ia e vinha nas férias ou nos feriados mais longos, de ônibus, que parava em qualquer lugar onde houvesse um passageiro para subir ou para descer, naquela estrada de terra batida. Apesar da distância relativamente pequena para os veículos de hoje, naquela época enjoava-se de ver estrada de terra na frente, mato dos lados e poeira atrás. Quebrava essa rotina uma parada em frente a um lugarejo chamado Escondido. Dá janela do ônibus, eu ficava olhando e matutando. –Quem moraria naquele lugar de poucas casas dispostas de modo irregular, sem nenhuma simetria? De que viveriam? -Aparentemente alguns poucos mostravam alguma ocupação, pois havia na margem da estrada um posto de combustíveis, um restaurante, e estranhamente uma revendedora de automóveis, talvez usados. Ao longe, entre as casas, uma construção se sobressaía. Era uma igreja, aparentemente de culto católico. Algum tempo depois vim a saber que naquela localidade funcionava uma beneficiadora de caroá que é uma planta cujas folhas tem fibra longa e resistente, que depois de beneficiada serve para a feitura de cordas e tecido rústico. Essa atividade devia empregar parte dos moradores do lugarejo, tanto nos cuidados da planta na roça, quanto na parte industrial. Isso justificava a aparente prosperidade do lugar, que era bem cuidado.
A minha família se mudou para outra cidade e eu mudei de lugar de estudo, deixando de trafegar naquele trecho de estrada. Muitos anos se passaram e quando voltei a passar por aquela estrada, agora asfaltada, ao passar em frente a Escondido, tomei um susto. A minha impressão era que havia explodido no lugarejo, bombas do tipo jogadas por aviões durante a 2ª guerra mundial. Todas as construções estavam arrasadas. Apenas algumas paredes de algumas construções restavam de pé. Distinguiam-se as duas colunas do posto de combustíveis, que ainda sustentavam uma laje e uma parede, dando a impressão de uma cadeira gigante, a parede frontal do Bar e Restaurante Catimbau, com a sua inscrição em letras vermelhas e as paredes da igreja com suas portas altas, onde parte da estória que eu vou lhes contar aconteceu.                           
Novas indagações agora me assaltavam. – O que poderia ter acontecido? Por que o povoado foi arrasado desse jeito? Aquela situação me interessou e procurei saber de antigos moradores e autoridades do município sede, o que aconteceu para que essa desgraça acontecesse e então ouvi os relatos que passo a lhes contar com as tintas com que me foram pintadas. A cultura do caroá começou a declinar, devido à substituição dessa planta por outras mais fáceis de cultivar e mais econômicas, como o agave e a juta, além da entrada no mercado, do nylon, uma fibra derivada do petróleo, que era importada dos Estados Unidos. Com isso, o proprietário das terras onde se cultivava o caroá e da unidade beneficiadora, demitiu os empregados, fechou a beneficiadora, abandonou a casa grande e avarandada onde morava e foi embora para o Rio de Janeiro, segundo relatos. Falam também que ele, nem nenhum parente jamais voltou para Escondido, entrando a casa em degradação contínua. Dos empregados demitidos, parte também foi embora e a outra parte tentou negociar o caroá que ficara na plantação ou aproveitaram a terra abandonada para outras culturas.
Passados alguns anos, o povoado de Escondido ainda resistia ao abandono, quando aconteceu um fato intrigante. Um dia de verão e promissor calor, a casa grande que estava abandonada e completamente desgastada, amanheceu reformada e pintada em cores vivas, sem que ninguém tivesse visto ou ouvido qualquer barulho devido à reforma. E olha que seria necessário um batalhão de trabalhadores para fazer esse serviço em uma única noite. É claro que toda a comunidade acorreu à casa para ver o inusitado, e mil hipóteses povoaram as cabeças daquela gente humilde. No dia seguinte, novo mistério viria a agitar ainda mais a vida daquele povoado. Do ônibus que vinha do Recife, desceu uma figura bizarra. Uma mulher alta, de quadril e peitos avantajados, vestindo uma calça preta colante, blusa colorida, um lenço vermelho amarrado na cabeça, brincos longos descendo das orelhas e metade do antebraço esquerdo coberto por pulseiras circulares de metal. Nos dedos todos, anéis dourados e prateados completavam aquele personagem vindo talvez de algum bando de ciganos. Junto com ela desembarcou a sua bagagem. Um baú preto, medindo aproximadamente 1 metro de comprimento, por 50 centímetros de largura e altura e tinha duas alças nas laterais do comprimento. Era usual bandos de meninos cercarem o ônibus quando este parava, à procura de vender aos passageiros que seguiam viagem, pastéis, tapioca, milho assado, cocadas, e também os garotos maiores que disputavam para levar a bagagem dos passageiros que chegavam. Nesse caso do baú de Dona Zoráide, era esse o nome da figura, os garotos olhavam para o baú e se entreolhavam para ver quem se atrevia a candidatar-se a levar aquele trambolho. Para surpresa de todos, Dona Zoráide segurou em uma das alças, levantou um lado deixando a quina oposta do baú encostada no chão e com facilidade arrastou-o na direção da casa grande recém reformada. A meninada seguia-a admirada, pois o baú não deixava nenhum rastro no chão, nem fazia nenhum barulho ao ser arrastado. Seguia aquela procissão circense povoado à dentro quando de repente, ela parou e voltando-se olhou com os olhos esbugalhados para a meninada, que incontinente debandou para todo lado gritando apavorados, contando em casa, ofegantes, que tinham visto o cão. A chegada de personagem tão diferente agitou a pequena comunidade. -Quem seria ela? Seria parente do dono da casa? O que tinha vindo fazer em Escondido? -Passada uma semana de reclusão e de curiosidade, Zoraide chamou um menino, que a custo, ou melhor, que a bom pagamento concordou em distribuir um panfleto onde estava escrito: Madame Zoraide – Revela o passado o presente e o futuro – traz seu amor de volta – esquenta seu relacionamento – trabalho garantido. -Mas o que quereria uma vidente fazer numa comunidade tão pequena e unida? Mais um mistério. Passam-se duas semanas, e como nada aconteceu, as pessoas começam a acostumar-se com a presença daquela “cigana” na casa grande. Logo, uma primeira candidata resolve experimentar os serviços da dona Zoráide e comparece uma, duas, três e mais sessões na casa dela. Enquanto isso, alguns fenômenos acontecem: choveu abundante em toda a região, menos exatamente sobre o quadrilátero que as residências do povoado formavam. Na frente voltada para a estrada, a chuva caía da metade da estrada para fora. Estranhos redemoinhos rodavam entre as casas e observando-se bem dava a impressão de que tinha uma pessoa girando dentro dele. Em uma sexta feira de sol escaldante, meio dia em ponto, nenhuma nuvem no céu, uma sombra cobre só e exatamente a região de Escondido. Antigamente a calmaria e o silêncio reinavam nas madrugadas. Agora, cachorros latiam em bandos correndo atrás de alguma coisa. A primeira cliente da “cigana”, aparentemente gostou do resultado das sessões e logo trouxe mais outra e mais outra. As três pouco tempo depois levaram seus maridos e passavam as noites por lá. Não se sabia bem quais eram os problemas dos mesmos. O que se sabe é que os seus maridos logo após as primeiras sessões pareceram mais felizes, para em pouco tempo aparentarem desânimo e fraqueza. Os mexericos começaram a andar de boca a ouvido no povoado. As pessoas mais velhas diziam que Zoráide não era cigana coisa nenhuma aquilo era o coisa ruim. Numa dessas madrugadas ouviu-se na casa grande um alarido danado, um chororô, pedido de socorro e valha-me Deus. De repente a porta abriu-se e de lá de dentro apareceram os três casais completamente nús. Correram para o pátio da igreja, esmurrando a porta, pedindo para abrirem. Todos, homens, mulheres e crianças presentes no povoado correram para ver o que estava acontecendo. Alguém lembrou que na cidade vizinha estava um velho frade que pregava as santas missões na região, que era bom ir buscá-lo. Dito e feito. Em pouco tempo, o frade já informado dos acontecimentos, entrou na igreja com toda a população presente. Os casais saídos da casa grande, já vestidos, só sabiam dizer que tinham visto o cão. Fechadas as portas e janelas da igreja, o velho frade começou a rezar orações de exorcismo, acompanhadas por cânticos que todos cantavam com todas as forças para afugentar o medo. Do lado de fora uma zoada se inicia, com uma batida de zabumba e triângulo e um fole de 8 baixos puxado e encolhido sem ritmo definido. Outra barulheira se inicia com sons de matraca, berros de bode e toques de trombone, nas alturas que vocês podem imaginar. Uma algazarra contornava a igreja rodando no sentido horário e a outra no sentido anti-horário. Quando se encontravam atrás e na frente da igreja a barulheira era infernal. Do lado de dentro as crianças se agarravam aos pais, os cânticos aumentavam de intensidade tentando abafar aquela latumia toda. Tome cântico e tome reza, durante uma meia hora, até que a barulheira lá fora serenou. Dentro da igreja, os cânticos continuaram durante toda a madrugada, porém, agora, de maneira harmônica e na altura conveniente. Ninguém se aventurava a abrir a porta da igreja para saber o que estava acontecendo. Quando o dia amanheceu, o velho frade abriu a porta, bem devagar e o que viu foram os instrumentos largados no chão. As pessoas começaram a sair e voltar para suas casas agarradas nas mãos uns dos outros. Alguns arriscavam dar uma olhadela para os lados da casa grande, e o que viam era estarrecedor. Como por encanto a casa tinha voltado ao seu estado anterior de abandono. Desgastada, alpendre destelhado as portas e janelas, todas abertas e a casa aparentemente vazia. Nesse mesmo dia, todas as pessoas de Escondido foram indo embora, muitas deixando seus pertences para trás. No dia seguinte, não havia uma só pessoa morando no povoado.
Algum tempo depois, algumas pessoas se reuniram para fazerem uma vistoria nas casas para recuperar alguma coisa de valor ou valor sentimental. Ao entrarem no Restaurante Catimbau viram que o maldito, travestido de mulher tinha deixado na parede, uma pintura representativa do que acontecia nas sessões e naquela terrível noite na casa grande. Tiraram uma foto que aqui reproduzo, como prova de que tudo que aconteceu foi verdade.



Autor - Jailson Vital - Custódia/PE
Ilustração: Edmar Sales - Custódia/PE

Fuga pra capital

Autor: Jair Pereira da Silva

No decorrer da história, acontecem consideráveis e diversificadas alterações em todas as regiões do globo terrestre desde que o mundo é mundo. Um dos fatos mais preocupantes ocorreu no Nordeste Brasileiro no final do século XX, mais precisamente nas décadas de oitenta e noventa e ainda vem ocorrendo até aos dias de hoje: fuga pra capital. Isto mesmo! Fuga pra capital e não “fuga de capital” como você pode estar pensando.
Brejo das Pedras era um lugarejo escondido lá no agreste pernambucano. Para se gerar uma ideia da lonjura, situava-se nas proximidades do município de Verdejantes que dista 570 km do Recife indo pela BR232.
Naquela cidadezinha, a exemplo de tantas e tantas outras existentes por este Brasil adentro, os politiqueiros anunciavam feitos mirabolantes, (e o fazem até hoje), que nunca foram efetivados. Para entrarem ou se firmarem no poder, prometiam, de uma forma ou outra, levar meios àquela localidade para minimizar o sofrimento provocado pela fome de comida, de educação, de saúde, de lazer, enfim, de felicidade aos eleitores, o que jamais fora cumprido.
Com as bruscas mudanças climáticas provocadas pelas queimadas e desmatamentos irregulares; com a escassez das chuvas; com os pequenos rebanhos de bovinos e caprinos sucumbindo de sede e as plantações de subsistência esturricando, não restou, àquele sofrido povo, qualquer alternativa senão abandonar o berço onde nasceram. Primeiro os rapazes e as moças, em seguida as crianças e depois todo o mundo, com exceção dum casal de velhos que teimavam em não abandonar a choupana de pau-a-pique recoberta de sapé, a qual eles construíram com o suor do rosto e com sangue de mãos calejadas...
Dois agentes de saúde, obstinados em cumprir a árdua missão, depararam com aquele rincão totalmente em ruínas: a escola era somente escombros, a igreja não possuía mais nem a cruz que acusava, ao longe, a existência da casa de Deus, do posto de combustível, que era chamado de “Cadeira de Gigante”, não restou nem a fachada, enfim, parecia uma cidade fantasma, só não era porque os abnegados funcionários públicos descobriram numa tapera os idosos que se encontravam num estado de penúria que dava dó.
Penalizados com a lamentável situação em que se encontravam, foram convidados a se retirarem dali, todavia, teimosos como jumentos, queriam findar seus dias naquele cafundó.
Contrariando a vontade daqueles humildes sertanejos, os agentes comunitários de saúde entraram em contato com a respectiva Secretaria, no que foram orientados para não importuná-los, pois, cada qual tem o direito de decidir o próprio destino, e assim, contrariando a vontade de todos, inclusive a nossa, aqueles dois “molambos” foram os únicos que não empreenderam “fuga pra capital”, os únicos de Brejo das pedras que não se retiraram pra cidade grande, perecendo ali; pobres e esquecidos.

Autor: Jair Pereira da Silva - Pilar do Sul/SP

Página do autor:

http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=80646

O Louco do Cedro


Autor: Geraldo Rodrix

Às vezes me sinto como Mefibosete vagando por uma Lo-Debar espectral. No final da tarde e do arrebol, quando a pouca luz começa a ser tragada pelas sombras, eu vago pelas ruas desertas do Cedro e me encontro com cortejos fantasmagóricos, formado por pessoas que já se foram a muito tempo. Os olhares silenciosos que esses espectros me lançam, costumam gelar meu sangue. Sou prisioneiro de uma cidade morta e seus fantasmas.
O Cedro já foi um lugar cheio de vida e prosperidade. As ruas eram cheias, os comerciantes enchiam suas gavetas com o vil metal, suas festas idólatras eram famosas e duravam dias, a opulência da velha igreja, mesmo em total abandono, mostram isso, sacos e sacos de dinheiro eram levados daqui pelos padres e bispos que vinham ao lugar. O sagrado e o profano se misturavam em uma amálgama de espiritualidade e prazer carnal. Mocinhas perdiam a sua pureza, doentes alcançavam milagres, os escamoteadores conseguiam seu butim, homens afeminados saciavam sua lascívia e a fama dessas festas corria longe. Por muito menos Deus destruiu Sodoma e Gomorra...
Havia a promessa de um futuro ainda mais grandioso e que não se cumpriu. As casas abandonadas, a velha e opulenta igreja, o prédio da escola, o antigo posto de gasolina e os sobrados com suas aroeiras, que parecem indestrutíveis, todos de portas e janelas abertas, parecem convidar os demônios a entrarem e tomarem posse do lugar.  Quando caminho nas horas mortas, sinto seus olhos me observarem, ficam inquietos e tenho certeza que pretendem tragar a minha alma. Olhos famintos... Em certas épocas, quando começa a seca e o calor infernal do sertão dá lugar ao frio cortante, eles se agitam e fazem loucas danças, se lançam pelo espaço, feito um vento amaldiçoado, dançam ao som de flautas incendiárias, festas infernais...
Quando chega a noite, as suindaras e os morcegos deixam as casas abandonadas e se lançam na escuridão da noite, animais selvagens vagam por entre as construções desoladas e cheias de mato, devorando uns aos outros. Quando encontro-os vagando como eu pelas ruas escuras, não fazem conta de mim, como se eu já não existisse, ou como se eu fosse um deles.
Na maior parte do tempo esqueço de me alimentar, não sinto fome ou frio, nem cansaço, só dor, uma dor que não passa e que parece ser causada por solidão, melancolia, saudade e opressão. As poucas pessoas que passam por aqui se dirigem a mim, não consigo me comunicar, não as compreendo, falam sempre de coisas que eu não consigo mais atinar. Algumas vezes perguntam por pessoas que viviam aqui no Cedro, lembro-me de todos, de alguns que nem eram de meu tempo. Conheço-os, todos. Os moradores que moram aqui por perto, pouco se dirigem a mim, dizem que fiquei doido, me chamam o Louco...
O Cedro morreu, assim como as pessoas morrem. Uns dias estão cheios de vida, ela flui por todas as partes, como se nunca fosse acabar, fluindo, interagido, se renovando e então... Chega o fim. O fluxo é interrompido, a noção do tempo se acaba, tudo que foi construído, que cresceu até ali no processo da vida é interrompido e começa a se decompor. Vejo no fundo de minhas retinas, até os átomos morrem...
O Cedro morreu as pessoas cheias de vida, não habitam em cidades mortas, elas partem em busca de lugares vivos, seguem o fluxo. Virei o guardião de uma cidade morta, o Cedro espera por um Hiel que sacrifique o seu primogênito Abirão e seu caçula Segube. Eu não os tenho e se tivesse, não desobedeceria ao Deus de Israel. Fico aquiem quanto Deus quiser, depois seguirei o caminho eterno. Deixarei que o Cedro desapareça sob o céu e até a sua lembrança desaparecerá, deixando uma dúvida às gerações futuras, tal qual Atlântida o grande continente, que foi sugada pelo mar e pelo tempo...

Autor: Geraldo Rodrix - Urucuia/MG


 

Serro azul II

Autor: Alberto Vasconcelos

Sentado na espreguiçadeira de lona o velho Zé Ferreira contemplava, com os olhos tristes, as folhas secas da mataria sendo levadas pelo vento, deixando o rastro de som das folhas em contato com o barro seco da estradinha.
Era grande, muito grande a diferença dos dias de antigamente quando Serro Azul era parada obrigatória para todos, tropeiros e caixeiros viajantes, que seguiam, da capital ou de outra cidade mais importante, em direção ao sertão brabo naquele interiorzão seco e carente.
Pelo menos uma vez por semana o pessoal se reunia na casa de farinha para o trabalho que varava a noite e, de madrugada, os carros de boi, as carroças ou os cambiteiros levavam os beijus e as sacas de farinha para serem vendidas nas feiras.
- tantas sacas de farinha fina, com goma, para seu fulano;
- tantas sacas de farinha quebradinha, sem goma, para beltrano;
- tantas sacas de farinha torrada, no ponto, para sicrano...
As conversas dos homens interrompidas, vez em quando, para um gole de aguardente...
As mulheres cantando, às vezes músicas de época, às vezes rezas de devoção...
As crianças, que ainda não tinham idade para a lida, brincando com os bois de barro ou as bruxas de pano.
Nos finais de semana, a igreja lotada para assistir a missa, batizar os bruguelinhos e as visitas dos compadres e amigos, dos sítios, que vinham para a rua comprar de um tudo.
A varanda da casa de seu Zé Ferreira, bem mais alta que o leito da rua, toda lajeada com tijolos vermelhos, servia de vitrine para os produtos do mangaieiro Nonato.
Era faca, punhal, tesoura, freio para animal de carroça, panela de barro, raspa coco, grelha, alcoviteiro de flandres, tiras de couro curtido, fivela, enxada, ciscador, estrovenga... o diacho.
Dr. Raiz armava sua mesinha bem na porta da escola de dona Amélia.
Tinha remédio para todas as doenças...
Banha de peixe-boi e de peixe elétrico diretamente do Amazonas, sebo de carneiro capado, bage de jucá, mel de uruçu, carqueja, imburana de cheiro, extrato de arnica para curar cortes e de aroeira para curar inflamação e as milagrosas garrafadas que curavam de tosse seca até impotência sexual de homem velho.
Mas o tempo passou, os animais foram substituídos pelos caminhões e depois das marinetes e das sopas, ninguém mais viajava em lombo de burro.
Por sua falta de importância, Serro Azul deixou de ser parada obrigatória, o dinheiro sumiu do comércio, a feira foi minguando até desaparecer completamente, a farinha passou a ser importada da Bahia, as pessoas se mudaram e as intempéries se encarregaram de arruinar as casas, a igreja, a casa de farinha, a estrada, a vida dos que insistiram de ficar...

Autor: Alberto Vasconcelos - Recife/PE
  
GLOSSÁRIO:
Alcoviteiro = espécie de lamparina.
Bage = vagem
Bruguelinho = criancinha
Bruxas de pano = bonecas artesanais vendidas em feira.               
Cambiteiro = pessoa que trabalha com o cambito, parte da cangalha destinada a prender cargas.
Cangalha = espécie de sela para transporte de mercadorias.
Mangaieiro = mangalheiro/ vendedor de mangalhos, miudezas.
Marinete = caminhonete para transporte de passageiros com carroceria de madeira.
Sopas = ônibus de viagem.
Uruçu = espécie de abelha nativa, (Melipona scutellaris)

Desencantos de um vilarejo

Autor: Geraldinho do Engenho

Houve um tempo em que a comunicação, e a interação social, com objetivos comum, comercial, profissional ou até mesmo cultural, se limitavam a poucas oportunidades. No sertão as péssimas condições das vias de acesso, acrescidas a precariedade do meio de transporte, foi o empecilho que mais contribuiu com exclusão do sertanejo. Emperrando o desenvolvimento social, e aniquilando o caboclo. Enfraquecido financeira e até fisicamente, ele se transformou em um retirante sem rumo migrando-se em busca de sua sobrevivência. Ocasionando a formação das favelas, que são verdadeiras coroas de espinhos, no entorno periférico das grandes metrópoles. Despreparados para enfrentar um novo ciclo de vida profissional fracassaram.  Este fator somado ao tardio progresso às longinquas áreas rurais, extinguiu muitos povoados, espalhados Brasil afora, este nosso gigante colosso, com sua dimensão continental. Poucos foram os vilarejos que sobreviveram a esse caos social. Beneficiados pela proximidade geográfica limítrofes, com o centro urbano mais populoso, alguns conseguindo até se emancipar, com o privilégio em se tornar cidade dormitório, cujos moradores passam o dia trabalhando nos grandes centros, e retornam a noite e nos fins de semanas para o aconchego de seus lares. Uma socialização cultural contribuindo de certa forma com a melhoria de vida da população, fator este que acabou atraindo à migração em massa dos sertanejos.
-- O objetivo desta minha prosa era descobrir o motivo que levou a população, a abandonar um prospero povoado no sertão pernambucano, situado a margem da BR 232. O conheci através do milagre da internet, cujas imagens de suas ruínas, me foram repassadas pelo amigo Carlos Lopes, um pernambucano preocupado com as questões socioculturais dos seus conterrâneos. Carlos Lopes é um ícone da cultura brasileira.
O vilarejo em questão tem  um nome que de certa forma  é até pitoresco: (Salto da Rã) copiado de uma grande propriedade, que leva o mesmo nome, local onde um trágico acontecimento ocasionou o abandono e ruína deste povoado, que teve tudo para se tornar uma grande e prospera cidade. Segundo a narrativa de um retirante ex-habitante do local, que o acaso colocou em meu caminho ocasionalmente quando jogávamos conversa fora.  Retirante este que se tornou jornalista.  Segundo sua narrativa, tudo começou com o dinamismo de um prospero fazendeiro cheio de boas intenções.
Salto da Rã é o nome desta sua fazenda, que foi muito produtiva, com vastas áreas em lavouras de subsistência e pastoris, com um volumoso plantel de animais. Muitos empregados. Seu proprietário um homem bom de grande coração. Em contra partida a esposa era o demônio em pessoa. Quem mais sofria com a situação era a cozinheira da casa grande, que teria que conviver com ela, por quase vinte quatro horas por dia.
Viúva mãe de um filho único, cujo pai morrera acidentalmente vitimado por uma descarga elétrica, provocada por um raio. Neco seu filho, tinha a mesma idade de Juarez filho dos patrões. Sempre juntos, eram como carne e unha, inseparáveis. Correndo como dois vitelos no vigor de sua puberdade. Os dois garotos viviam uma infância feliz, o único empecilho era a patroa que nutria um ódio violento pelo filho da cozinheira. O riozinho que cortava a fazenda ao meio, aonde as arvore desenhavam formas variadas sombreando suas margens, era o local preferido dos dois amigos, que todos os dias, corriam a deliciarem o frescor de suas águas puras e cristalinas. Que rolavam numa ânsia de mar doce, absorvendo o límpido azul do infinito espelhado em seu leito de forma exuberante, contracenando com o malabarismo do cardume de lambaris, que disputava cada inseto e cada frutinha que o vento lhes atirava roubadas na bela paisagem.
Seu Joaquim optou pelo cultivo do curoá, foi bem sucedido e decidiu montar uma grande fabrica de beneficiamento desse produto, suas lavouras se expandiram, gerando centenas de empregos, houve uma significativa melhoria de vida para o sofrido sertanejo nordestino, que em sua maioria derramava seu suor, sem obter sucesso tentando a vida na garimpagem. Com o seu empreendimento Seu patrimônio cresceu e a fábrica também, exigindo mais expansão no cultivo do caroá, que com o tempo foi substituído pelo agave e o sisal. Generoso seu Joaquim foi dando oportunidade aos seus empregados com a participação nos lucros de sua empresa. Não tardou e uma pequena vila se formou.  Poderia ter vindo a ser uma cidade cuja fábrica, foi à semente lançada por seu proprietário à margem daquela rodagem de terra que dava acesso ao Recife. O povoado já contava mais de cem almas, que conviviam em paz e harmonia.
Associados ao seu Joaquim montaram restaurante, hospedaria, posto de gasolina, até veículo, chegou a ser comercializado. Uma feira livre onde se vendia de tudo que a população consumia, também atuou com sucesso. A escola que antes funcionava na sede da fazenda, para maior comodidade dos habitantes, foi transferida para a vila, tudo isso patrocinado por aquele homem de coração de ouro. Que preocupado com o lado espiritual do seu semelhante construiu um belo templo católico, aonde foi consagrado como padroeiro do vilarejo, (São Joaquim) a pedido dos habitantes, uma forma carinhosa de homenagear o fazendeiro pelos benefícios a eles proporcionados. Com o mesmo nome de sua fazenda (Salto da Rã). Tudo ali corria bem com prosperidade e desenvolvimento. Mas infelizmente os inocentes pagam, pelos pecadores. A maldade de Bárbara esposa do fazendeiro jogou o destino contra ela própria, e contra todos que dali tirava seu sustento.
Pelo patrão Néco poderia acompanhar a mãe vivendo Junto á ela na cozinha da fazenda. Mas perante o radicalismo da esposa nem cogitava tal fato. Alem de má era invejosa ao extremo, o ódio pelo filho da empregada, aumentava a cada dia, se quer ela permitia, a ele, se aproximar da mãe no trabalho. Os míseros trocados recebidos pela cozinheira mal davam para vestir e alimentar o filho.
Quando o alvor da aurora manchava de escarlate o horizonte, a pobre cozinheira beijava seu filho e rumava para o trabalho voltando altas horas da noite, sempre de mãos vazias. Toda alimentação que generosamente o patrão liberava para ela levar ao garoto, a patroa tomava em suas próprias mãos e atirava aos cães da fazenda. A pobre mulher se lamentava, rogava a Deus por dias melhores, e ainda assim agradecia por estar viva.  Esperançosa não se abalava em sua fé.  Quanto mais ela tentava afastar o filho do amigo, mais crescia a amizade entre ambos.
Neco apesar de mal alimentado tendo que completar sua refeição, com as frutas de época, e de sua pequena horta doméstica que ele mesmo cultivava, tornava-se a cada dia mais robusto. Enquanto Juarez acometido por problemas respiratórios se definhava, Neco com seu vigor causava inveja à patroa. Um incontrolável desejo de vingança foi aos poucos hospedando o coração da víbora. Como se Néco fora culpado pela moléstia do seu filho. Periciado pela mãe Juarez, foi terminantemente proibido de aproximar do amigo.
Juntos freqüentavam a escola, com a víbora monitorando o horário de sua chegada. Mas a amizade entre ambos só não era maior que o ódio da bruxa malvada. Ao término da aula, em cujo povoado ficava a três quilômetros da fazenda; Juarez passava á casa do amigo só chegando à sua casa à noite. Aumentando assim Ira da mãe. Certo dia fora ela ao encontro do filho. Assustado Neco quis fugir. Fingindo amabilidade ela o convenceu a seguirem juntos, dizendo estar arrependida de seu comportamento. Que a partir daquele momento queria ver seu filho feliz. E que por serem tão amigos Néco aguardasse, Juarez iria com a mãe até a casa, e lhe traria um bom pedaço de bolo, como prova de sua reconciliação.
Feliz, Neco aguardava em seu pobre casebre pela volta do amigo, enquanto isso fazia seu dever escolar, não redava os olhos da estrada na expectativa pela volta do amigo com o bolo prometido por Bárbara. De volta ao casebre, Juarez faminto, era tentado pelo cheiro do bolo, afinal desde manhã não se alimentava, mas aquele era do amigo conforme recomendação da mãe. O seu estava reservado quando voltasse. Acabou não resistindo, imaginando que com certeza, o amigo dividiria com ele aquele delicioso petisco com o maior prazer. Começou por uma biliscadinha aqui, outra ali, de repente metade do bolo tinha sido devorada.
Já preocupado com a demora do amigo, Néco permanecia com os olhos voltados para a trilha que ligava seu casebre à fazenda, mas nada do amigo. A tarde caía rápida coberta por um intenso nevoeiro. Preocupada com a demora, a mãe saiu à procura do filho encontrando-o pela metade do caminho, caído sobre a faisqueira do bolo, espalhadas pela trilha. O mortífero veneno destinado ao amigo dera cabo de sua vida. Completamente louca, a patroa foi internada pelo marido em um hospício em Recife. Vindo a falecer meses após, clamando pelo nome do filho.  Seus restos mortais foram transladados para o vilarejo, onde ela foi sepultada, ao lado de seu filho Juarez, no pequeno cemitério construído por seu esposo.
Certo tempo tudo correu com normalidade, mas seu Joaquim se enclausurou em sua fazenda, e nunca mais botou os pés na vila. Desanimados pela falta de sua liderança os moradores começaram migrarem para outras cidades da região, dando inicio a desertificação do vilarejo, que já vinha sofrendo a conseqüência da forte seca que assolava a região.  A coisa se agravou mais ainda quando os moradores começaram ouvir lamentos vindos cemitério situado colado à igreja, ao fundo. De inicio não deram muita importância imaginando serem berros das cabras, mas a coisa foi agravando cada vez n mais. Ninguém mais dormia a partir da meia noite. Reunidos a busca de uma solução decidiu contratar Zé do Seridó, um conterrâneo de Carlos Lopes, que se dizia ser um arrequeredor de assombração. O homem veio pra tirar a limpo o boato que aterrorizava os moradores. E conseguiu, de fato era mesmo um cabra macho.
De plantão nas proximidades do cemitério, quando o relógio da igreja deu a décima segunda badala anunciando a meia noite ele ouviu uma voz repetindo inúmeras vezes: --Nééééco! A voz veio em sua direção, ele correu até o bueiro da fábrica, escondendo por traz dele.  Viu quando um a mulher que viera pela estrada da fazenda Salto da Rã dentro de um circulo de fogo que iluminava mais ou menos dois metros ao seu redor, arrastando correntes, e conduzindo nos braços uma criança que parecia estar morta com a cabeça, perna e braços pendurados, e de sua boca escorria sangue em grande quantidade, confuso ele a acompanhou com os olhos, pode ver quando ela saltou sobre o muro do cemitério e deu o ultimo Gemido: Nééééécoooo!  Ele não teve peito para requerê-la. No dia seguinte os moradores puderam comprovar que realmente o Zé não mentiu na direção indicada por ele uma trilha de sangue na poeira, e rastos de dois objetos possivelmente duas correntes arrastadas por alguém. Seguiram as marcas elas passaram sobre o muro do cemitério e só terminaram na sepultura da megera que matou seu próprio filho, ao tentar contra a vida do pobre Neco. Apavorados os moradores foram se mudando de um a um pouco tempo depois somente meia dúzia de gatos pingados permaneceram morando na vila.
Tônia a cozinheira, mudou com o filho para Recife, mais tarde para o Rio de Janeiro. Néco foi ser jornaleiro, percorrendo os bairros da cidade, a gritar: olha o “jornaleiro”... Estudou formando-se em jornalismo.
Trinta anos mais tarde voltou à fazenda Salto da Rã, em busca de suas origens, para escrever sua própria história. Encontrou tudo diferente a vila abandonada reduzida a ruínas e escombros, hospedada por ervas daninha, corujas e morcegos.  Nem uma vivalma para contar a história. Seu Joaquim, velhinho numa cadeira de rodas, aos cuidados de uma sua afilhada a quem ele adotou como herdeira em seu testamento.  Na sala do casarão, onde poucas vezes, ele teve permissão para entrar, as paredes velhas enfumaçadas, com fotos de ancestrais petrificadas. Dentre elas, a do casal que em silencio parecia contar a história daquela trágica e sombria tarde que sugou a vida de seu melhor amigo. No local do casebre onde Neco residiu com a mãe, apenas as trepadeiras vermelhas se misturando ao mata pasto, sinalizando sua histórica existência. Somente desolação permaneceu no lugar do perfume das flores, que os dois amigos juntos muito aspiraram. O riacho com seu leito barrento, á sua margem arvore desfolhadas, onde um dia as águas, espelharam as maravilhas da paisagem, um imenso vazio a perpetuar com sua ânsia, mas não de mar doce, somente de lamuria da solidão restou.

Geraldinho do Engenho - Bom Despacho/MG


Publicação autorizada pelo autor

Onde fica Brejo Santo?

Autor: Dilemar Costa Santos

Você sabe, por acaso, onde fica Brejo Santo?  Alarico perguntou a um homem, ao chegar em Altamira - Cidade muito bem falada -, que se situa no interior de Pernambuco. Ele disse:
Sei não, mas já vi falar. Dizem que era no agreste, e que acabou-se por causa da ganância de uma famíla de “graúdos”, que era dona de quase tudo, e queria mais. O sinhô percure na Bomba de Gasolina, que eles lhe informa.
Alarico foi até o Posto. Um caboclo, que estava de cócoras, na sombra de uma gameleira, pitando um cigarro de fumo de rolo, puxou uma baforada e falou:
Vá dizendo moço.
Alarico fez a mesma pergunta. O Caboclo, respondeu:
Já passei por lá, mas hoje em dia é uma tapera. O sinhô queria o que por essas bandas?
Alarico respondeu:
Quero conhecer o Lugar, para poder contar.
Então o Caboclo se levantou, deu uma espriguiçadela, botou o chapéu de couro de bode na cabeça, e disse:
Eu lhe levo lá por cinqüenta conto (cinqüenta reais). O sinhô aluga a caminhonete do Vadim, e nóis vamo. Eu conheço um véio de nome Severino que ainda mora lá, e sabe lhe contar tudo. Tim, tim, por tim, tim.
O Alarico disse:
Eu topo. Vá chamar oVadim.
Em pouco tempo Vadim chegou. Ouviu a proposta, disse que era longe. Mas acertaram o frete, e partiram.
Ao final da tarde, após percorrer uma estrada poeirenta, Vadim apontou um pé de serra, e disse: estamos chegando. Olha lá!
Então chegaram e entraram na Cidade Fantasma!
Umas crianças barrigudinhas, com os narizes correndo, se achegaram, estenderam as mãos, e pediram:
A bença, seu home...
Deus lhes abençoe, respondeu Alarico. Levou a mão ao bolso, pegou algumas moedas, molhou as mãos estendidas.
Deu uma olhada para o desbotamento e abandono da Cidade, ficou impressionado. Era mesmo uma tapera!
Vamos, vamos logo pessoal; vamos falar com  seu Severino.
Seu Severino encontrava-se sentado num banco de madeira, frente á casa modesta onde morava.
Alarico, mais o Caboclo e Vadim, se dirigiram ao velho, o saudaram:
Tarde, seu Severino. Este respondeu, acrescentando:
Cheguem prá adiante. Se assentem. O que desejam de mim?
Dizem que o senhor sabe de tudo o que se passou aqui em Brejo Santo. Eu venho de longe para conhecer a história desta Cidade. O senhor pode nos contar, indagou o Visitante.
Prá que? Em todo o caso entrem, foi a resposta.
Adentraram no casebre, tomaram assento e aguardaram.
O velho Severino se sentou num pranchão próximo da janela, coçou a barba, começou a contar, que fora o Juiz de Paz do Lugar, por muito tempo. Que conheceu muito a família dos Gregorios, os que deram causa para a derrocada da Cidade. Eles eram muito ambiciosos, donos de quase tudo. Os mais velhos sempre diziam que eles parassem de querer mexer com a nascente do Brejo, porque nela morava uma Jia, que era filha da Mãe D´água. Mas o Coronel Gregório Brauna, não deu ouvido a ninguém. Mandou vir umas máquinas, e meteram no brejo, procurando petróleo. Foi aí que estorou um jato d´água nunca visto.
Pois bem, desse tempo em diante, começou a morrer gente, dos mais velhos às crianças, e nunca parou.
O Governo mandou investigar.
Os técnicos e médicos, depois de examinar uns que morreram naqueles dias, fizeram um laudo assegurando que todos morreram envenenados por ARSÊNICO, um veneno fatal, e que vinha da água.
Era a única água que servia a Brejo Santo.
O Governo mandou que imediatamente as máquinas aterrassem o brejo, e ficou tudo seco.
Presentemente, os poucos que ficaram só bebem água da chuva, vivem de aposentadoria, criam umas besteiras de bichinhos, e o medo não deixa chegar mais ninguém.
Os poucos que moram aqui, tão cansados de ver o povo que morreu, andando em procissão, á noite, rezando pela Jia. Eu mesmo já vi muita coisa, mas me apego com São José, sou de Jesus, sei que vou ir mais cedo ou mais tarde. Por isso, não tenho medo. E agora os senhores me dêem licença que quero ir dormir.
Muito obrigado, seu Severino. Fique com Deus, boa-noite.

Autor: Dilemar Costa Santos - Ipirá/BA