Mostrando postagens com marcador Magnu Max Bomfim - Igarapava/SP. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Magnu Max Bomfim - Igarapava/SP. Mostrar todas as postagens

domingo, 20 de novembro de 2016

A turma da bomba dágua...

Autor: Magnu Max Bomfim

Ultimo ano de faculdade, ultimo semestre, cinco anos longe da família, uma vontade danada de voltar pra casa, foi quando um dos nossos professores resolveu transformar em realidade aquele sonho que sempre acalentava e que sempre adiava, ele comprou uma imensa motocicleta e saiu a rodar pela cidade, na primeira curva a máquina derrapou e no descontrole caiu sobre a sua perna esquerda esmagando-a, e disto resultou um acréscimo ao seu corpo de mais de uma dúzia de parafusos, algumas placas de platina e uns seis meses de repouso, fisioterapia, muletas, etc.
Às presas a universidade contratou um substituto, ou melhor, uma substituta, uma moça alourada, recém-formada, ríspida, durona, não era alta, dona de uma beleza contagiante, dona também de uma firmeza monolítica na condução dos seus propósitos.
Naquela época não éramos bem vistos por fazermos parte de um conjunto musical que treinava em um barracão ao lado de uma imensa caixa d’água, e de imensas bombas de recalque, nosso conjunto musical tinha até um pomposo nome em inglês, mas os invejosos nos apelidaram de A Turma da Bomba D’água, e por mais que tentássemos nos livrar daquele maldito apelido mais aquilo em nós grudava, impregnava, por fim assumimos, éramos a Turma da Bomba D’água, com todos os seus defeitos e toda a sua má fama, moços da boemia que tocavam em troca de sanduíches, diziam...
A nova professora ao que parece fora alertada da nossa fama, e que apesar de vivermos na noite tirávamos boas notas, na certa éramos craques na arte de colar, pois estrategicamente sentávamos lá no fundo da classe, nas últimas carteiras:
— Nas minhas aulas eu quero que a Turma da Bomba D’água sente aqui nas primeiras carteiras, por favor rapazes!
Nós que gostávamos de Fernando Pessoa tínhamos como lema: Contornar é preciso, confrontar não é preciso, obedecemos, para o delírio da turma.
Tem certos momentos em que sentimos que estamos sendo observados, que alguém está olhando pra gente e não sabemos quem, assim eu me sentia naquele momento, levantei olhos e deparei com os belos olhos da professora ternamente em mim fixados, o tempo parou e naquele profundo silêncio que se seguiu e eu tenho a absoluta certeza que ouvi daquele olhar, palavras de amor, seus olhos levemente sorriram e ela olhou para outros cantos da sala de aula, despistando.
Aquela nova professora queria mostrar serviços:
— Pesquisem no livro tal da página tal a tal e apresentem uma sinopse na próxima aula!
Já estava começando a odiar aquela moça, mas também já estava começando a amá-la, das vezes na biblioteca perdido entre pesquisas e mais pesquisas ela aparecia toda sorridente:
— Estou gostando de ver vocês aqui...
Sentava ao meu lado, dava algumas dicas de como fazer um trabalho apresentável, mas quando eu olhava nos seus olhos um calafrio percorria todo o meu ser, seus olhos transmitia mensagens que o meu coração seguramente traduzia que ela de mim estava gostando, por fim arrisquei:
— Será que tenho uma mínima chance de algum dia ser seu namorado?
— Se você abandonar aquele conjunto musical, ser mais responsável, ou melhor, ter um comportamento de bom moço, com certeza existe uma mínima chance de sermos mais que amigos!
Comecei a faltar aos ensaios do conjunto, por fim cansaram e me substituíram por um estudante gaúcho, um rapaz espevitado, dono de uma energia contagiante, na certa a minha ausência não foi sentida na Turma da Bomba D’água...
Morávamos perto da universidade, à noite gostava de ficar sentado em volta daquelas mesinhas que ficam nas calçadas em frente aos barzinhos, foi quando vi um carro se aproximar e dele desceram três moças, minha professora e duas amigas, me cumprimentaram, sentaram, conversaram, desconversaram, e as duas amigas com as mais esfarrapadas desculpas teriam que visitar uma pessoa conhecida delas que estava adoentada, partiram, neste instante um maluco guiando um imenso carro preto, brecou seu veículo com tamanha violência que derrapando chegou a roçar os pneus na calçada, o moço saindo do carro apressadamente entrou no bar deixando o rádio ligado com o som nas alturas, Eric Clapton cantava... “While my guitar gently weeps”... Ao ouvir aquela música meu coração não resistiu:
— Eu não sei o que o amanha reserva pra nós, mas de uma coisa eu tenho a  absoluta certeza, seja lá onde eu estiver, toda vez que ouvir esta música vou me lembrar de você...
Segurando as suas mãos, lentamente nossos lábios foram se aproximando, e um beijo daqueles de perder o fôlego foi incendiando a minha alma por inteiro descompassando meu coração.
Ela sorrindo:
— Você nem me pediu em namoro, mas agora isto nem é mais preciso, pois já estamos enamorados. Abraçamos e beijamos tantas vezes que...
No outro dia na universidade o assunto do dia era o nosso namoro, os beijos e abraços foram exagerados, mas seguramente eu estava vivendo os mais belos e os mais felizes momentos da minha vida!
“A felicidade é uma coisa estranha e esquisita, das vezes nos visita somente para provar que ela existe”, e assim foi...
Convidaram-me para ir até determinado barzinho, onde iríamos tratar de assuntos referentes à festa da formatura, mas lá chegando assim que sentei apareceu uma moça que usava trajes curtíssimos, blusa decotadíssima, toda pintada, nunca a tinha visto, inesperadamente se sentou no meu colo, a muito custo consegui me desvencilhar daquela doidice...
Agora, eu, um rapaz surpreendentemente comportado, na sala o meu amor adentra para ministrar mais uma aula, foi quando ela ao abrir a gaveta da sua mesa deparou com alguma coisa estranha que a transmudou, transfigurou e entristeceu...
Calmamente ela de mim se aproximou:
— Deixaram na minha gaveta, mas isto te pertence...  
E me entregou uma fotografia, e nela claramente via aquela moça aloucada no meu colo sentado, me abraçando...
— Posso explicar?
— Não há necessidade de explicações, a foto por si explica tudo...
Nunca mais a professora olhou nos meus olhos, se ela tivesse uma mínima oportunidade certamente teria me reprovado na sua matéria, tentei de todas as maneiras lhe explicar o acontecido, mas tudo em vão, seguimos os nossos caminhos, ela com a sua mágoa e eu com a minha dor, foi quando me lembrei do filósofo alemão Nietzsche que dizia...
“Na vingança e no amor a mulher é mais cruel que o homem”...
Que paradoxo! Eu que queria tanto voltar pra casa, agora que estou voltando, sinto que não mais quero voltar, todavia tenho que voltar, pedaços meus vão ficar aqui... Para sempre...
Ao ouvir aquela música, do fundo da minha alma doces recordações do tempo da universidade descontroladamente avivam e ganham cores na minha mente, meus colegas, meus professores, meus amigos da Turma da Bomba D’água, mas são as lembranças daquela moça as que mais pesam alma minha adentro, as que mais me entristecem, mas também as que mais me alegram...
Assim os anos foram passando e da professora sempre me lembrando, longe dela me sentia o mais infeliz dos infelizes, quantas vezes juntava forças e coragem para procurá-la, mas ao lembrar que ela implorou para que eu nunca mais a procurasse, que a esquecesse de uma vez por todas, um vendaval de tristeza e desanimo açoitava a minha alma imobilizando-a por completo...
Mas ela nunca deixou de povoar os meus sonhos, das vezes contemplava a minha desgraça e sorria amargamente para os meus pensamentos delirantes, bobeiras e mais bobeiras, sonhos impossíveis, sonhava com ela nos meus braços, abraços apertados, beijos prolongados...
Suspiros...
E mais suspiros...
Foi quando recebi um convite para as comemorações dos cinco anos da nossa formatura, confirmei a minha presença, e no dia da festa, à noite, cheguei atrasado, quase todos meus antigos colegas estavam presentes, vários professores, a turma da Bomba D’água, ansioso, com o olhar procurei-a por todos os cantos do salão, mas tudo em vão, para a minha tristeza e desespero não a encontrei, fazer o que? Refleti, talvez ela nem se lembre mais de mim, talvez até já tenha se casado, cabisbaixo, tentando enganar a mim mesmo concluí... “Esta infelicidade não vai durar a vida inteira, outro amor eu hei de encontrar” e fui abraçando e sendo abraçado por tantos e entre sorrisos e lágrimas...
Você se lembra disto, se lembra daquilo, bebidas rolando, uns dançado, mas o bom mesmo era a algazarra causadas pelas pitorescas recordações de acontecimentos marcantes, lá pelas tantas da noite, quando o cansaço já tomava conta de todos eis que ela adentra ao recinto da festa, linda, meigamente linda, muito linda, toda sorridente, minha querida professora, minha paixão, meu único e verdadeiro amor, mas para minha decepção chegou abraçada com um rapaz desconhecido, me amaldiçoei de mil maldições por ter vindo a este encontro, neste momento eu queria mesmo é me esconder debaixo de alguma mesa, ela a todos cumprimentando e abraçando, foi quando notei que todos os olhos estavam voltados para mim, aquilo me sufocou, minha boca secou, meu corpo tremulava, mal se sustinha, e ela foi se aproximando...
Aproximando...
Aproximando...
Quando finalmente me estendeu a mão, nossos braços se abraçaram, e voltaram a se abraçar, por fim consegui perguntar se tudo estava bem, ela sorrindo, devia estar sorrindo do meu desespero, disse que estava com saudades de toda aquela turma. Ela se misturou na multidão, frustrado, me refugiei num canto qualquer, não tenho o hábito de ingerir bebidas alcoólicas, mas foi nelas que procurei o alivio para a minha derrota, um consolo para a minha desgraça, depois de algum tempo já completamente embriagado comecei a declamar a minha desventura, quando algo inesperado aconteceu, não me lembro da maneira exata do acontecido, mas só sei que ela sorrateiramente de mim se aproximou e disse:
— Por tanto tempo esperei pela sua volta, e você não voltou, por tanto tempo esperei por um telefonema seu, e você não telefonou, esperei por uma mensagem, e esta mensagem não chegou, agora o tenho perto de mim e você não me diz nada?
Com imensas dificuldades consegui falar:
— E aquele rapaz?
— Que rapaz?
— Aquele que você entrou abraçado na festa?
— Deixa de ser ciumento, aquele rapaz é o professor que me substituiu na Faculdade, é meu amigo, e o que tem demais abraçar um amigo!
— Caramba, então toda essa minha bebedeira foi em vão? Mas você não precisava entrar na festa tão agarrada naquele sujeito!
E a turma me desafiava para que falasse aquilo que todos esperavam!
— Vamos, desembucha companheiro, a hora é agora, e não terá outra oportunidade igual a esta pelo resto da sua vida!
Empurraram-me para bem perto dela, ficamos de mãos dadas, mal conseguia me equilibrar, a cabeça girava, o corpo tremulava, foi quando tive um momento de lucidez, ajoelhei e segurando ternamente em suas mãos, olhei para os seus olhos e gaguejei:
— Caaaaasa cooomigo!
Ela soltou das minhas mãos, olhou para a multidão silenciosa que aguardava o desfecho daquele drama, olhou para mim...
Sorrindo, toda feliz, retrucou:
— Lembra-se daquela foto? Eu ainda hoje a tenho nas minhas lembranças, mas há muito tempo eu já te perdoei, perdoei porque sei o quanto te amo. Ao te ver meu coração recuperou a antiga felicidade e se fez em festas e alegrias, eu aceito o seu pedido de casamento! Mas tem uma condição, vamos agora até a minha casa e você pede aos meus pais autorização para casarmos, e este casamento terá que ser realizado dentro de no máximo trinta dias!
— Trinta dias?
— Trinta dias sim senhor!  Já passei dos trinta anos, e não pretendo perder mais tempo com namoro e noivado, quero ter muitos filhos...
A festa foi interrompida, aqueles colegas, muitos, nos acompanharam até a casa dela, e aí que o vexame ficou pior, na entrada tropecei em um tapete e estatelei na sala caindo aos pés dos meus futuros sogros, graças à ajuda de meus amigos consegui ficar de pé, cambaleando e com uma voz melosa disse boa noite aos pais dela, que surpresos não estavam entendendo nada do que estava acontecendo.
E um engraçadinho foi logo avisando que eu estava ali para um pedido de casamento! E a minha futura sogra abriu a boca:
— Minha querida filha você perdeu o juízo, ficou louca, vai casar um traste deste, um pingaiada, se solteiro já bebe assim, imagine quando casar, ficará pior!
— Mamãe, tenha um pouco de paciência depois eu explico tudo!
— Minha filha escuta sua mãe pelo amor de Deus, acorda, se livra desta tentação, o que foi que você achou neste pinguço, na certa também não gosta de trabalhar, você vai ter que sustentá-lo pelo resto da sua vida, você será uma mulher infeliz ao seu lado!
— Mamãe, papai, o deixe falar, por favor!
E o pai dela, um senhor de barriga saliente, ar de bonachão, sorria daquela palhaçada pelos cantos dos olhos, finalmente abriu a boca:
— Minha querida filha é este rapaz com quem você deseja casar?
— Sim papai!
—  Se é este o seu desejo, se é esta a sua decisão, eu respeito e acato, mas fique sabendo ao que tudo indica você fez uma péssima escolha, melhor morrer solteira do que mal casada, e não diga que não te avisamos, depois será tarde, muito tarde para lamentar, vamos rapaz, fale, desembucha de uma vez por todas, somos todos ouvidos!
Fez-se um silêncio sepulcral dentro daquela casa, dava para ouvir o ronco dos automóveis lá na rua, lágrimas escorriam pela minha face, sou assim, quando emocionado lágrimas escorrem e não consigo contê-las, e a turma torcendo  para que eu conseguisse destramelar a língua, que falasse e  falei, molemente, mas consegui gaguejar:
— Antes de tudo eu queria pedir desculpas pela minha maneira desastrada de entrar em vossa casa, acreditem, eu não sou o que estão vendo, sou um rapaz responsável e trabalhador, quero lhes dizer que sou completamente apaixonado pela sua filha, que ela foi, é, e será sempre o amor da minha vida, e que serei feliz somente se ela estiver ao meu lado, assim sendo, com todo o respeito eu gostaria de pedir a sua filha em casamento!
Casamento marcado, voltamos para o salão e a festa continuou madrugada afora até o dia clarear...  
Casamos, com o tempo tornei o genro querido dos meus sogros, minha esposa encheu a casa de filhos, os filhos cresceram, formaram, debandaram, cada um seguiu seu caminho, e o tempo passou tão de repente, envelhecemos e ainda hoje estamos apaixonados, e ela continua recebendo flores no dia do seu aniversário, mas o que mais gostamos é de relembrar o nosso passado, dos nossos momentos de tensão, de alegrias, de tristezas... São estas coisas que dão um colorido especial em nossas vidas!
Com toda razão está quem diz...
“ Deus escreve o certo pelas linhas tortas”.

Autor: Magnu Max Bomfim - Igarapava/SP

terça-feira, 10 de março de 2015

Revivendo...


Autor: Magnu Max Bomfim

Virgem minha Santa amada Maria abençoa este corpo maltratado pelo tempo, que teimosamente insiste nesta empreitada, nesta peregrinação, quero rever ainda que seja pela ultima vez, que estes olhos meus, velhos e cansados, se maravilhem novamente com os encantos e as belezas da minha terra natal, o meu querido Capim Santo.
Eu venho de longe, de muito longe, aqui chegando cheguei... Abarrotado de curiosidade e ansiedade, por entre estas casas em desconstrução me esquivo, pois tenho na mente um velho casarão, morada minha antiga que o tempo perpetuou no meu lembrar. 
Agora que me vejo em frente a este velho casarão, casa outrora afamada pelas festas e pelos folguedos, o passado não pede passagem, simplesmente vai se mostrando, e inesperadamente mostra toda aquela gente na algazarra descascando e ralando mandiocas pra farinha no fazer, comer beiju ainda quente era um prazer, e esta é a minha casa, a casa que me viu nascer e crescer, e sinto que sombras desarrumadas de cores e de emoções assombrando perambulam por ti, coisas remanescentes de vidas e sonhos aqui vividos, e entre estas estou eu sem saber como prosseguir neste silêncio abismal e aterrador, mas de repente vozes e canções voltam a ecoar magistralmente na minha mente, numa perfeição da sinfonia de outrora, e aos olhos da alma os acontecimentos idos agora vão se desfilando a extasiar e a encantar, até o que era feio e enfadonho, nas lembranças ganham ares de beleza, e de uma coisa eu tenho a mais absoluta certeza, que foi aqui que vivi os mais belos e os mais felizes momentos da minha vida.
Caminho com dificuldades pelos escombros da minha casa, tudo é desolador, e em cada pedacinho destas paredes decadentes eu vibro sensações de dias inesquecíveis aqui vividos.
Na mente um turbilhão de imagens desfilando, meus pais, meus irmãos, os amigos, os conhecidos e os desconhecidos, todos parecendo me abraçar desejando boas vindas.
Da varanda para onde a vista alcança tudo é destroçado, tudo é silencioso, tudo adormecido como que se mortos estivessem, e mortos estão. Minha casa  apesar dos estragos conserva uma tosca varanda, nas noites de luar eu ali ficava sentado, quieto, observando a lua a desenhar pelo chão, monumentos de sombras entremeados de clarões, que na minha mente ganhavam vida e cores.
E a pequena Igreja? Minha mãe contava que nela eu fui batizado, abençoando o padre a minha fronte na água benta molhou, batismo em dia de festas, e  hoje combalida sobrevive nas paredes que ainda resistem às intempéries e a solidão, mas aos meus ouvidos há rumores de rezas, é a multidão dos sertanejos fervorosamente orando o Pai Nosso e a Ave Maria, tropel naqueles tempos em que os tempos tinham vida e serventia.
Vejo que pouca coisa restou da casa do João Grandão, homem de pouca conversa, tinha o corpo marcado por cicatrizes, resquícios de contendas, dizia a boca pequena que ele era um matador, cão servil dos coronéis, que tinha um pacto com o tinhoso, pois bala nenhuma podia contra ele, gostava de matar é na traição e na judiação, homem de valentias e soberba, era casado com a dona Anita, no recordar vejo os seus filhos, o Antenor, o Luisinho e a Maria Quitéria, meninada de estripulias, de macaquices nas correrias das brincadeiras de pique.
Ah! Ia me esquecendo, naquela esquina ali, ficava a casa do Antenor Festeiro, afamado sanfoneiro, que alegrava o arraial tocando sempre as músicas de Luis Gonzaga, de quem era admirador e imitador.
Ali morava sicrano, aqui beltrano, e assim estou revivendo tudo que um dia teve vida...
Aqui, bem em frente da Igreja, morava o João Cardozo, e ele era lá das bandas da Bahia, peregrino do sertão, homem da língua solta, papagaio falador, contador de causos e acontecidos, aqui se arranchou nos braços da Dona Odete, mulher faceira e prendada, na cozinha era a primeira, prendeu o baiano pelo estomago e pelo coração, e ela lhe deu muitos filhos, o Jesualdo, a Maria das Dores, o Raimundo, e muitos outros cujos nomes não mais me alembro. E ele era capaz de passar uma noite inteira contando causos, contava coisas desde o tempo em que o cangaceiro Lampião e seu bando faziam estripulias por estes grotões, e que muitas vezes o Virgulino e sua tropa se refugiaram aqui no Capim Santo no esconder, escondendo, escondidos ficavam da polícia.
Foi aqui, bem aqui, nesta esquina onde ficava o boteco da Ana do Valfrido, onde dois machos se defrontaram na disputa das carícias de uma mulher da rua, beberam umas cachaças, engrandecidos na coragem, no desafio saltaram pra rua a porfiar, porfiando, porfiaram na peixeira, e foi bem aqui que o Chico caolho entre rasteiras e estocadas, apesar de muito ferido, conseguiu matar o Antonio Porfírio, que caído no chão ficou, e as suas pernas ciscando como que acenando pedindo pela ajuda que não chegou, e ele da vida se foi, o Chico caolho foi preso e mandado para a enxovia lá da cidade de Garanhuns, onde se definhou e morreu, sem mais gozar das carícias daquela mulher, que logo logo com outro se arrumou, a vida tem dessas coisas...  
Nas festas de São João, fogueira acessa e na sua volta a reza, a dança e a festa, a pipoca, a batata doce, o quentão, os caboclos desenfurnados de todos os grotões chegavam esticando os braços pros abraços animando a festa.
E os valentões na pinga esquentados, das vezes tiravam satisfações nas rasteiras e negadas, farofeiros que logo apartados e apaziguados juravam momentos de paz, tudo em nome do santo.
Lembro-me, se lembro... Durante o baile, uma mocinha recusou o convite de um cabra para uma dança, ela deu uma baita taba no gajo, ofensa grave aquela, o macho sentiu o golpe e no contragolpe sentenciou:
- Num quer dançar comigo, entonce, não dança cum mais ninguém.
No castigo a moça ficou, durante todo o baile aquietou-se no seu canto, aguando em vontades de dançar, mas sem poder, da proibição ela não quis desafiar, pois o cabra arrepiado na vigia ficou, atento, disposto a tudo, em nome de uma honra ferida, pouco qualificada, mas respeitada nestes rincões.
Meu pai gostava mesmo era de dançar o cateretê, nas alas formadas ele se destacava, minha mãe, dona de uma alegria contagiante, viveu e morreu lutando pelo bem da família.
Caminho silenciosamente pelas ruelas desertas do meu Capim Santo, e em cada pedacinho avivam lembranças e acontecidos, o passado é um presente no meu presente, minha alma se faz em festas e em tristezas no recordar viver, em festas por estar aqui no meu Capim Santo, em tristezas por ver tamanha desolação.
Quando me deparo com o que restou da casa que fica ao lado da Igreja, uma estranha angustia palpita alma minha adentro, e por um longo tempo fico a mirar e ver aqueles montes de entulhos, aqui morava uma mocinha, flor em botão, a Maria Rosa, meu primeiro amor, e são esses montes de entulhos que me trazem as mais belas e pungentes recordações, que carinhosamente aperto profundamente contra o meu peito, ainda hoje suspiro felicidades quando dela me ponho a lembrar, claramente ainda vejo o dia em que roubei um botão de rosa de jardim alheio e dei pra ela de presente, e ela sorrindo se corou todinha, se disse agradecida, formosa daquele jeito outra nunca vi, e naquele mesmo momento eu dei também pra ela o meu coração.
São estes montes de pedras, tal qual uma musa antiga a contar para o vento passante a estória deste grande e inesquecível amor, que a ingratidão de um sol inclemente que a tudo arruinou e que a tudo destruiu, apartou; retirante fui,  para o sul maravilha parti, desencontrado fiquei daquela mocinha, a Maria Rosa, meu primeiro amor, e ela por entre as desolações de outras estiagens se debandou pra um lugar nunca sabido, é dela que ainda hoje sinto saudade. 
Meu querido Capim Santo, o que restou de ti? Escombros e mais escombros, ruínas e mais ruínas, agora estou partindo, levando a alma lavada em  avivadas recordações, pois a realidade é desoladora, e é com lágrimas nos olhos que te deixo sozinho, abandonado e silencioso, e tudo isto segue comigo para todo o sempre, mas a vida é mesmo assim meu Capim Santo, resta por consolo que tudo que tem um começo, certamente terá também um fim.

Autor: Magnu Max Bonfim - Igarapava/SP

Página do autor:
http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=88152


sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Os conselhos da maldade - Autor: Magnu Max Bomfim

No sertão do Tira-Teima, lugar amaldiçoado e empesteado de tudo o que não presta, reino do satanás, ali ele manda e desmanda, atiça ódios e rancores, atiça ciúmes e vinganças, um velho Senhor, daqueles coronéis que reinam naquelas bandas, caminha lentamente acompanhado pelo seu filho caçula por entre quiçaças e arvoredos espinhentos e se aproximando das fraldas da serra calmamente entrega ao rapaz um revolver trinta e oito e uma carabina:
- Todos os seus irmãos já estiveram neste local e aqui ensinei pra eles a arte de atirar, lembre-se que não se atira numa pessoa pra espantá, mas atira pra mata!
- Pai! Eu não tenho a mínima intenção de matar alguém!
- O que predispõe a gente matar é a situação, o momento, o repente, as circunstâncias, a tentação, e nestes grotões mais cedo ou mais tarde você se arderá em desejos de matar alguém! Das vezes o tinhoso governa o senso da gente e coisas ruins acontecem!
- Pai! Esse tempo das brutalidades já passou!
- Passou? Seu irmão mais velho, o Trajano, morreu abestalhadamente ele não viu, se viu não entendeu os sinais da traição, uma ladina com os seus encantos atraiu o pobre coitado para um encontro fatal e o matador já estava na espreita, na mira certeira da sua cartucheira peneirou o peito dele, no tombo já estava morto! Seu outro irmão o Tertuliano por prestar um pouco mais de atenção nestas coisas, nestes sinais, escapou da morte por pouco, ferido, mas sobreviveu! O Teófilo nunca se meteu em encrencas, medroso, sabe manejar as armas, observa todos os rastros que cruzam o seu caminho, desconfiado vive no resguardo da proteção!
- Pai! O Senhor tem tantos inimigos assim?
- Filho! Amigos e inimigos são tudo a mesmíssima coisa, não se confia nem num, nem no outro, o aliado de hoje pode ser o inimigo no amanhã, o inimigo de hoje pode ser o aliado daqui uns dias, o que diferencia um do outro são os pequenos detalhes, os mínimos detalhes, porque no mais em tudo se assemelham, o que você tem que fazer é ler o pensamento deles e se antecipar na ação!
- Começa o treino filho! Atira primeiro com o revolver e vai mirando em qualquer coisa, depois atira também com a carabina, toda arma de fogo no disparo da um coice, sendo assim tem que agarrá-la com vontade, arma de grosso calibre o apoio tem que ser bem mais firme, pois o coice que elas dão pode machucar ou até quebrar o ombro!
Assim o rapaz foi atirando em tudo e tudo se transformava num alvo, mesmo assim perguntou:
- Pai, que fim levou aqueles que participaram da morte do meu irmão, o Trajano?
- Teotônio, as pessoas te respeitam pela sua honestidade e honradez, mas mais te respeitam pela sua maldade, pela sua crueldade, pelas brutalidades que você é bem capaz de cometer nas vinganças, o que agora vou te contar é um segredo, quase todos aqueles que ajudaram a matar o Trajano já estão debaixo da terra, o tatu na certa há muito tempo já comeu as suas carniças! E não foi difícil encontrar os criminosos, todos sabiam que um raio, um tiro, uma pedrada ou qualquer outra desgraça haveria de atingi-los...
Aquela prostituta, a isca que atraiu seu irmão para a arapuca, a gente trouxe ela para estas furnas, e um ferro em brasa destes marcar o gado destramelou a língua daquela piranha e a laranja depois de espremida a gente degolou, buscamos o dono daquele dedo que puxou o gatilho matador, esbarramos num homem firme, decidido, por mais que retalhassem as suas carnes ele mantinha a boca fechada, gemia, mas não chorava, buscamos então a sua mulher e o seu filhinho, descarnamos a mulher e ele continuou com a boca fechada, mas quando a gente aproximou da cara do seu filhinho o ferro em brasa, aquele mesmo de marcar o gado ele implorou por clemência, piedade, se entregou e cantou o nome de quem encomendou o assassinato do seu irmão! Um fazendeiro, um amante enciumado que não aceitava que o cabeçudo do seu irmão também desfrutasse das carícias daquela meretriz.
- Pai e o que aconteceu com o matador de aluguel e sua família?
- Eles estão enterrados nas valetas destes morros e serras em profundezas tal que nem o urubu o cheiro da carniça percebeu, nestes confins nem todo aquele que anoitece, amanhece, das vezes num encanto desaparece!
- E a criancinha?
- Filhote de cascavel também é cascavel então a gente esmaga a cabeça, se não lá na frente ele crescido cresce no ódio e vem nas vinganças pro nosso lado, essa é a lei do cão, mas é esta a lei que impera nesta terra amaldiçoada.
Fez se um breve silêncio e o rapaz um tanto assustado voltou a atirar nos  troncos das árvores sem parar de perguntar:
- E o que aconteceu com o fazendeiro que mandou matar o meu irmão?
- Ele ainda esta vivo!
- Eu não consigo compreender se ele é o mandante do assassinato e ainda continua vivo!
- Teotônio, um tinhoso daquele a gente preserva, num mata não, ele tem que viver pra sofrer, mas sofrer muito, se morresse já estaria aliviado da dor, um verme daquele a gente conserva e vai matando aos tiquinhos, a gente não fere o corpo, vai destruindo a sua alma por inteiro e a sua vontade de viver, ele tinha uma única filha, mocinha, seu xodó, sua alegria, vigiamos os passos dela, colamos no seu corpo os nossos olhos e os nossos desejos de beber aquele sangue inocente e puro, rastreamos.
Sem pressa alguma acompanhamos a mocinha por todos os cantos, descuidaram, num baile de casamento as nossas garras alcançaram aquela mimosa linda jovem flor e a arrastamos para estes grotões e nos dias seguintes abusamos da coitada com todas as maldades possíveis e no escuro da noite colocamos o seu cadáver no estradão da roça daquele ordinário!
O pai recolheu a sua flor agora do viço desprovida, no peito na certa uma dor cortante, pungente, nas lágrimas jurou todas as vinganças, chora todos os dias com saudades da sua filha, dizem não consegue mais dormir, pois imensos pesadelos assolam a sua alma afora, é assim que a gente vinga marcando a ferro e fogo a alma deste filho do satanás que enciumado dos favores de uma prostituta bobamente matou o meu filho, mas ele sabe que fui eu quem matou a sua filha, como ele sabe que eu sei que foi ele que de uma forma ou de outra matou o seu irmão, o jogo esta empatado, e não permanecerá empatado por muito tempo, sinta que as coisas andam um tanto silenciosas, é o tinhoso botando vinganças em todos os corações.
Conseguimos colocar nos ouvidos da sua esposa o recado maldoso que o seu marido tinha um caso com a sumida piranha e ela hoje o despreza descaradamente e dizem que até dorme com o seu capataz, a gente precisa na paciência é ir solapando as defesas do inimigo, hoje ele procura a morte, frequenta o meretrício donde sempre sai carregado completamente bêbado, das vezes pela alta madrugada cavalga sozinho no breu da noite sonhando com uma bala matadeira que o livre destes pesadelos, mas nossa vingança é mais cruel e não para aí, alguém da nossa confiança piou nos ouvidos daquele sujeito amaldiçoado um triste recado, que a sua esposa esta colocando na sua testa um par de chifres justamente com o seu capataz, de duas uma, ou o fazendeiro chifrudo mata o capataz ou o capataz desconfiado, temeroso, ataca primeiro matando o amaldiçoado.
Até a maldade tem a sua ciência e seus requintes, mexer no braseiro das ignorâncias e das vaidades dos homens usando as mãos de nossos inimigos é esperteza das maiores, e como que se inocentes a gente fosse e amoitado ficamos na espreita, esperteza é guiar o pensar e o sentir destas pessoas e eles acabam se comportando e fazendo tudo aquilo que a gente engendrou, assim meu filho estar sempre preparado para o pior é alongar os nossos dias, faça a sua parte, presta atenção no que estou falando e concentre mais no mirar, pois esta errando muitos tiros!
- Teotônio, meu filho! Alarga os teus ouvidos e a tua alma para o que agora vou te falar, e é este o maior e o mais importante de todos os ensinamentos para sobreviver nesta seara avermelhada de maldades...
“A sua arma tem que estar sempre ao alcance da sua mão, mas isto não basta, você tem que saber manejá-la com a máxima perfeição possível assim você já estará a meio caminho da vitória.”
E o tempo foi passando e todos os dias o velho pai ensinando e aconselhando o filho o duro ofício de matar, de nunca se apiedar dos vencidos, matar e esfolar nas brutalidades pra ser respeitado na má fama pelos cafundós alastrada, e é preciso ver, sentir e interpretar os sinais...
Sempre chove na florada da mangueira, na tarde avermelhada a madrugada é fria, coruja piando de dia é  mau agouro, em dias silenciosos a morte esta ceifando, alegria excessiva é sinal de desgraça, o joão de barro não faz a entrada da sua casa para o lado mais chuvoso...
- Teotônio meu filho, no final das contas o que conta é que a gente não conta pra ninguém das nossas estratégias, nem para aos nossos olhos, pois eles bem são capazes de nos denunciar, o traidor tanto pode ser aquele que beija a tua mão como pode ser aquele que no escuro da alma te atira pedras, acautela-te, deixe teu pensamento vagar, guarde na tua mente a imagem de todos os seus amigos e inimigos, mergulhe pra dentro de suas cabeças e aprenda a decifrá-los. Teotônio, encontre uma moça de boa família, case e tenha muitos filhos, mas nunca se esqueça de que uma mulher traída é o pior dos inimigos que um homem nesta vida pode arrumar...

Autor: Magnu Max Bomfim - Igarapava/SP

Página do autor:
http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=88152