segunda-feira, 4 de maio de 2020

LUIZ CRISTÓVÃO DOS SANTOS

Jorge Farias Remígio
            
              Luiz Cristóvão dos Santos, foi Sociólogo, Antropólogo, Folclorista, Cronista, Escritor, Promotor Público e Jornalista. Foi também Deputado Estadual pela UDN em 1947. Faleceu em Recife no dia 30 de junho de 1997, aos 80 anos de idade. Bibliografia ao autor. Hino ao Sertão -1938. Adolescência-1950. Bilhetes do Sertão-1950. Padre Cottar, Um Vigário do Sertão-1953. Carlos Frederico Xavier de Brito, O Bandeirante da Goiaba-1953. Caminhos do Pajeú-1954. Brasil de Chapéu de Couro-1956. Caminhos do Sertão-1970. Chão de Infância-1983. Paisagem Humana do Pajeú-inacabado. Estou encaminhado esta biografia do escritor Luiz Cristóvão dos Santos para o Blog Gandavos, para familiarização dos participantes, uma vez que enviarei posteriormente, crônicas desse grande personagem, citando parte de sua infância vivenciada em nossa cidade na década de vinte. Praticamente cem anos atrás.

Jorge Remígio, João Pessoa-PB


Texto extraído da contracapa do livro Caminhos do Sertão, autor Luiz Cristóvão dos Santos Recife, ano de 1970.

          Luiz Cristóvão dos Santos nasceu em Pesqueira num dia de Natal. 25/12/1916. Foi logo depois da “Missa do Galo” rezada pelo vigário Frutuoso Rolim, que o farmacêutico Manoel Cristóvão dos Santos atravessou, apressado, a então “Rua Grande” (hoje, Praça Dom José Lopes), em busca do Dr. Lídio Paraíba, para trazê-lo urgente, à casa n. 146, onde sua esposa dona Carlinda Santos aguardava a hora do parto que se aproximava. E quando rompeu a madrugada nasceu o quinto filho do casal e que seria, anos depois, o autor de “Caminhos do “Sertão”
          Com cinco anos de idade, toda a família mudou-se para vila (hoje cidade) de Custódia, no Sertão do Cupiti. Luiz Cristóvão passou a infância naquela pequena vila, alarmada, vez por outra, pela presença de cangaceiros ou dos soldados das Volantes, que apareciam quebrando a pasmaceira do lugarejo e incendiando a imaginação dos meninos. Ali conheceu Lampião entrando porta a dentro da farmácia do “seo” Manoel Cristóvão, para comprar remédio, e solicitar, maneiroso, tratamento para dois ou três “cabras”, feridos em combate com a polícia, perto de Vila Bela. Ali conheceu também os heróis da luta contra os bandoleiros: Higino Belarmino, Optato Gueiros, Nelson Leobaldo, João Nunes, Manoel Neto, sargento Quelé, Manoel e Euclides Flor, Serrano de Andrade, José Caetano, Luiz Mariano, Theófanes Torres, Gabriel Queiroz, Braz Calmon, Alípio de Souza, o cabo Filadelfo, homens duros , queimados do sol, mosquetão à mão e tórax cruzado pelas cartucheiras. Luiz Cristóvão gravava na memória aquelas histórias que abalavam o sertão.
      Anos depois, o regresso ao Agreste, para iniciar os estudos: Pesqueira e Caruaru respectivamente, com os grandes educadores sertanejos: Monsenhor Urbano de Carvalho e Luiz Pessoa da Silva. E também o litoral: Olinda e Recife, onde terminou bacharelado em Direito no ano de 1944.
           Como advogado e promotor, retornou ao Sertão, percorrendo de volta, os caminhos da infância, visitando fazendas, vilas e cidadezinhas do Moxotó e do Pajeú. Foi o reencontro com as velhas histórias que ouvia, em menino, agora preso à ideia de levá-las para o livro. No meio de uma dezena deles, “Brasil de Chapéu de Couro”, lançado pela Editora Civilização Brasileira, o tornou conhecido em todo país. Com o livro “Caminhos do Pajeú”, em 1954, conquistou o primeiro prêmio: o “Othon Linch Bezerra de Mello”, distribuído pela Academia Pernambucana de Letras, que em 1970, lhe seria concedido pela segunda vez, com este “Caminhos do Sertão”, agora editado pela Imprensa Universitária de Pernambuco.
               Texto extraído da contracapa do livro Caminhos do Sertão. Recife, ano de 1970.
               Texto enviado por: Jorge Farias Remígio, em 03/05/2020

         

AS ANDORINHAS DE CUSTÓDIA


              
          As andorinhas da minha infância moravam na torre e nos beirais da igrejinha de São José, que o Padre Leão Varzeri levantou com tanto sacrifício, no meio da praça da antiga vila de Custódia.
         Elas chegavam, ninguém sabia de onde, aos milhares, num alvoroço ruidoso, mal o inverno aparecia, depois do ribombo das trovoadas do fim-de-ano, quando as primeiras chuvas caíam, perfumando o sertão, com o cheiro volutuoso de terra molhada, cobrindo de folhas o chão duro e revestindo de brotos as árvores desnudas.
         Eu ficava, pela manhã, horas a fio, sentado na calçada de casa, sob o olhar vigilante de mamãe costurando na sua “Singer”, a olhar enternecido para o céu, onde milhares de asas, entre chilreios e evoluções, traçavam voos caprichosos, e, de súbito, em descaída rasante, baixavam, quase ao solo, por sobre a praça quieta.
          Depois, subiam rumorosamente, fendiam os ares num barulho ensurdecedor, pousando depois, aos magotes, nos fios dos telégrafos que transmitiam as mensagens de Kepler Lafaiete e de “seu” Isaías, ou se afastavam em busca dos açudes próximos, onde, sobre a lâmina de água barrenta se atiravam, em voo de flecha, molhando os bicos e as penas.
              Até que um dia, de repente, lá se iam as andorinhas, numa fuga misteriosa, abandonando a vila e a igrejinha humilde que as hospedara, emprestando-lhes os beirais para o calor dos ninhos
               Para onde fugiam?
               Ninguém sabia explicar.
          Nem “seu” Joaquim, de bodega vizinha, que dava notícia de tudo: de “coiteiros” que aparecessem, disfarçadamente, ou de volantes que pernoitassem na rua, na perseguição ao grupo de Lampião.
          O velho Numeriano, no caldo-de-cana de seu Zé Tomaz, dizia que as andorinhas tinham voltado para as beiras do São Francisco, em cujas margens e ilhas elas viviam e se multiplicavam.
          O negro “Bezouro”, por sua vez, com os olhos raiados de sangue, a voz roquenha de tangedor de gado, que batia as estradas poeirentas levando boiadas para Alagoa de Baixo, Vila Bela, Salgueiro e outros lugares, afirmava, entre duas “bicadas” de aguardente, na venda de seu Leopoldo Mafra, que as “indurinhas” vinham dos rochedos da Serra do Araripe, e, para lá voltavam, quando se acabava o inverno e o calor chegava para o sertão.
           É lá que elas “assiste”, pois “indurinha” é “passo” de frio e ali tem mata que o sol não atravessa, e furna, prá elas viverem, onde só moram morcegos e onça pintada. 
               Ninguém, no entanto, sabia, com precisão, o destino das aves que enfeitavam, por algum tempo, o céu azul do sertão.
                O certo, (sei-o eu, tantos anos passados), é que elas fugiram.
               E levaram nas asas ligeiras, para o distante e misterioso país onde se esconderam, os dias ensolarados da infância descuidosa, passada na “ribeira” ardente do Riacho do Cupiti, enfeitada de juazeiros e de quixabeiras e recendendo, nas noites de lua, ao suave perfume dos pereiros em flor.

Crônica de Luiz Cristóvão dos Santos, extraída do livro Caminhos do Sertão. Edição 1970.
¨Creio que como eu, muitos custodienses se sentirão protagonistas dessa história¨. 
Jorge Remígio   
                
Texto enviado por: Jorge Farias Remígio, em 03/05/2020        

A FEIRA


    
         Puxo a rédea de “Charuto” e o cavalo estanca no meio da ladeira. O caminho estreito se estira entre juremas e catingueira, galgando a serra do Mandacaru.
        Em baixo, está a planície, cortada pela fita cinzenta da rodovia, onde a todo instante os “Volks” chispam, velozes, e, madrugada afora, pesados caminhões, com cargas gigantescas, rolam surdamente, estremecendo o agreste adormecido.
           Vejo a casa da fazenda aconchegada à sombra das árvores. O sol faísca no azul e rebrilha na água do açude, em cujas margens distingo as crianças. Devem estar brincando à volta d’água, os pés metidos na correnteza do sangradouro, pescando de anzol, fazendo cacimba e ilhas na areia grossa.
           Foi assim a minha infância na fazenda “Cangalha”, na antiga vila de Custódia.
     E, hoje, num milagre, me revejo nos filhos, soltos ao sol, na festa da manhã radiosa, derramada sobre a fazenda, onde, fiel às raízes, reencontro os caminhos que ficaram perdidos na geografia da infância.
         Ajeito o loro da sela. Levanto um pouco mais os estribos. E, a um pinicado de espora, sacudo as rédeas e recomeço a viagem.
          Logo depois da várzea que está à frente, onde o capim ondula, feito um mar verde e o gado pasta, mansamente, aparece a ruazinha do povoado. Na singela torre da igrejinha estão abrigadas centenas de inquietas e barulhentas andorinhas, vindas com as primeiras chuvas, ninguém sabe donde. A matutada vai chegando para a feira com as cargas de cereais e frutas.
            Vou comprar carne de sol, correias para uns chocalhos, pólvora e chumbo para espingarda. Atravesso o borborinho, me sento no banco da Farmácia (era assim, na farmácia do meu pai, em Custódia), para saber das pobres notícias daquele mundo humilde, parado no tempo, distante do progresso, onde a vida escorre, simples e lírica, como um riacho.
          À tarde, quando o sol esfriar, arreio o cavalo para a viagem de volta. E, novamente, do alto da serra, olho a paisagem aberta como num anfiteatro imenso e que se desenrola na direção do horizonte, fechado em círculo pelas montanhas, que azulam, ao longe, para os lados da Paraíba.
          A volta é mais rápida pois a descida apressa os passos. Estaco à sombra do umbuzeiro, bem na frente da casa. Então a meninada me cerca. E, entre beijos e abraços, ouço a amorável pergunta de sempre, que me enternece e comove:
          - Que foi que trouxe prá mim, paizinho?

Crônica de Luiz Cristóvão dos Santos. Extraída do livro Caminhos do Sertão. 1970
Texto enviado por: Jorge Farias Remígio, em 03/05/2020

XARAPA


       
          A canção vem de longe. Acorda a lembrança e sacode a memória, vinda do fundo do Tempo, doce e envolvente, percorrendo de volta os caminhos da infância.
           Eu era o mais taludinho do grupo, criado ao sol e à chuva, seis a oito “capitães da areia” dos marmeleiros e das malvas da Fazenda Cangalha, na vila de Custódia, que branquejava ao sol do sertão.
          Devia ser maio ou junho, íamos pela vereda estreita e de repente, num deslumbramento, apareceu aos nossos olhos atônitos o açude cheio, sangrando na fúria da enchente. Moitas verdes boiavam na água barrenta, onde o sol rebrilhava e as andorinhas ligeiras molhavam as penas nos voos curtos de flechas.
         No ar pairava o cheiro forte da terra molhada, o odor da vegetação que surgira, de noite para o dia no milagre das primeiras chuvas, tapetando de verde o sertão, que ressurgia feliz. A babugem enchia o olfato, perfume agreste de mato novo surgindo da terra molhada, estadeada ao sol, salpicada de flor-de-jurema na festa da fecundação.
           Paramos no alto e ficamos olhando a paisagem fulgurante, diante dos nossos olhos. Depois sentei-me à sombra de um pé-de-turco que floria ao lado, crivado de florzinhas amarelas. Ao redor em silêncio, o grupo aguardava ordens: Jobelino, de riso largo, Pedrinho que chamava manancia, Apolínio, invencível na baleadeira. Erasmo, orgulhoso no canivete Corneta, “Lulu” de claros olhos e cabelos caídos à testa, Quincas e Abraão, este o caçula da turma, gordinho e rosado, chorando com a picada das urtigas. Também havia a índia. Sim, ali estava Xarapa, de negros cabelos e talhe delgado, ágil como as corças, que a fome tangera de Vila-Bela para a vida farta da fazenda de “seu” Nemésio Rodrigues.
          Um dia ela chegara, de olhos baixos e voz sumida, vestida de trapos, cabelos endurecidos pela poeira das estradas, quase nua e faminta, pedindo um pouco dágua e um pedaço de pão.
            Dona Marta lhe matou a fome e lhe cobriu o corpo que desabrochava.
            Ela ficou ajudando a preta Ana, nos afazeres da copa.
          E quando a gente varava o mato em busca de fruta silvestre e de ninhos de pássaros, de uma curva qualquer dos caminhos, ela saltava à nossa frente, de olhos brilhando, o cabelo solto, o corpo esguio e moreno, ligeira como as corças. Nós a batizamos de Xarapa.
          Porque ela era do grupo, tinha direitos adquiridos, tomava parte nas brincadeiras e nas traquinadas e quando menos se esperava, desaparecia, voltava para a preta Ana, chegava desconfiada, a malícia nos olhos de amêndoa, pisando de leve, com pés de gato.
             E sem palavras, lavava os pratos, levava a ração aos porcos, varria o alpendre e o terreiro. Logo mais, porém, quando menos se esperava, lá estava ao nosso lado, caçando ninho de rolinhas e de pomba avoante, procurando umbu maduro e murta cheirosa. Ali à beira do açude, fiamos olhando a água nova, o voo certeiro das andorinhas, a paisagem deslumbrante do açude sangrando.
          De repente Xarapa começou a cantar uns versos magoados que ela trouxe de Vila-Bela. Talvez a lembrança do pai morrendo à míngua, intoxicado com farinha de mucunã, a mãe desgarrada pelo mundo; dois filhos nos braços e um no ventre, talvez a via crucis da retirada exaustiva, sangrando os pés nos caminhos, tudo isso amolentou a garganta e adocicou a voz de Xarapa.
                Porque a música era tão triste que doía na alma e nos chumbava em silêncio.
                O tempo apagou os versos daquela canção dolorosa.
               Só a música persistiu, a melodia é que ficou na memória, plangente e magoada como um poema que tivesse perdido as palavras e ficasse gravado na lembrança feito somente de sonoridade.

Crônica de Luiz Cristóvão dos Santos, extraída do livro Caminhos do Pajeú. Ed. 1954
Texto enviado por Jorge Farias Remígio em 03/05/2020